História cultural & multidisciplinaridade | Fênix – Revista de História e Estudos Culturais | 2007

A história cultural está na ordem do dia. Seu território é vasto, parecendo mesmo não ter limites. Louvada por uns, que a consideram o melhor quinhão da história para ser trabalhado – espécie de “crème de la crème” para o pesquisador –, é seriamente atacada por outros, que a acusam de “modismos”, de apresentar uma certa “inconsistência teórica” ou mesmo chegam a taxa-la com esta palavra que já virou insulto: “pós- moderno”…

A presença marcante dos estudos de história cultural entre os historiadores no Brasil se fez sentir nas duas últimas décadas, expressas na preocupação de seus pesquisadores com questões de natureza teórica e metodológica, bem como da renovação temática de seu campo de trabalho.

Tais constatações se dão a partir dos inúmeros congressos, publicações, pesquisas, dissertações e teses que dão conta desta abordagem e que, no Brasil, representam cerca de 87% da produção nacional, o que manifesta o seu caráter up-todate.

E, neste processo de renovação do campo historiográfico, caberia identificar a História Cultural como uma twilight zone, para o que seria válido remeter ao conceito de fronteira, como viés provocativo de discussão. Isto implica entender a História Cultural como um espaço de tensão e como basculante entre distintos territórios de percepção do mundo. Ora, a fronteira, enquanto conceito, pode ser pensada nesta sua dupla dimensão simbólica: como passagem, abertura, consecução e interpenetração e como fixação de limites e divisões que encerram e/ou fracionam.

Coube ao século XIX proceder à clara demarcação das fronteiras entre as ciências humanas, fossem aquelas mais antigas, como a filosofia e a história, fossem as de surgimento mais recente, no próprio decorrer deste século, como a sociologia e a antropologia. E, neste contexto oitocentista, como é sabido, a história se afirmou como a “rainha das ciências”, afirmando a autoridade de sua fala sobre o passado e construindo o leque de suas “ciências auxiliares”.

O final do século seguinte viria assistir um movimento inverso: nas últimas décadas do século XX, as fronteiras como que se diluiram, revelando o seu caráter de basculante e de interpenetração. Inaugurava-se a era da multidisciplinaridade, como resposta à complexificação do real e à busca de novos conceitos e abordagens.

E, nesta nova situação de abertura das fronteiras entre as ciências e as artes, a história cultural abriu-se também à interdisciplinaridade e à comunicabilidade entre os diferentes discursos que falam do real, a permitir a viabilidade de um verdadeiro diálogo multidisciplinar. Entretanto, nesta abertura, a história cultural não abriu mão de seu território, como que a demonstrar que a outra conotação da fronteira – a de dividir, fechar, encerrar – não estava de todo apagada: nesta abertura para os outros campos discursivos, a história preservou seu lugar como o reduto a partir do qual se estabelece a pergunta e se constrói o objeto, problematizando o real.

Ou seja, a abertura multidisciplinar não implicar em perda de identidade ou de formação especifica. Pelo contrário, a multidisciplinaridade, enquanto atitude intelectual, implica em soma, em acréscimo de experiência e de conhecimento, em abertura do olhar e em ampliação das capacidades de interpretação da realidade.

É sob este enfoque que se apresentam estes textos que compõem o dossier HISTÓRIA CULTURAL & MULTIDISCIPLINARIDADE, fruto de um simpósio que teve lugar no XXIV Simpósio Nacional da ANPUH realizado em 2007, em São Leopoldo – RS, sob a coordenação de Antonio Herculano Lopes, Monica Pimenta Velloso e Sandra Jatahy Pesavento e organizado pelo GT-Nacional de História Cultural.

A proposta foi de aceitar o desafio da multidisciplinaridade, a partir da idéia de que a realidade é construída partir de múltiplos discursos e linguagens que dialogam entre si e trocam sinais. Neste contexto, o historiador da cultura tem interlocução privilegiada com vários outros domínios do conhecimento, e de maneira especial por aqueles que se situam nos domínios das artes, como formas preferenciais de expressão das sensibilidades através do tempo.

Isto não quer dizer, sem dúvida, que o historiador se distancie do seu campo ou que acumule formações distintas, necessitando tornar-se um expert em múltiplas áreas. Mas é impossível, contemporaneamente, para a história cultural, ignorar o poder de “dizer o mundo” da literatura e da poesia, por um lado e, da pintura, da fotografia, do cinema, da história em quadrinhos e da arquitetura, de outro, isto sem falar no teatro, esta forma privilegiada de dar a ver e a ler, através do texto, da fala e do corpo, ou ainda da música, a compor um registro fino de sensibilidade sobre o real.

Enfrentar o desafio de aventurar-se por estes campos se encontra no cerne da multidisciplinaridade, que obriga o historiador a voltar-se para outros olhares, discursos e expressões da realidade. Sem dúvida, este é um plus a ser considerado e uma tarefa extra na sua formação, mas para o conforto dos seguidores de Clio, como já foi apontado, as questões lançadas, orientadoras desta aventura, são sempre aquelas formuladas desde o campo da história.

A rigor, todas estas linguagens que formam a rede multidisciplinar poderiam ser apreciadas através de um conceito nodal para a história cultural que é o da representação, conceito que abriga, em si, uma condição de fronteira e aponta, forçosamente, para a multidisciplinaridade.

A representação, no âmago de seu entendimento – “estar no lugar de” –, já apresenta em si uma condição basculante e de imprecisão, pois assinala uma relação ambivalente e ambígua entre ausência e presença. Ambivalente porque a representação é tanto exposição e presença quanto ausência e referência a um outro distante. É, pois, ser e não ser, ou, no limite, é ser ela mesma e ser um outro. E, neste ponto, revela-se a sua ambigüidade, ou seja, a insinuação de um deslizamento de sentido e de uma manifestação de uma terceira idéia/ser oculto. Twilight zone, sem dúvida, que joga com uma tríade: o referente, a imagem e o significado.

Ora, sendo o texto histórico representação, ele pretende trazer informações sobre uma realidade exterior. No caso, um referente que já não mais existe e que não pode ser sujeito à verificação. Isto passa a se tornar problema quando se tem em conta que a narrativa histórica é um tipo especial de representação, porque estabelece um pacto com a verdade.

Este pacto se expressa no desejo de atingir o maior grau de proximidade com uma temporalidade já transcorrida. Esta é uma espécie de meta a alcançar, reiteradamente perseguida. Por outro lado, este acesso, uma vez obtido, daria ao historiador da cultura aquilo que viria a constituir a captura de uma tradução sensível da realidade: como os homens, em determinado momento da história, foram capazes de perceber-se, a si próprios, à sociedade e ao mundo.

Chegar até este reduto de investimento da pesquisa – capturar as formas construídas no tempo para dar significação ao real – implica dizer, em outras palavras, que o historiador teria encontrado, finalmente, o seu objeto, atingindo a compreensão do próprio espírito de uma época. Entretanto, esta certeza mesma – ter chegado lá, atingindo o momento único, o “aqui” e o “agora” aurático da temporalidade transcorrida – parece ser uma alegria negada ao historiador. Como diz Paul Ricoeur, o problema da representação “é a cruz do historiador”1. O fato de trabalhar com um referente ausente – o passado – e só ter acesso a ele por imagens ou palavras que, por sua vez, também representam este referente, causa problemas ao historiador por causa daquele seu pacto com este passado: “querer” chegar “”…

O dilema da história enquanto discurso sobre o passado situa-se, pois, neste problema decorrente da situação de fronteira trazida pela representação: ser reconstrução, utilizar recursos fictícios, reconhecer a existência da diferença entre res factae e res fictae, como assinala Koselleck2, mas, mesmo assim, buscar, se não a verdade, a verossimilhança.

E, neste ponto, o historiador da cultura tem que admitir que muitos outros discursos que falam do real podem não apenas ajudar na compreensão do passado como são capazes de iluminar a sua compreensão do mundo a partir de outros viezes. Tais olhares e saberes distintos não se apresentam como meros “auxiliares” da história, mas como parceiros na tarefa de decifração do real acontecido.

O historiador da cultura de hoje não pode ignorar esta presença e este intercâmbio de representações, na base das quais ele acabará construindo a sua, sempre no desejo de chegar, o mais possivel, naquele reduto “estrangeiro” do acontecido, a que chamamos passado. Desta confluência, dialogo e situação basculante de fronteira intelectual, nasce a multidisciplinaridade.

Notas

1 RICOEUR, Paul. L’écriture de l’histoire et la répresentation du passé. Annales. Histoire, Scieces Sociales, Paris, Armand Colin, n.4, jul.-ago. 2000. p.731 e 736.

2 KOSELLECK, Reinhardt. L’expérience de l’Histoire. Paris: Gallimard, Le Seuil, 1997.


Organizadora

Sandra Pesavento – Professora Titular de História do Brasil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: sandrajp@terra.com.br


Referências desta apresentação

PESAVENTO, Sandra. Apresentação. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v.4, n.4, out,/dez. 2007. Acessar publicação original [DR]

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