História & Cinedocumentário | ArtCultura | 2009
O presente dossiê pretende investigar as relações entre documentário, cinejornal e história. Dois aspectos podem ser levantados a seu propósito. O primeiro deles diz respeito à consolidação da pesquisa histórica que privilegia como fonte o cinema, apreendido em sua especificidade, e, pari passu, à incorporação dos problemas trazidos pela recente historiografia por aquele que se dedica à análise estética. O segundo aspecto se relaciona ao papel decisivo que o documentário vem desempenhando nos debates culturais do país desde o chamado cinema da retomada. Os filmes de João Moreira Salles e de Eduardo Coutinho, por exemplo, atestam o empenho em refletir sobre o momento presente, encaixando-se nesta perspectiva Notícias de uma guerra particular (1999) e Entreatos (2004), obras de Salles que, ao examinar a violência ou os bastidores da sucessão presidencial, participam ativamente dos problemas centrais da sociedade em uma dada época, dando continuidade ao caráter de intervenção que notabilizou esse tipo de produção cinematográfica desde o Cinema Novo. Ao mesmo tempo, os seus trabalhos mais recentes questionam de maneira mais aguda os próprios limites da representação, como os emblemáticos Jogo de cena (2007) e Santiago (2007), obliterando a função do testemunho como elemento constituinte da noção de verdade, concepção ainda cara a uma tradição contemporânea de pensamento sobre o que é documentário. Não se trata de estabelecer uma relação mecânica, mas o pesquisador que estuda o passado é sempre estimulado neste movimento pelo que vivencia de um contexto do qual participa em alguma medida. O estímulo, hoje, parte desses filmes.
O dossiê é, por sua vez, resultado das atividades promovidas pelo Grupo de Pesquisa do CNPq História e audiovisual: circularidades e formas de comunicação, liderado por mim e por Marcos Napolitano. Ele reúne textos que já foram apresentados em seminários promovidos pelo grupo ou pelas associações científicas da área. A sua démarche reside no enfrentamento do específico cinematográfico por meio da análise fílmica, preocupação metodológica que constitui uma dificuldade tanto para historiadores que não têm formação cinematográfica, como para críticos e analistas de cinema que não transitam pela historiografia.
O dossiê traz em sua abertura o artigo de Ismail Xavier sobre Sociedade Anonyma Fábrica Votorantim (1922). A riqueza deste texto reside na identificação de uma retórica comum aos documentários brasileiros do período silencioso, caracterizando um estilo das imagens que se insere, de maneira nem sempre harmônica, com a realidade sócio-histórica que lhe deu origem. Xavier termina com uma reflexão sobre o uso de Votorantim como material de arquivo em Os libertários (1976), de Lauro Escorel, avaliando as distintas iconografias construídas em torno da classe operária.
Os quatro artigos seguintes, oriundos de dissertações de mestrado ou teses de doutorado recentemente defendidas, tratam de cinejornais e documentários institucionais realizados entre a ditadura do Estado Novo e a militar instituída em 1964. Apesar de nos encontrarmos no breve interstício democrático de nossa República, a visualidade do político se alicerçava na experiência imagética instaurada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), como indicam os autores. Assim, Rodrigo Archangelo analisa o discurso das campanhas do governador Adhemar de Barros por meio do cinejornal Bandeirante da tela, que circulou de 1947 até o ano de 1956. Já Maria Leandra Bizello trata dos cinejornais e filmes institucionais durante a presidência de Juscelino Kubitschek, discutindo, principalmente, a imagem do governante e a da construção da nova capital federal, Brasília. O cinegrafista Jean Manzon, responsável por vários dos títulos abordados por Bizello, é o tema central de Reinaldo Cardenuto. Manzon foi o realizador, entre 1962 e 1963, de diversos documentários anticomunistas produzidos pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), grupo de pressão formado por influentes empresários vinculados ao capital estrangeiro e opositores à presidência de João Goulart. Por fim, Daniela Giovana Siqueira apresenta um estudo de caso ligado aos cinejornais produzidos em 1963 por uma administração municipal, a saber, a de Jorge Carone Filho à frente da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.
O último artigo é de autoria do historiador de cinema espanhol Vicente Sánchez-Biosca. Ele se ocupa dos cinejornais franquistas NODO (Noticiarios y Documentales), voz oficial do regime desde 1943. Surgido quatro anos após o término da Guerra Civil Espanhola, não corresponde, ao contrário dos materiais examinadosr atrás, “a una fase de movilización política, sino más bien de desmovilización”, como diz o autor. O brilhante artigo recoloca o cinema dentro da chave em que no campo da história ele deve ser pensado: um lugar de memória.
O dossiê termina com o depoimento do montador e realizador Eduardo Escorel dado a mim e a Mônica Almeida Kornis. A filmografia de Escorel é extensa, mas cabe lembrar aqui sua participação na montagem de três obras fundamentais na história do cinema brasileiro: Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, Cabra marcado para morrer (1984), de Eduardo Coutinho, e Santiago (2007), de João Moreira Salles. No campo dos documentários, Escorel dirigiu uma série dedicada à nossa história republicana, iniciando-a com a chamada revolução de 30, passando depois pela constitucionalista de 1932 e, por último, pela intentona de 1935. No momento ele prepara um filme dedicado ao Estado Novo. Trabalhando com os ‘vestígios do passado’, Escorel em seu relato toca em questões seminais para pensar não somente o fazer cinema, mas, arrisco dizer, o fazer histórico.
Organizador
Eduardo Morettin
Referências desta apresentação
MORETTIN, Eduardo. História, documentário e cinejornal: lugares de memória. ArtCultura. Uberlândia, v. 11, n. 18, p. 7-8, jan./jun. 2009. Acessar publicação original [DR]