História da África no Brasil: ensino e historiografia | Temporalidades | 2012
Neste ano de 2013 completam-se 10 anos do estabelecimento da Lei 10.639 | 2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da História da África e dos africanos no currículo escolar do ensino fundamental e médio, em todo território nacional. Portanto, este dossiê faz parte de uma nova guinada nos estudos africanos no Brasil, que passaram a ter mais contundência nos debates acadêmicos após 2003.
Como se explica que o interesse pela História da África no Brasil só foi despertado nas últimas décadas? Quais foram as razões que levaram à instituição da Lei que obriga o ensino dos conteúdos relativos à História da África? O fato de essa legislação ter sido criada para obrigar o ensino de determinado conteúdo revelou os silêncios e afastamentos em torno desse tema nos diversos níveis de ensino e respondeu às demandas dos movimentos sociais, principalmente do Movimentos Negros, que reivindicavam havia décadas a inclusão dos estudos africanos na grade curricular.
Após a extinção oficial do tráfico atlântico (1850), o Brasil suspendeu as relações políticas formais e as conexões comerciais com as antigas áreas africanas fornecedoras de escravos. As independências das colônias inglesas e francesas nos anos 1950 e 1960 levaram o Brasil a retomar os interesses políticos com o continente. O reflexo disso foi a abertura de representações consulares, as quais utilizavam jornalistas, intelectuais, escritores e personalidades famosas para atuarem nos Estados pós-coloniais, conforme registrou Raimundo Souza Dantas no seu livro África Difícil, baseado em sua “complicada” experiência como embaixador em Gana.
Durantes os anos 1960-75, a relação cultural e política contemporânea do Brasil com os países de colonização portuguesa (Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique), foi restabelecida através de ações não-governamentais em prol das lutas anticoloniais (lideranças de esquerdas africanas) e também pró-coloniais (do lado do governo brasileiro), como relata Jerry Dávila em Hotel Trópico.
Entende-se também que foi com a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 1996, que o Brasil deu início a uma nova fase de reaproximação com os países africanos de língua oficial portuguesa, baseada em relações culturais e cooperação técnica voltada para a preservação de uma herança cultural compartilhada.
Como bem observou a historiadora Beatriz Mamigoniam, os estudos sobre os africanos no Brasil podem ser resumidos em quatro fases. A primeira foi inaugurada pelo médico Nina Rodrigues (escreveu sua obra em 1906, mas somente publicada em 1932), o qual tinha o objetivo de identificar, através de pesquisa etnográfica junto aos remanescentes de africanos em Salvador, as marcas culturais deixadas pela presença africana no Brasil. Para tanto, indicou as regiões de embarque dos africanos escravizados, a distribuição deles no Brasil, inventariou língua, grupos étnicos e suas formas de organizações religiosas, apesar de influenciado pelas “teorias raciais”, pelas ideias de inferioridade dos negros e pela visão negativa da miscigenação.
A segunda fase foi marcada pela perspectiva do relativismo cultural de Gilberto Freyre, difundida nos anos 30, a qual reconhecia o caráter positivo da miscigenação e a valorização da herança africana, como pontos basilares da formação da identidade nacional brasileira. Essa perspectiva contribuiu para a visão de uma escravidão benevolente no Brasil. Por outro lado, também influenciou no surgimento do estudos “afro-brasileiros”, (anos 40 e 50) cujos principais expoentes foram Arthur Ramos, Manuel Querino e Edison Carneiro, dedicados aos temas das práticas religiosas afro-brasileira e suas origens africanas.
Nos anos 1960 e 70, a terceira fase foi marcada por estudiosos como Emília Viotti da Costa, entre outros, que combateram a ideia de “democracia racial” presente na obra de Freyre, e se preocuparam com as relações raciais e as experiências das populações africanas e seus descendentes no Brasil.
A quarta fase foi fortemente inspirada pelos estudos da história social da escravidão. Os historiadores brasileiros dos anos 1980-90 passaram a analisar novos tipos de fontes e outras formas de sociabilidade na escravidão. Os “escravos” deixaram de ser uma massa uniforme a partir dos estudos sobre identidades, tais como gênero, idade, ocupação, origem (africanos ou crioulos). Os trabalhos mais expressivos deste período foram os de Silvia Hunold Lara, Laura de Mello e Souza, Sidney Chalhoub e Manolo Florentino, entre outros.
Para esses autores, no entanto, a História da África não constituía um objeto próprio de estudo ainda.
A produção acadêmica no Brasil sobre a história da África remonta à década de 1960 com a publicação de José Honório Rodrigues Brasil e África: outro horizonte (1963) e a criação de três importantes centros de estudos africanos ligados às universidades: em Salvador, o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), criado em 1959; no Rio de Janeiro, o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), em 1973; e em São Paulo, o Centro de Estudos Africanos (CEA), em 1979. Os pesquisadores eram de várias áreas: linguistas, antropólogos, sociólogos e historiadores, entre outros.
Nos Anos 1980, a tese de João José Reis (1982) representou um novo olhar para a História da África, porque foi um dos primeiros trabalhos que considerou a dimensão Atlântica da escravidão ao analisar as sobrevivências e recriações culturais dos africanos do Golfo do Benin no Brasil. Nos Anos 1990, mais espeficamente na área de História, os estudos sobre África avançaram quantitativamente. As teses de Leila Leite Hernandez, Selma Pantoja e Valdemir Zamparoni, respectivamente defendidas em 1993, 1994 e 1998, foram as primeiras produzidas no Brasil, cujo tema era exclusivamente a história da África.
O livro A enxada e a Lança (1992) do embaixador brasileiro Alberto da Costa e Silva foi outro marco desse novo momento. Na mesma década, outros pesquisadores que pensavam a escravidão no Brasil passaram a reorientar suas análises para a dimensão Atlântica dos estudos africanos, de certo modo, voltadas para as tradições africanas no Brasil como as teses de Mariza Carvalho Soares (1997) e Marina de Mello e Souza (1999), e as publicações de Robert Slenes (1992).
Nos Anos 2000, predominou a tendência do final da década anterior, em que a obra O Trato dos Viventes (2000) de Luís Felipe de Alencastro é a grande referência. Nessa mesma perspectiva atlântica Brasil-África, menciono também as investigações de Juvenal Carvalho Conceição (2002), Lucilene Reginaldo (2005), Gabriela Segarra Martins Paes (2007) e Vanicléia S. Santos (2008), dentre outras. Ademais, outras pesquisas significantes retomaram as análises de sociedades africanas sem conexões com o Brasil, como as teses e dissertações de Patrícia Teixeira Santos (2000), Marcelo Bittencourt (2002), Anderson Ribeiro Oliva (2002), Alexsander Gebara (2006), Jacimara Souza Santana (2006), Gabriela Aparecida dos Santos (2007), Juliana Ribeiro da Silva (2008) e Rosana Andréa Gonçalves (2008), dentre outras.
No momento atual, pode-se pontuar um incremento de mais de cinquenta teses produzidas entre 2003 e 2013. Pode-se atribuir três fatores a esse aumento significativo de pesquisas: 1) o impacto dos historiadores que formaram uma nova geração de pesquisadores na graduação e nas pós-graduações em História na última década, principalmente em três Estados: São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia; 2) essa recente produção acadêmica na pós-graduação brasileira é um dos resultados imediatos da Lei 10.639; 3) os concursos específicos para a área de História da África, que passaram a existir após 2003, geraram um novo perfil de professores no Ensino Superior e nas pós-graduações.
O dossiê História da África no Brasil: ensino e historiografia pretende contribuir para o fortalecimento dos estudos africanos no Brasil e do tema do ensino de história da África nas escolas. Criada em 2008, a Revista Temporalidades se tornou um importante veículo de divulgação das investigações de jovens pesquisadores, produzidas a partir das reflexões desenvolvidas pelos programas de iniciações científicas e nos diversos programas de pós-graduação do Brasil e exterior. Desse modo, essa revista permite que as reflexões de seus autores sejam incorporadas aos debates em curso na comunidade acadêmica.
Acompanhei o rigor dos editores deste dossiê para que as normas fossem cumpridas em toda as etapas. Portanto, é por mérito que a Temporalidades tem avançado vertiginosamente no conceito dos órgãos avaliadores.
Agradeço ao Conselho Editorial da Revista Temporalidades pelo convite para organizar o dossiê História da África no Brasil: ensino e historiografia, especialmente a Taciana Garrido, sempre tão engajada com o tema. Assim como agradeço aos colaboradores. Espero que o leitor aprecie a entrevista da professora Leila Leite Hernandez que abre esse dossiê, o conjunto de artigos que abrange várias temporalidades das histórias da África e a resenha que aborda tema atual às relações Brasil-África.
Vanicléia Silva Santos
SANTOS, Vanicléia Silva. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.4, n.2, ago./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]
Teoria – Metodologia da História – Historiografia | Temporalidades | 2013
REIS José Carlos (Org d), Teoria – Metodologia da História – Historiografia | Temporalidades | 2013, Teoria da História (d), Metodologia da História (d), Historiografia (d), Temporalidades (Tpd)
Os membros do Conselho Editorial da revista do corpo discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, Temporalidades, queriam produzir um número com um dossiê sobre a área de Teoria e Metodologia da História e Historiografia, e procuraram-me para sugerir-lhes alguns temas. Eu sugeri a eles três temas:
1º) O que é teoria-metodologia da História? O lugar da teoria-metodologia no conhecimento histórico
Podem ser incluidos artigos sobre: as contribuições de Koselleck, Ricoeur, Hartog, Rüsen, Annales, Roger Chartier, François Dosse, Hayden White, Thompson, Foucault, Ranke, Dilthey, Nietzsche, Marx, enfim, dos clássicos do pensamento histórico.
2º) Teoria-metodologia e historiografia brasileira: tendências e referências
Quais teóricos-metodólogos têm sido mais citados, como são apropriados pelos historiadores brasileiros e por quê? Quem produz e publica pesquisas sobre teoriametodologia no Brasil? Quais as linhas de pesquisa da pós-graduação, os grupos de pesquisa, os autores isolados?
3º) História e Verdade: novas abordagens
Este é um tema clássico, mas que precisa ser sempre recomeçado, refeito. As relações entre as palavras e as coisas, entre a linguagem historiográfica e o passado, entre texto e realidade, como estão sendo abordadas, hoje? É o famoso Castigo de Sísifo, que não deixa de ser sempre agradável, instigante. Eles hesitaram muito, mas acabaram escolhendo o primeiro tema. Pediram-me também a indicação de um historiador reconhecido nesse domínio, para uma entrevista. Eu procurei na memória os nomes da “geração madura” de historiadores | as brasileiros | as: Jurandir Malerba, Temístocles César, Marieta de Moraes Ferreira, Ângela de Castro Gomes, Márcia D’Aléssio, Margareth Rago, Durval Muniz, José d’Assunção Barros, outros, e indiquei um deles. Eu pensei em historiadores brasileiros porque acho que precisamos ouvir a nossa própria voz, conversar entre nós mesmos, apesar da forte pressão pela internacionalização da universidade, que nos obrigará em breve a dar aulas em inglês!
Acredito que, dentro em pouco, o “entre nós” já será objeto de pesquisa histórica. Mas, como sempre, a “temporalidade” soprou a história desse número em um rumo diferente. Não apareceram artigos para o primeiro tema, mas apareceram bons artigos para o segundo. Tivemos de abandonar a primeira opção para adotarmos a segunda, mas não foi tanta mudança assim, porque estava também previsto e, talvez, devesse ter sido a primeira opção. Quanto à entrevista, não teremos um | a historiador | a brasileiro | a, porque os nossos “ambiciosos” alunos preferiram entrevistar o maior especialista no domínio da história da história, o professor François Hartog, da École des Hautes Études em Sciences Sociales, que generosamente os acolheu. O professor Hartog já recebeu dezenas de historiadores brasileiros na EHESS, em seus seminários, como orientador de doutorado e supervisor de pós-doutorado, em agradáveis conversas em seu gabinete, e a sua escolha para a entrevista foi perfeita.
Eis o percurso sinuoso, imprevisto, desse número da Temporalidades. Apesar das incertezas e linhas tortas, os “alunos escreveram certo”, fizeram um ótimo trabalho, produziram um belo número, que, agora, os leitores brasileiros e do planeta poderão desfrutar. Cordialmente,
José Carlos Reis – Professor do PPGHIS | UFMG.
REIS, José Carlos. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.5, n.2, maio | ago. 2013. Acessar publicação original [DR]