História Cultural / Embornal / 2014
O estudo das “representações” como trilha da História Cultural
Este número da Revista Embornal começou a ser pensado em forma de dossiê sobre a História Cultural. Imaginava-se um amplo painel da produção nacional ligada a esse campo de reflexões. Chamada pública realizada, iniciado o envio dos textos, percebeu-se a dimensão da tarefa aspirada. Primeiro, pela amplitude e complexidade do que se propunha. Dificilmente se obteria êxito em tarefa tão vasta se não fosse feito um planejamento de médio e longo prazo, tempo que não dispúnhamos. Depois, pela complexa tarefa de selecionar os textos remetidos, buscando relativa unidade de seus variados contextos de produção, suas diferentes e complexas temáticas e seus diversos usos documentais. Mais: apesar da razoável quantidade de textos enviados, não possuíamos textos com objetos próximos o suficiente para a constituição de um conjunto denso e sustentável de temas.
Diante disso, resolvemos considerar esta publicação não como um dossiê, e sim como uma espécie de ensaio, uma provocação que suscitasse novas e variadas questões.
Dessa forma, surgiu este número da Revista Embornal, voltado para a história cultural, com seus usos e leituras, suas apropriações e abordagens, em algumas de suas possibilidades de pesquisa e enunciação. Procurando nesta edição, contudo, uma trilha possível, evocamos o conceito derepresentação, aqui empregado de diferentes formas e articulado a temáticas e materiais diversos.
Os onze artigos selecionados correspondem ao intuito supracitado de provocação, instigando o aprofundamento das diversas possibilidades de compreensão e uso do conceito de representação e, consequentemente, da história cultural.
Assim, este número se inicia com uma prazerosa reflexão sobre a praia e a construção de papéis e significados de corpos de homens e mulheres, ancorada nos estudos da visualidade e, em última instância, das representações. Gisela Kaczan e Graciela Zuppa analisam, em “La playa como escenario visual de historias culturales. Argentina (1920-1940)”, cenas e práticas existentes na costa sudoeste de Buenos Aires.
O uso documental das imagens aponta uma análise reveladora dos lazeres e prazeres, das muitas formas de elaborar socialmente essas práticas e, sobretudo, de se relacionar com o mar.
Em seguida, numa transição para o espaço da festa e de suas manifestações, temos dois artigos, um, sobre a festa junina na imprensa da cidade de Belém, escrito por Elielton Benedito Castro Gomes e intitulado ”O São João dos cronistas, memorialistas e jornalistas: festa junina e imprensa em Belém nos anos 1950”, de onde emanam crônicas, romances e matérias jornalísticas que buscavam valorar essa manifestação em seus aspectos “tradicionais”, revelando a constituição saudosista de um “São João de antigamente”.
Outro, mais recuado no tempo, de Ana Luíza Rios, intitulado “Mercadores de partituras e críticos musicais: Música urbana e tradição em Fortaleza (1897-1949)”, no qual a autora, inspirada nas reflexões de Néstor Canclini, define a arte a partir da intervenção de vários sujeitos (marchands, jornalistas, críticos e mercadores de partituras), que delineiam nossas convenções sobre esse campo do sensível.
Cotejando a produção “crítica” do período com as partituras editadas nas casas de músicas e/ou grafadas por copistas, a autora aponta a existência de “uma escrita de tom caracteristicamente nacionalista”, dada a influência do modernismo de Mário de Andrade. Assim, com um uso documental distinto – mais uma iluminação da História cultural –, ela discute uma música urbana sob a ótica de tradições inventadas.
Depois, inicia-se uma sequência de cinco artigos, que refletem sobre gênero e educação, morte, doenças e panaceias, uma revolta e imprensa gay. Em comum (sobretudo os quatro últimos), além das representações, uma atenção voltada aos usos e importância dos periódicos.
Alfrancio Ferreira Dias e Maria Helena Santana Cruz assinam “A docência sob suspeita: as representações de gênero no campo da educação”. Por meio de entrevistas, os autores analisam trajetórias familiares e profissionais de professores do Colégio Estadual Atheneu Sergipense, a fim de compreender como as identidades de gênero se relacionam com o trabalho docente e ao cotidiano escolar.
Pedro Holanda Filho, em “Representações sobre a morte em Fortaleza-Ce (1920-1940)” investiga, por meio da obra de dois memorialistas, representações e práticas fúnebres em Fortaleza, capital do Ceará, pontuando que alterações ocorridas na cidade implicaram em novas formas de ritualização de atos fúnebres e de significação sobre a morte.
Em “Das moléstias e dos prodígios: anotações sobre doenças e panaceias no jornal ‘A Campanha’ (1900-1934)”, Lúcio Reis Filho e Graciley Borges analisam o imaginário da saúde e da doença no sul de Minas Gerais, salientando o papel da imprensa na difusão de valores morais e comportamentos sociais alinhados com a ciência médica, a indústria farmacêutica e os projetos de poder das elites mineiras. Segundo os autores, a urgente preservação e divulgação desse acervo documental e a reflexão sobre o papel dos jornais na construção da vida social e política de Minas Gerais são prioridades – que eles atendem.
Eduardo Barreto de Araújo, em escrito intitulado “A construção da revolta: as representações da revolução de 1930 na revista do Globo (1929-1932)”, além do marco histórico, explica como foi construída, no supracitado veículo, a imagem de Getúlio Vargas em sua dimensão de político regional e líder da revolução. Discorre, ainda, acerca das alianças políticas no Rio Grande do Sul que culminaram nesse acontecimento marcante da vida política republicana.
No artigo intitulado “História cultural e algumas reflexões: imprensa gay como fonte e objeto histórico”, Victor Hugo S. G. Mariusso, além de refletir sobre a imprensa e a história cultural – inspirado em autores basilares desse campo, como Roger Chartier, Raymond Williams e Stuart Hall –, debruça-se sobre uma sexualidade vivida de formas outras.
Lastreado no jornal “Lampião de Esquina” e nas revistas Sui Generis e ……., o autor examina identidades de gênero e orientações afetivo-sexuais, buscando entender a construção de uma normatividade sobre a erótica homossexual que, a seu ver, exclui a passividade e reitera a virilidade, no que denominou de “homonormatividade”.
Por fim, em uma última sequência de artigos, apresenta-se uma provocante reflexão sobre a ação dos intelectuais na Amazônia, no Ceará e na Europa.
Em “Heróis do deserto: notas sobre a intelectualidade amazonense (1920-1960)”, Vinicius Alves do Amaral desconstrói o “provincianismo” e os “anos de crise” do Amazonas, especialmente no campo artístico e intelectual, entre o fim do boom da borracha e a criação da zona franca de Manaus, dois momentos-chave da região.
Rycardo Wylles Pinheiro Nogueira se volta para um político, escritor e educador atuante na cidade de Aracoiaba, no Ceará, para entender a escrita de si. Em seu artigo “Escrita de si, memória dos outros: narrativa autobiográfica em Salomão Alves de Moura Brasil”, a personagem se expressa como um “eu narrado” que é o “eu da história”, pois o que faz em vida o possibilita atuar no “espaço do papel”, promovendo memórias que, em alguma medida, guardam intimidade com a memória coletiva, entrelaçando a história dele com a da cidade.
Para finalizar este número da Embornal, André da Silva Ramos colabora com o artigo “Robert Southey e o redescobrimento de Portugal: a valorização da herança gótica europeia”. O autor discute as formas como o historiador inglês refaz ou reconfigura suas noções acerca da pátria lusitana, a partir da publicação de Letters written during a short residence in Spain and Portugal (1797), tendo como pano de fundo sua atuação como resenhista na Grã-Bretanha, onde teria ampliado sua erudição. Simpatizando com a herança gótica, reavalia a contribuição de Portugal ao estilo, meditação que teria influenciado o direcionamento de sua carreira literária.
Para concluir, caros leitores, chamamos a atenção, novamente, para a diversidade temática, os variados usos documentais e as singulares interferências metodológicas que revelam a vivacidade e a pulsão de uma historiografia em pleno processo de constituição e em meio ao desafio de se reinventar.
Esperamos que apreciem a leitura.
Messejana, fevereiro/março de 2015.
Francisco José Gomes Damasceno
Sander Cruz Castelo
Lídia Noemia Santos