Há um chiste que diz que a vista mais bonita de Niterói é o Rio de Janeiro. Tem-se aí uma óbvia provocação que enfurece os niteroienses: subentende-se que a cidade, separada do Rio pela Baía de Guanabara, não teria belezas naturais, restando a seus moradores admirar os contornos da cidade vizinha. Os niteroienses respondem ao gracejo dizendo que têm do Rio de Janeiro o que há de melhor, a visão panorâmica, dando a entender que de perto a capital do Estado deixa a desejar. Não é tarefa difícil desmentir a falta de belas paisagens em Niterói e de pormenores bonitos no Rio de Janeiro. Regionalismos à parte, o que ressalta na troca de gentilezas entre cariocas e niteroienses é o ponto de referência adotado na observação. Diante de uma tela monumental, o observador pode aproximar a vista e reconhecer o talento do artista pelos detalhes da pincelada, mas teria dificuldade de ver o conjunto da pintura; de modo contrário, poderia se afastar e ver a tela inteira, mas perderia os detalhes que só a proximidade torna visíveis. Em ambos os casos, há limites para o bom senso: com o nariz quase tocando o quadro, a vista embaçaria e nada seria apreciado, assim como não teria nada a admirar caso estivesse demasiado distante e o quadro monumental se tornasse um ponto perdido no horizonte.
Nas últimas décadas, a historiografia privilegiou a observação minuciosa das pinceladas. Não raro, enfurnou o nariz na tela. Quase não atravessava a Baía de Guanabara para ver o Rio de Janeiro ou Niterói de outro ponto de vista. Em termos epistemológicos, a tendência a inventariar o pormenor até o ponto de perder a visão de conjunto da vida humana resultou de três vitórias teórico-metodológicas obtidas no interior das Ciências Sociais na década de 1970: o triunfo da micro-história sobre a segunda geração dos Annales, o da história agrária nacional sobre a perspectiva histórico-mundial do capitalismo e o da econometria baseada na teoria da escolha racional sobre a escola histórica alemã de pensamento econômico. O vocábulo triunfo não significa que um dos lados levou de vencida porque tinha razão ou exibiu superioridade epistemológica. Como sói acontecer nas ciências em geral, vence quem sabe melhor polarizar com as grades interpretativas de acordo com tendências institucionais conjunturais, recebendo maior aporte financeiro continuado das agências internacionais e nacionais de pesquisa e acumulando mais citações nos programas de pós-graduação estratégicos em nível mundial. Foi nesse sentido, institucional, que o micro venceu o macro.
O problema é que a pequena escala de observação, ao colocar o cientista social no corpo a corpo com dados empíricos, lhe dá a falsa sensação de domínio sobre a realidade. Achando que podiam formalizar encadeamentos causais da mudança social consultando apenas seu repertório de fontes, pesquisadores desvalorizaram as teorias, presumiram que os processos de transformação social começavam e findavam dentro do Estado nacional, que afinal produziam as fontes estudadas, e reduziram as múltiplas dimensões do processo social ao ponto de vista das pessoas observadas, aquelas que apareciam nas fontes. Aos poucos prevaleceu a noção de que os estudos espaço-temporalmente restritos, como os da micro-história, já iluminavam processos globais, tornando supérfluas as grandes abordagens. Nas palavras de Giovanni Levi, a micro-história, “reduzindo a escala de observação e concentrando a atenção através de microscópio”, leva à “reconstrução de uma história total” (2018) – como se o particular contivesse o universal por ser sua cópia fractal mínima e perfeita. Enunciados assim supõem a falácia da transversalidade espaço-temporal das escalas da vida social: o que vale no micro vale no macro, a lei da minha casa é a lei da macroeconomia que é a lei do Estado que é a lei da economia mundial (como sonharia Douglass North). Dessa forma, aliou-se um procedimento cômodo a um conforto ético. Quem estudava o Rio de Janeiro falava do Rio, quem estudava Niterói, de Niterói, e assim estava bem, pois a observação exclusiva do Rio explicaria Niterói e a de Niterói, o Rio. Era como se a Baía de Guanabara sequer existisse.
Mas a História tem lá suas ironias – ou, em linguagem hegeliana, astúcias. Nas mesmas décadas em que os cientistas sociais apostaram no empiricismo antiteórico, na capacidade superlativa de ação dos indivíduos e no nacionalismo metodológico, a Guanabara foi completamente transfigurada: surgiram novos padrões de integração internacional dos mercados de commodities, as estratégias de acumulação mundial de capital, com novas formas de propriedade e de extração de trabalho, se transformaram radicalmente, as desigualdades globais atingiram níveis inéditos de magnitude, o eixo dinâmico da economia mundial capitalista se deslocou para o Indo-Pacífico, a crise socioecológica do planeta caminhou para seu ponto de não retorno e a institucionalização global dos regimes representativos abalou-se em seus núcleos mais vivos e vibrantes. Era como se estivéssemos lendo a paráfrase adaptada de um poemeto contemporâneo: enquanto o microhistoriador discutia com o historiador cliométrico qual deles era capaz de bater o historiador braudeliano, os donos do poder mundial tiraram ouro do nariz. Isso tem levado à convicção crescente de que as profundas, massivas e incontroladas transformações socioecológicas, econômicas e políticas da vida humana solicitam, mais uma vez, as lentes de grande angular e a reflexão teórico-metodológica das Ciências Sociais. No transe agudo da crise mundial que vivemos, cabe às Ciências Sociais oferecer ferramentas alternativas à modelagem matemática e à linguagem da economia, hoje predominantes na formulação de políticas públicas de amplitude nacional e global, para moldar os conceitos, a sensibilidade e as práticas do mundo no século 21.
Ao contrário do que dão a entender os dichotes entre Rio de Janeiro e Niterói, os pontos de referência não são epifenômenos da natureza. Eles se oferecem e são acolhidos pelas condições sociais de produção dos discursos em preclara relação com nossos dilemas e conflitos do presente da vida social. Não é motivo de surpresa que, nesse momento específico de nossa experiência histórica mundial, abordagens exclusivamente microescalares tenham criado uma sensação de dissonância cognitiva; que passem a conviver cada vez mais com quadros conceituais montados para iluminar processos mais amplos, dada a crescente percepção de que os objetos diretamente observados não são autoexplicáveis nem esgotam a explicação da totalidade processual que é o capital em seu movimento de autoexpansão globalitária. Admitida a dimensão alegórica das piadas entre Rio de Janeiro e Niterói, parece cada vez mais necessário considerar a Baía de Guanabara não como espaço que separa dois polos que se explicam por si mesmos e se antagonizam pelos chistes regionalistas; nem como um vácuo neutro através do qual seria possível estabelecer semelhanças em duas unidades distintas (as duas cidades propriamente ditas) ou diferenças em dois contextos semelhantes (duas avenidas análogas, cada uma em cada cidade). É como se os cientistas se dessem conta de que o Rio de Janeiro só é o Rio por causa de Niterói e que Niterói só é Niterói por causa do Rio. Nessa mirada, a Baía aparece como o espaço-tempo constituído e constitutivo das relações que formam mutuamente as duas cidades em suas componentes mais elementares: mercado imobiliário, mercado laboral, fluxos do turismo, rotas do tráfico, padrões culturais, governança e, claro, as pilhérias recíprocas. Comparar não é apenas isolar, justapor e contrastar, como acredita a imensa maioria dos historiadores profissionais; é submeter enquadramentos, conceitos e categorias a um descentramento espaço-temporal radical até que se possa redimensionar escalas, propor problemáticas teórico-metodologicamente sólidas e formalizar novas modalidades de encadeamento causal.
Foi precisamente essa disposição de espírito, essa sensibilidade intelectual despertada pela crise do capitalismo histórico como nós o temos conhecido nos últimos séculos, que garantiu a excepcional acolhida do dossiê História Comparada e Sistemas Sociais. Na Chamada de Artigos, provocamos especialistas a elaborar uma reflexão sobre as potencialidades da História Comparada para a compreensão da formação, desenvolvimento e dissolução de grandes sistemas sociais, isto é, para a mudança social em larga escala na longa duração. O resultado da convocatória não poderia ser mais consistente com a proposta que orientou a redação dos artigos deste número da Revista de História Comparada. Alguns autores, como Jeff Fynn-Paul (Universidade de Leiden) e Roy Bin Wong (UCLA), encararam o desafio propondo a validade de um “quadro referencial comparativo mais amplo” em um contexto epistemológico “pós-teórico”. Sem navegar nos mares das teorias mais vastas das Ciências Sociais, como marxismo e weberianismo, Bin Wong analisou as formações socioestatais dentro do que chama de “regiões mundiais”, uma zona intermediária maior que um país e menor que o globo que define a inscrição de um espaço particular na geopolítica global; e Fynn-Paul propôs um modelo – intitulado Análise de Amplos Sistemas Sociais – como a modalidade mais promissora na era dos estudos de História Global. Outros colaboradores, como Alexandre Moraes (UFF) e Alfred Rieber (Central European University), enfrentaram o problema do eurocentrismo, esse fenômeno cultural que se manifesta sub-repticiamente na busca científica autocongratulatória das raízes multiculturais, individualistas, racionais e civilizadas do mundo contemporâneo. Rieber atacou-o pelo espaço, desconstruindo a metageografia imaginária do pós-guerra; Moraes, pelo tempo, examinando a apropriação seletiva dos clássicos antigos para a composição da autoimagem da Europa na modernidade. Como, aliás, mostra Anita Prestes em seu ensaio sobre o peso do capital financeiro nas ditaduras brasileiras do século 20, a comparação desnaturaliza o que o espaço e o tempo presentes fazem parecer inevitável e consequente. Seguindo-se o fio de sua argumentação, percebe-se melhor que a reforma da previdência de Jair Bolsonaro é a maior espoliação em massa de direitos individuais no Brasil desde a compressão salarial dos primeiros governos militares na década de 1960.
Verónica Secreto (UFF), Leonardo Marques (UFF) e Waldomiro Lourenço (UFSC), por sua vez, revisitaram distintas modalidades de comparação atualmente praticadas em todo o mundo na grande área das Ciências Sociais: comparação formal, comparação integrada, história entrelaçada. Enquanto Secreto realçou a assimetria global nas condições de reprodução do conhecimento acadêmico ao indicar que a riqueza do pensamento social latino-americano do século 20 é comumente ignorada nas produções do Atlântico Norte, vendidas como se fossem o marco zero da inovação científica, Marques e Lourenço sugeriram que os estudos das transformações de larga escala na longa duração devem combinar diferentes modalidades de comparação, das conexões empíricas de eventos à conceituação de processos estruturados, para aumentar sua eficiência analítica. Por fim, Prasannan Parthasarathi (Boston College) e Phillip McMichael (Universidade de Cornell) refletem sobre o modo com que as Ciências Sociais podem contribuir para conceituar e frear os efeitos devastadores do capital sobre as condições ecológicas da vida humana. Valendo-se de seu método de comparação incorporada, McMichael explica por que as políticas de desenvolvimento sustentável, baseadas na linguagem de valorização do capital, não podem curar o problema ecológico mundial que prometem combater. Já Parthasarathi, refazendo o fio argumentativo de seu livro sobre a Grande Divergência, argumenta que o desenvolvimento das instituições econômicas no longo prazo depende de ações políticas, sugerindo, implicitamente, que apenas a redefinição da natureza do Estado e das relações de poder na democracia podem resgatar a humanidade de sua dança à beira do abismo
Na convocatória para este dossiê, advertimos que não tínhamos a ambição de esperar das respostas à nossa provocação um “procedimento teórico-metodológico de validade universal para o estudo das relações humanas”, uma espécie de aurora boreal para um mundo em decomposição acelerada. Ainda assim, o leitor que mergulhar nas páginas seguintes sairá mais bem aparelhado para questionar algumas falácias teórico-metodológicas de uso corrente na historiografia e nas Ciências Sociais tanto do Brasil como de outros países. Demolir enunciados e procedimentos subteorizados – como a falácia da transversalidade espaço-temporal das escalas da vida social, a metageografia do pós-guerra, a fetichização da comparação formal – é a primeira condição para que cientistas sociais desenvolvam um sistema de diagnósticos adequado aos desafios do século 21. Quando lançamos o convite para este dossiê, dissemos que a análise comparada, sendo “um promissor exercício de reunificação epistemológica do conhecimento”, era extremamente necessária “num mundo cujo futuro parece depender cada vez mais da nossa capacidade de interpretar e alterar o curso de processos globalitários”. Se essa capacidade de entender e agir depender da superação do nacionalismo metodológico, do individualismo metodológico e do pensamento abstrato fundado em empirismo antiteórico, este dossiê terá dado sua pequena contribuição ao grande esforço coletivo de crítica e autocrítica que o capital do século 21 parece exigir, a todo instante, de todos os seres humanos.
Referências
LEVI, Giovanni. Microhistoria e Historia Global. Historia Crítica, v. 69, p. 21-35. jul-set. 2018.
Alexandre S. de Moraes – Universidade Federal Fluminense
Tâmis Parron – Universidade Federal Fluminense
MORAES, Alexandre S. de; PARRON, Tâmis. [História comparada e sistemas sociais: repensando as ciências sociais no século 21]. Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, v.13, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]
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