História da dança: vol. 2 antologia | Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand

A emoção é a sensação que define a escrita de um novo texto, o sentimento real e genuíno de todas as possibilidades dadas pela escrita, e a falsa impressão de controle por parte daquele que escreve mistura urgência com prazer. Escrever é de fato emocionante. Nossas verdades são ditas e reformuladas; novas descobertas são feitas e algumas antigas são reafirmadas; o processo de escrita é um processo no qual somos tomados pelo texto, já que, muitas vezes, sentimos que ele está sendo escrito por si só, ao mesmo tempo em que nos tornamos meros instrumentos para colocar as letras no papel.

Essa inversão de papeis pode ser facilmente sentida por qualquer um que se sinta tomado pela emoção de escrever. Muitas vezes planejamos um texto inteiro, montamos toda a sua estrutura, sabemos onde queremos chegar e, mesmo assim, ao final, deparamo-nos com algo completamente inesperado, um resultado bem diferente daquele que esperávamos ou que pelo menos desejávamos. O escritor é tomado pela escrita em uma relação de negociação constante.

É fato que essa não é uma particularidade exclusiva da escrita, mas de quase toda a produção humana. Em diversas manifestações, especificamente as estéticas, percebemos esse efeito dialético entre o “ser”, a “produção” e o “produto”, como bem salienta Daniel Gubbay em um texto de 2018, republicado no livro Histórias da Dança: vol.2 antologia (2020), ao dizer:

Flusser especifica que, no ato da fala, não apenas o falante não possui as palavras como é possuído por elas e por sua capacidade de guiar os movimentos (da boca). Do mesmo modo, ao dançar, o movimento não é simplesmente movido pelo corpo, mas também move o corpo (GUBBAY, 2020, p.g 245).

A relação dialética, então, passa a ser entre o movimento (inanimado), o ser humano e o resultado do ser humano em movimento, levando em conta, claro, que esse movimento jamais é totalmente controlado por aquele que o executa. Assim como a escrita, a fala e o corpo são possuídos por aquilo que se acredita manipulável: o movimento. E é ele que pode ser eleito, sim, como a discussão central no livro Histórias da Dança publicado pelo MASP. Movimento em seu sentido mais amplo, desde os movimentos políticos aos estéticos, dos movimentos dos corpos e aos próprios movimentos das escritas sobre as danças ao longo dos últimos noventa anos.

Como se estivéssemos em uma galeria de arte vendo uma exposição de artes plásticas, as curadoras Julia Bryan-Wilson, Olivia Ardui e Laura Cosendey nos levam por uma verdadeira visita à historiografia da dança. Os textos selecionados, que retratam um longo período de escrita da dança, evidenciam as mudanças e permanências em torno dos projetos estéticos, políticos e artísticos daqueles que se dedicam a escrever sobre a arte coreográfica.

Resultado de seminários apresentados no MASP, entre 2018 e 2020, Histórias da Dança, reúne uma série de discussões importantes para o campo de pesquisa em dança. Marcado pelo período da pandemia de COVID-19, o livro é produto do trabalho de pesquisadoras que, mesmo em situações adversas e nada ideais, compreendem a necessidade da divulgação e circulação científica das pesquisas sobre a arte.

A coletânea do MASP organiza-se de forma temporalmente linear, começando com a seleção de textos mais antigos até chegar aos mais recentes, apontando as inquietações provocadas pelo corpo em movimento ao longo da história da dança. A partir de um texto de 1944, de Katherine Dunham, é possível uma viagem no tempo, entre questionamentos e preocupações, pesquisas e propostas, mudanças e manutenção até finalizar com o texto de Lucas Pedretti, de 2020. Mas a temporalidade não é o único parâmetro a ser percebido pelo leitor. A organização do texto revela ainda o adensamento nas discussões, o aprofundamento teórico e, principalmente, a mudança de perspectivas acerca de temas em comum.

Os dois textos citados acima, o primeiro, que dá início à obra, e o que a finaliza, são representativos para as temáticas do livro, já que o discurso de Dunham, uma dançarina afro-americana e ativista das causas étnico-raciais, dá-se em um momento em que a própria dançarina sofreu com a repressão e a intolerância racial na cidade de Louisville nos Estados Unidos. Em Pedretti, o contexto não é muito diferente. Em Dançando na Mira da Ditadura (2020), o autor aborda a repressão policial aos bailes de música negra no Rio de Janeiro.

Em ambos os autores, há a preocupação de trazer à tona as questões políticas e sociais em torno do movimento, de maneira a se perceber que é preciso licença para os corpos que dançam e licença também para quem dançam. Dançar e falar sobre dança, o agir que impele o sujeito a se movimentar são atos políticos e, muitas vezes, o simples existir de determinados corpos é um ato político, já que muitas vezes são corpos destinados ao apagamento e deveriam permanecer invisíveis. Por isso que trazer os dois textos para coletânea configura-se um ato político, principalmente no Brasil, para além do contexto sanitário mundial. Vivemos, nos últimos anos, o sucateamento, com notório desprezo e desinteresse, das instituições de conservação e divulgação de arte, cultura e história. Vimos o aumento da repressão policial, da violência urbana e o recrudescimento de discursos de ódio e de intolerância. Mas vimos também, não desprovido de admiração, o cuidado da curadoria ao estabelecer contatos mais próximos com o público leitor e apreciador de dança.

Um outro elemento do “movimento que sempre gerou bastante debate nas discussões sobre dança é o seu registro e conservação. Importante frisar que não estamos debatendo o registro de espetáculos já que, hoje em dia, com o desenvolvimento das tecnologias audiovisuais, o registro de espetáculos tem se colocado em outro ponto de discussão, aquele da relação entre as linguagens (coreográfica e cinematográfica). O que se expôs na coletânea do MASP diz respeito aos registros de cadernos de artistas. A arte coreográfica, ou arte do movimento do corpo, diferente das outras linguagens artísticas, não consolidou, em seu desenvolvimento, uma forma única de registro coreográfico. Existe uma pluralidade de técnicas e formas de se fazerem os registros, mas nenhuma padronizada para todos os coreógrafos.

Essa discussão é bastante mencionada nos textos selecionados, trazendo diversos debates que abordam o tema do registro e construção criativa dos coreógrafos. É o caso do texto “O coreógrafo programador” (1977), de Analívia Cordeiro, em que uma técnica de criação coreográfica é apresentada através de um programa de computador que simulava os corpos dos dançarinos. Esse programa foi bastante utilizado em programas televisivos de auditório, onde o coreógrafo tinha que dar conta da intersecção da dança com o registro e transmissão da televisão.

Conforme seguimos a leitura dos textos, os temas sofrem um adensamento teórico-metodológico, apresentando discussões cada vez mais aprofundadas sobre os temas elencados no livro, inclusive, sobre as formas de registros das construções coreográficas, tal como nos textos “Quando o corpo se impõe” (1997), de Nadeije Laneyrie-Dagen, ou “Performances da oralitura: corpo, lugar da memória” (2003), de Leda Martins e ainda “Migrações das danças contemporâneas (2018), de Cláudia Muller. São todos textos que abordam diversos temas, mas que a questão da escrita e registro de corpos dançantes aparece com muita força.

Com perspectivas muito diversas, todos os textos buscam apreender que tipo de memória, escrita ou registro é possível de produzir com o corpo, com a escrita do corpo e com o registro desse corpo em movimento. Fato é que existe um consenso ou pelo menos um ponto de partida entre os teóricos que escrevem sobre a problemática do registro coreográfico. Ninguém o faz para os historiadores. A questão do registro é candente pela necessidade da linguagem coreográfica de gerar registros, pelo próprio desejo de aprofundamento teórico de si mesma, de conhecer a si mesma, de produzir outros efeitos e descobrir todas as suas possibilidades criativas.

Essa inflexão da linguagem coreográfica, e não só dela, mas do próprio campo da disciplina da história – que sempre trabalha com aquilo que é produzido pelo outro – é o ponto central de um dos textos de abertura, “Coreografando a história” (1995), de Susan Leigh Foster. De uma erudição impecável, Susan Foster aborda essencialmente os movimentos da história, partindo do princípio de que, sem corpo não há história. Foster faz uma verdadeira decupagem da linguagem coreográfica em seu conceito mais básico de movimento, intercalando-o com a sociologia do cotidiano e a repressão do corpo no dia a dia e como esses dramas, por muito tempo, foram sistematicamente suprimidos da dança de palco. A decupagem do movimento do corpo em formato artístico possibilita que a autora chegue, finalmente, à conclusão de que a história também é uma coreografia, ao abordar a história dos corpos, o corpo do historiador e o corpo na história.

“Como escrever uma história dessa escrita corporal, desse corpo que só podemos conhecer por meio de sua escrita? Como descobrir o que ele fez e então descrever suas ações em palavras?” (FOSTER, pg. 58, 2022, grifo original). Ora, apesar de, nos parâmetros de Foster, essa escrita ser impossível, caótica e por demais complicada, o que realmente o é, ela não deixa de ser buscada. A todo o momento, fazemos a escrita do corpo, a história do corpo, talvez, o corpo por si só seja a fonte mais básica para um historiador, porém a mais fugaz e de menor possibilidade de leitura, o corpo na história.

Esses corpos não estão imóveis, muito pelo contrário, são puro movimento, mesmo no passado. Quando pensados no passado, os corpos estão em ação. São corpos dotados de intencionalidade, que foram disciplinados, conjugados, colocados em movimento pela obrigação, necessidade, ou prazer, seja o da fonte estudada ou do próprio historiador, são corpos em ação, em devir incessante.

Nesse sentido, a escrita é um ato inerente ao corpo, seja ele em movimento ou estático, ser inscrito e escrito, ocorre naturalmente pela sua contingência em si mesmo, o tempo inteiro, incessantemente. Não existe corpo sem escrita corporal porque não existe corpo sem presença. Como diria Anatol Rosenfeld (1993), vivemos em um mundo de valorizações e desvalorizações, e dentro de uma cultura a existência de um corpo para outro corpo surge de um processo de reconhecimento e atribuição de valores positivos e negativos “o valorizar impregna nossa vida até o âmago” (ROSENFELD, 1993, pg.239).

Voltemos então à questão inicial: como registar essa escrita? É possível fazer esse registro? Como traduzir movimento, ou melhor, corpo em palavras?

Ninguém tem a resposta definitiva a essas perguntas ainda, e talvez nunca as tenhamos, mas os esforços têm sido gigantescos e gerado ótimos debates. Toda escrita sobre dança é uma tentativa de tradução de movimento em palavras. Nessa culminância de textos, ideias, propostas e questionamentos, temos uma história da dança, ou melhor, Histórias da Dança.

A coletânea do MASP dá um bom passo para a escrita da história do “movimento”, trazendo textos com diálogos temporais e temáticos que apresentam a diversidade de ideias e perspectivas sobre a linguagem artística. Discutindo desde elementos teóricos sobre a dança, a escrita da dança e o registro coreográfico, a discussões de espetáculos que jogam luz sobre racismo, feminismo, individualismo e a contingência corporal, todos temas muito candentes na contemporaneidade.

A coletânea de 2020 torna-se, então, uma obra essencial para aqueles que gostam e se dedicam à área de pesquisa e escrita da dança. O livro História da dança: antologia vol.2 nos dá uma prova definitiva da potencialidade das discussões em torno do corpo, movimento e dança. A pluralidade de ideias, debates, questões e asserções possibilitadas pela linguagem coreográfica são bem exploradas na coleção do museu paulistano. Escrita potente, realizada por grandes pesquisadores que pensam nas potencialidades da dança, tomados por essa escrita, manipulam o movimento, mas também são, eles próprios, o movimento.


Referências

ROSENFELD, Anatol. Estética. In: ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto II. São Paulo: Perspectiva, 1993.

MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO ASSIS CHATEAUBRIAND. História da dança: vol.2 antologia. Julia Bryan-Wilson; Olivia Ardui (Org.) – São Paulo: MASP, 2020.


Resenhista

Samuel Mazza – Universidade Federal de Uberlândia  https://orcid.org/0000-0001-5581-0981


Referências desta Resenha

MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO ASSIS CHATEAUBRIAND. BRYAN-WILSON, Julia; ARDUI, Olivia (Orgs.). História da dança: vol. 2 antologia. São Paulo: MASP, 2020. Resenha de: MAZZA, Samuel. Escrita e movimento, a evidência do corpo em Histórias da Dança: antologia vol. 2. Albuquerque. Campo Grande, v. 14, n. 28, p.189-193, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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