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História da educação indígena e colonialidade | Adriane Pesovento e Nicanor Palhares Sá

A presença indígena no processo de colonização do século XIX é significativa, sobretudo, na formação étnica e cultural da sociedade brasileira. Entretanto, no que se refere à História da Educação Brasileira, o segmento indígena é rotineiramente vilipendiado, sendo que os investimentos fora do contexto da chamada educação formal – “espaço privilegiado da população livre e branca, excluindo o índio, cuja a categorização oscilava entre livre e escravo” – são praticamente escassos, tal como afirmou Elizabeth Madureira Siqueira (2012), no Prefácio do livro ora resenhado. Esse contexto, restrito ao estado, pressupõe uma perspectiva do paradigma colonizador, agregando um imaginário de passividade que circunscreve o segmento indígena e sua trajetória.

Publicado por Adriane Pesovento, Nicanor Palhares Sá e Sandra Jorge da Silva, com base nas discussões realizadas pelo Grupo de Pesquisa “História da Educação e Memória” (GEM) da Universidade Federal do Mato Grosso2 , o livro História da Educação Brasileira e Colonialidade (2012) tem como objetivo analisar os mecanismos de imposição de civilização e cultura e, ainda, as resistências e interações de saberes produzidos na trajetória dos habitantes tradicionais das terras brasileiras, por meio da perspectiva da colonialidade do saber e do poder3 . Para isso, apropriou-se dos conceitos concernentes à colonialidade defendidos por Lander (2005), Castro-Gómez (2005) e Quijano (2005).

Dividido em sete capítulos, o livro permite evidenciar que, embora o discurso oficial aponte o indígena como passivo e dócil, as lutas e a propagação das experiências produzidas na reprodução de vida desses povos demonstram, não só a resistência aos saberes coloniais, como a produção dos saberes locais e culturais indígenas. Nesse sentido, os autores lembram que há “a intenção de compreender os saberes tidos como ‘subalternos’, a partir de uma gnose4 que permita falar de ‘conhecimento’ para além das culturas acadêmicas e mesmo do que é compreendido na atualidade como educação escolar indígena” (p. 18). Assim, a compreensão hegemônica da história da educação brasileira ganha contornos culturais e evidencia os saberes nativos contrapostos ao modelo formal (referência do sistema de produção de mercado).

Os autores apontam no primeiro capítulo, denominado “Saberes locais e o processo civilizatório pós-colonial”, as características do processo educativo que privilegia as práticas culturais indígenas, na contramão do método escolar europeu. Ao fazer menção às constantes e diversas formas de violência às quais os indígenas foram submetidos, mesmo sob a escassez de registros das memórias indígenas, os autores abrem espaço, a partir dos indícios e fagulhas reveladas no discurso oficial/histórico, para pontuar as lutas e o processo de resistência às tentativas de cooptação, alienação religiosa e imposição de trabalho na região que compreendia a província de Mato Grosso, entre os anos de 1830 e 1889 5.

O segundo capítulo, intitulado “Aspectos da educação e colonialidade indígena”, aponta o imaginário construído pelos colonizadores em relação aos nativos, por meio, principalmente, dos registros de Dom Antonio Rolim de Moura que esteve à frente da capitania de Mato Grosso6.

Com a participação jesuítica já reduzida nesse período, Dom Antonio acreditava no sucesso do envio de indígenas à Europa, para que os mesmos tornassem “civilizados” e obedientes ao Rei, enquanto alternativa educacional, demonstrando assim uma percepção de capacidade intelectual indígena reduzida, reafirmando a soberania do “modelo ocidentalcêntrico de educação” (p. 27). Uma vez que o método proposto obtivesse falhas, seria em decorrência da suposta incapacidade indígena, extinguindo assim as esperanças quanto à educação. Os autores trabalham com o conceito de “racismo epistemológico” para mencionar o desprezo aos saberes indígenas e enfatizar a “percepção colonial do ‘outro’ indígena, aquele brutal e sem capacidade de raciocínio e, que somente por meio da adoção do modus vivendi europeu poderia encaixar-se como ‘civilizado’” (p. 27). Ainda no segundo capítulo, os autores introduzem o cenário de disputas por território entre espanhóis e portugueses e apontam as intenções e interesses políticos atrelados às ações educativas impostas aos indígenas, “especialmente no que diz respeito ao aproveitamento de sua mão de obra a partir de um modelo de educação que a isso se dedicasse” (p. 38), especificamente a catequese ou o trabalho.

O terceiro capítulo apresenta a trajetória da Colônia Thereza Cristina, com destaque para a implementação dos chamados valores civilizados, seja por meio dos militares, seja pelos religiosos salesianos. Os autores apontam as estratégias utilizadas pelo governo provincial na tentativa de controle das populações indígenas locais, sobretudo, por meio dos métodos educacionais e instrucionais. Com fracasso das colônias militares idealizadas por Couto Magalhães, a tentativa de integrar os indígenas como mão de obra no sistema econômico não obteve o sucesso imediato idealizado e, nesse âmbito, muitas colônias foram abandonadas. Conforme afirma os autores, a Colônia Thereza Cristina, “criada em 1887, às margens do Rio São Lourenço, foi mais tarde removida” (p. 40) e passara a funcionar no espaço da antiga Colônia Militar de São Lourenço, que já possuía estrutura física adequada para atender os objetivos da província: proteger as fronteiras e estabelecer relações entre a sociedade envolvente e os índios com fins de explorar a vasta riqueza natural mato-grossense. Nesse contexto estratégico, surgia o imaginário de que os indígenas se habituariam e mostrariam menos resistência ao trabalho e à “civilização”, apresentando assim a concepção de “fardo do homem branco” e sua “missão civilizadora”, bem apontada pelos autores como “construções da colonialidade do poder” (p.44), também discutida por Quijano (1992).

Mesmo com a utilização de práticas violentas, o processo educativo civilizador não obteve os resultados almejados pelos colonizadores, haja vista as resistências apresentadas pelos Bororos. Nesse contexto, apresenta-se o quarto capítulo “O trabalho como possibilidade de educar os indígenas”. Por meio dos registros de comunicação entre o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e a Diretoria Geral dos Índios, os autores destacam fragmentos importantes que relatam a dinâmica que envolvia o trabalho e a educação dos povos indígenas mato-grossenses. Os autores enfatizam a “preocupação com a inserção dos indígenas no mundo do trabalho na perspectiva ocidental, e ainda as estratégias anunciadas sobre a melhor forma de educá-los” (p. 66), evidentemente, para desenvolver o potencial de trabalho.

No quinto capítulo, intitulado “Iumbueré: Educação Apiaká”, de forma ousada, os autores compreendem o sentido que os indígenas atribuíam à educação. Oportunamente, destacam aspectos da educação tradicional indígena e, mesmo diante da escassez de fontes, conseguem relacionar importantes informações, como no caso dos Apiaká7 . Ressalta-se que as diferenças entre o modelo tradicional de educação Apiaká e o modelo colonial, definiam as percepções em relação a esse povo e, como bem lembra os autores, suas ações “variavam conforme e de acordo com os interesses que os guiavam” (p. 86), o que atribuiu à atitude Apiaká a hipótese de índios miscigenados.

Em “Um nome ocidental para um Terena: Alexandre Bueno”, os autores colocam em evidência não apenas a participação indígena num amplo aspecto, como fazem ao longo de todo o livro, mas referenciam um personagem indígena em específico. A partir da figura de Alexandre Bueno, construiu-se um imaginário positivo para o projeto colonizador, como do índio que poderia servir a província e estabelecer relações amigáveis. Os autores enfatizam que “educar por meio de um imaginário construinte e construtor de outras realidades é que importa observar no papel de Alexandre Bueno” (p. 100). Desta forma, entendem que o personagem em questão exacerbou as possibilidades de ter os indígenas como aliados, a partir da imagem do índio “civilizado”, entendedor do seu papel na hierarquia social dos interesses colonialistas.

O capítulo final, intitulado “A Educação pós-colonial em O Selvagem” encerra a publicação apresentando fragmentos da educação indígena a partir dos anos 70, do século XIX, com base na contraditória obra de Couto Magalhães “O Selvagem”, que por sua vez enfatiza a temática indígena e possíveis inserções enquanto trabalhadores à serviço da nação. Apropriadamente, os autores tecem devidas críticas à publicação de Couto Magalhães e buscam, de forma desafiadora, levantar elementos efetivos sobre educação na referida obra.

Considerando-se que ao longo da história de Mato Grosso os indígenas sempre foram observados a partir do potencial para o trabalho, o presente livro possibilita uma nova perspectiva para a compreensão desse processo, destoando da ultrapassada versão oficial que apresenta o segmento indígena enquanto silenciado e passivo. Dessa forma, os autores foram além das interpretações oferecidas pelos documentos organizados e reuniram as contradições e consonâncias que circunscrevem a perspectiva da colonialidade do saber e do poder.

O trabalho dos autores não foi simples, nem fácil, haja vista a dificuldade no levantamento de registro de memórias indígenas. A análise dos registros oficiais de correspondências entre a Província e seus pares possibilitou a captação de indícios que contemplassem também as perspectivas subalternas. Dessa forma, a publicação contempla tanto a educação para o indígena enquanto ferramenta “civilizadora”, quanto a educação tradicional, enfatizada através das lutas e resistências desses povos, agregando assim relevante contribuição à História da Educação mato-grossense e brasileira.

Este estudo aponta a inexistência de um modelo estático, em que sociedade indígena pudesse reproduzir apenas os padrões impostos pelos colonizadores. Através da troca de culturas e de experiências, o processo educativo indígena desveste estratégias, diferenças e identidades que perpassam o campo educacional e que se mostram fundamentais para a compreensão do mesmo. Diante do exposto, entendemos a necessidade de novos trabalhos que contemplem outros espaços circunscritos à educação indígena no Brasil.

Notas

2 O Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória-GEM/UFMT, tem se dedicado às investigações que contemplem à educação indígena no estado de Mato Grosso.

3 As fontes documentais foram levantadas e organizadas a partir dos acervos do Arquivo Público de Mato Grosso – APMT, Museu do Índio-RJ, Fundação Nacional do Índio – FUNAI-RJ e Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional – NDHIR/UFMT.

4 O uso da expressão gnose faz referência à perspectiva de Mignolo, “a gnose liminar, enquanto conhecimento em uma perspectiva subalterna, é o conhecimento concebido das margens externas do sistema mundial colonial/moderno; gnosiologia marginal, enquanto discurso sobre o saber colonial” (MIGNOLO 2005, p. 34).

5 Dentre as dezenas de populações indígenas que viviam na região que compreendia a província de Mato Grosso, os autores mencionam: Paresí, Nambiquara, Tapahanhuna, Apiaká, Kaiapó, Coroado, Bacairi, Kaiaby, Cautario, Paca, Arara, Mequem, Bororo, Guató, Kinikinao, Chamococo, Guaná, Caiuá.

6 A capitania de Mato Grosso foi fundada no ano de 1748.

7 O documento intitulado “Sobre os usos, costumes e linguagem dos Apiaccás, e descobrimento de novas minas na Província de Mato Grosso”, publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro possibilitou a extração de informações e indícios sobre o modelo Apiaká de educação.

Referências

MIGNOLO, Walter. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, Edgardo (Org.). A Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, 2005. p. 71-103.

PESOVENTO, Adriane; SÁ, Nicanor Palhares; SILVA, Sandra Jorge da. História da Educação Indígena e Colonialidade. Cuiabá: EdUFMT, 2012.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad/racionalidad. In; BONILHA, Heraclio. (Org.). Los Conquistados. 1492 y la población indígena de la Américas. Quito– -Bogotá: FLACSO-Tercer Mundo, 1992.

______. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, 2005. p. 227-278.


Resenhista

Letícia Berloffa Rodrigues – Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados – PPGH/UFGD.


Referências desta Resenha

PESOVENTO, Adriane; SÁ, Nicanor Palhares; SILVA, Sandra Jorge da. (Orgs.). História da educação indígena e colonialidade. Cuiabá: EDUFMT, 2012. Resenha de: RODRIGUES, Letícia Berloffa. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.15, n.27, p.121-124, jul./dez. 2013. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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