História da arquivologia no Brasil: instituições, atores e dinâmica social/Acervo/2021

Nas duas últimas décadas, a pesquisa em arquivologia no Brasil alcançou um crescimento significativo, traduzido em teses e dissertações produzidas em programas de pós-graduação de diferentes áreas do conhecimento. O amplo espectro de temas e abordagens, contudo, pouco contempla o que poderíamos nominar “história dos arquivos e da arquivologia”.

Este dossiê visa dar publicidade a um conjunto de pesquisas que tomam como objeto de análise o percurso histórico da arquivologia no país com o intuito de compreender sua institucionalização em diferentes dimensões e vertentes, identificando aspectos políticos, teórico-metodológicos, científicos, sociais e culturais. Em nossa perspectiva, esses estudos nos permitem perceber como o conhecimento arquivístico, traduzido em princípios teóricos, conceitos, métodos, técnicas e práticas − historicamente construídos − é indissociável das estratégias e projetos de seus principais atores, sejam instituições, associações, grupos ou indivíduos. Dessa forma, além das instituições, os textos contemplam trajetórias de homens e mulheres que, de diferentes maneiras, contribuíram decisivamente – com ideias, obras e ações – para a construção do campo da arquivologia no Brasil. No entanto, ainda há um longo caminho para alcançarmos uma visão mais global desse percurso histórico, de forma a rompermos os limites do eixo Rio-São Paulo.

Um aspecto que consideramos central para o crescimento das pesquisas compreende um esforço urgente de identificação, reunião, preservação e acesso a fontes documentais existentes em arquivos de instituições, tais como arquivos públicos, centros de memória, universidades e associações. Ao lado dos acervos institucionais, os arquivos pessoais de profissionais, gestores, pesquisadores e docentes da área podem servir como fontes inéditas e de valor incalculável para os avanços de uma historiografia da arquivologia brasileira. Outro recurso que pode contribuir nesse esforço é a realização de entrevistas com esses mesmos atores, as quais podem completar lacunas, revelar visões sobre os problemas enfrentados e até mesmo apontar a existência de fontes desconhecidas.

O dossiê abre com a entrevista de Marilena Leite Paes, arquivista e bibliotecária que construiu uma das mais destacadas trajetórias profissionais da área. Em seu depoimento, colhido entre 2006 e 2007, Marilena revisita o início da carreira na Fundação Getúlio Vargas (FGV), o longo período de concepção e implantação do seu sistema de arquivos, o papel desempenhado na criação e atuação da Associação dos Arquivistas Brasileiros (AAB) e sua contribuição para os trabalhos do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), na fase da “maturidade profissional”.

Maria Teresa Navarro de Britto Matos aborda a questão da formação dos arquivistas na Bahia, demonstrando o papel inovador cumprido pelo arquivo estadual e por seu então diretor, Luís Henrique Dias Tavares. Escapando do eixo geográfico mais comum, o texto, principalmente se visto em contraponto àquele de Angelica Alves da Cunha Marques, evidencia como pesquisas de cunho local podem ajudar a contextualizar melhor os dilemas e soluções assumidas pelos arquivos em todo o país.

Os dois textos seguintes exploram a trajetória do Arquivo Nacional no século XX, em diferentes períodos. Renata Regina Gouvêa Barbatho analisa a direção de Eugênio Vilhena de Moraes, durante a ditadura do Estado Novo, buscando identificar na condução da instituição práticas centralizadoras do governo Vargas e seu acionamento para atender duas faces do projeto de nação estado-novista: modernização da administração pública e exaltação da nação. Angelica Alves da Cunha Marques nos relata a missão técnica do francês Boullier de Branche, ao Brasil, durante a gestão do historiador José Honório Rodrigues (1958-1964) no Arquivo Nacional. Na visão da autora, esse “encontro” consolidou a cooperação arquivística entre a França e o Brasil, na formação de arquivistas e na institucionalização da disciplina.

A institucionalização das políticas públicas arquivísticas no âmbito do Poder Executivo estadual está no centro das preocupações de Danilo Cinacchi Bueno e Ana Célia Rodrigues. Docentes de arquivologia, os autores analisam os aspectos históricos da formulação e implementação dos sistemas de arquivos e programas de gestão de documentos e nos apresentam um amplo panorama da regulamentação dessas políticas públicas e seus impactos na promoção do acesso à informação.

O artigo de Camila Silva aborda a atuação do Museu e Arquivo Histórico Julio de Castilhos na formação de um acervo de documentos referente à guerra civil farroupilha, no contexto das comemorações do centenário desse acontecimento. A análise busca problematizar as disputas que marcaram a coleta e a seleção de registros, evidenciando quais foram os atores e os interesses que influenciaram esse processo.

Renato Crivelli e Maria Leandra Bizello introduzem no dossiê a temática dos arquivos pessoais. Analisam a institucionalização dos arquivos pessoais no cenário brasileiro através da análise de três destacadas instituições custodiadoras: o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc/FGV) e o Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast). Para compreender as práticas de seleção dessas instituições, antes da aprovação de suas políticas de acervo, os autores investigam os processos administrativos de incorporação de acervos desde a criação dessas entidades até 1999.

Os centros de memória e documentação cumprem papel fundamental na preservação de arquivos, sejam de natureza privada ou pública. João Paulo Berto nos oferece uma reflexão sobre os processos de formação e consolidação do Centro de Memória da Unicamp, criado em 1985 com o objetivo de promover a preservação da memória documental da cidade de Campinas (SP). O autor traça os percursos intelectuais de formação do acervo e os processos de arranjo institucional frente aos desafios de salvaguarda da história local e regional, e nos apresenta os debates sobre sua constituição, que remontam à década de 1970, destacando a atuação do professor José Roberto do Amaral Lapa (1929-2000), um dos responsáveis pela formação do Departamento de História da Unicamp e seu programa de pós-graduação.

Os periódicos científicos são componentes sociais que contribuem para a comunicação dos conhecimentos produzidos por uma dada disciplina. O artigo de Thaís Nodare de Oliveira e Renato Pinto Venancio é resultado de pesquisa que buscou identificar o interesse despertado pelos arquivos de organizações privadas no periódico Arquivo & Administração (1972-2014). Por meio da abordagem histórica, analisam exemplares dessa revista e de outras publicações que tratam do tema, procurando, assim, explorar a introdução dos arquivos privados como tema de interesse da arquivologia no Brasil, a partir da década de 1970.

Gabriel da Silva Barros e Clarissa Moreira dos Santos Schmidt examinam a conformação da terminologia arquivística brasileira entre os anos de 1972 e 2005, ao analisarem os processos de elaboração do Dicionário de terminologia arquivística, de Camargo e Bellotto (1996), e do Dicionário brasileiro de terminologia arquivística (Dibrate), do Arquivo Nacional (2005). Trata-se de estudo original que pode se inserir na “chave” mais ampla da história do desenvolvimento dos princípios, conceitos, métodos e técnicas da disciplina.

Ana Célia Navarro desvela as origens do Congresso de Arquivologia do Mercosul (CAM), iniciativa conjunta de professores da Faculdade de Arquivologia da Universidade Federal de Santa Maria (Brasil) e de profissionais do Archivo General de la Provincia de Entre Ríos e da Asociación de Archiveros de Santa Fé, ambos da Argentina. Ao mesmo tempo, a autora se propõe a historiar e analisar a presença brasileira no evento, que caminha para sua décima quarta edição em 2022 e possui um forte potencial de cooperação arquivística entre os países do bloco, com repercussões na América Latina e Caribe.

A resenha do livro Sem consentimento: a ética na divulgação de informações pessoais em arquivos públicos, de Heather MacNeil, assinada por Luciana Heymann, nos conduz a reflexões em torno da privacidade, dos direitos e da ética no contexto dos arquivos. A obra da professora canadense, cuja edição original data de 1992, mantém-se atual ao abordar o acesso a informações pessoais armazenadas por órgãos públicos, tema que alcançou contornos expressivos diante do avanço das tecnologias digitais e das possibilidades de produção, armazenamento e compartilhamento de arquivos por meio da internet. Trata-se de reflexão oportuna, no momento em que o Brasil entra na fase de implantação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), aprovada pelo Congresso Nacional em 2018.

O leque de objetos específicos e abordagens escolhidas apresentado neste dossiê demonstra o potencial da pesquisa em história da arquivologia, suas instituições, atores envolvidos e a relevância que podem ter, seja para entender a conformação atual da área como para traçar seus possíveis rumos. Aponta também para questões que merecem maior atenção, como a construção de conceitos e metodologias no Brasil, a partir de reflexões autóctones ou estrangeiras, a identificação e preservação das fontes para essa história e o relevante papel exercido por instituições e indivíduos nesse processo de construção do saber e da prática arquivística no Brasil, ultrapassando cronologicamente o período que se inicia na segunda metade do século XX. O dossiê serve, assim, não só como registro do trabalho científico atual, mas também como estímulo a novas pesquisas.


Organizadores

Paulo Roberto Elian dos Santos – Doutor em história pela Universidade de São Paulo e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz.

Vitor Manoel Marques da Fonseca – Doutor em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UFF.


Referências desta apresentação

SANTOS, Paulo Roberto Elian dos; FONSECA, Vitor Manoel Marques da. Apresentação. Acervo. Rio de Janeiro, v. 34, n. 1, p. 6-9, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [DR/JF]

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