História, cidadania e direitos humanos | Diálogos | 2019       

Com alegria, queremos agradecer a revista Diálogos, por aceitar a proposta de realizar um dossiê com o tema “História, cidadania e direitos humanos”.

A história da América Latina e, especialmente, dos países do Cone Sul, é eivada de traços autoritários e de desrespeito aos direitos humanos. Mas, diante deste histórico autoritário, com lutas e resistências, as sociedades latino-americanas vão construindo a sua cidadania, consolidando e ampliando os seus direitos fundamentais e fortalecendo a democracia. Não, sem solavancos, evidentemente. Vejam o caso do Brasil atual. E são esses solavancos que nos impelem a problematizar e pesquisar o tema da cidadania e dos direitos humanos. Estudar e defender os direitos humanos são uma vital necessidade da sociedade atual, como também o é defender o Estado Democrático de Direito, nesta luta incessante pela democracia e pela cidadania.

As pesquisas aqui apresentadas vão ao encontro destas inquietações. Neste dossiê são dez artigos. Três de pesquisadores argentinos e sete de pesquisadores brasileiros. Mas todos dialogando entre os temas e as questões apresentadas. A ordem dos artigos, quando possível, foi organizada cronologicamente.

No primeiro artigo, intitulado “Regulaciones sobre filiación y familia en la definición de los derechos ciudadanos entre fines de siglo XIX y principios de siglo XX (Argentina, Chile, Uruguay)” de Florencia Paz Landeira e Valeria Llobet, as autoras fazem uma revisão explicativa da literatura sobre os debates acerca da família, casamento e filiação na Argentina, Chile e Uruguai, na temporalidade especificada no título do artigo. E com densa reflexão, questionam os diferentes mecanismos legais – e os argumentos em que se baseiam – através dos quais as demarcações entre o público e o privado, o político e o íntimo, o natural e o social foram estabelecidos e regulados.

No artigo “Cultura e política no Brasil republicano: uma reflexão sobre as permanências autoritárias”, Carla Reis Longhi, preocupada com a onda conservadora que atualmente vem assolando diferentes países e regiões do mundo contemporâneo, faz importantes ponderações sobre as práticas culturais e suas permanências, principalmente as permanências autoritárias, no contexto da realidade brasileira. Como a própria autora destacou, refletir sobre a cultura é “sempre difícil em função de sua enorme abrangência, temporal e temática”, sendo assim, ela tomou como referência analisar a visão que estratos da intelectualidade brasileira apresentaram sobre as camadas populares ao longo da história republicana brasileira, tomando como recorte cronológico os anos 1920-2000. No percurso analítico deste período histórico, Longhi identificou o conceito de cultura que prevaleceu em cada período e como este afetou o olhar da intelectualidade sobre a produção cultural popular.

No artigo seguinte, de Márcio José Pereira e David de Castro Netto, “A ‘constitucionalização da violência’ em tempos de autoritarismo: violência de Estado e direitos humanos no Brasil”, os autores analisam o tratamento dos direitos humanos nos dois momentos de autoritarismo vividos no Brasil, na ditadura do Estado Novo (1937-1945) e durante a ditadura militar (1964-1985). Durante estes dois períodos históricos foram estabelecidos regimes políticos de exceção e uma das aproximações entre essas duas ditaduras foi que os regimes arquitetaram um conjunto jurídico que visava garantir a ação repressiva do Estado (as Constituições de 1934, 1937, 1967 e os Atos Institucionais) mantendo um conjunto significativo da população sob vigilância. Esta legislação procurou legalizar atos de exceção que aconteciam ao arrepio da lei (torturas, mortes, desaparecimentos, sequestros), fornecendo uma “maquiagem” que procurava manter a ação do Estado “dentro da lei”.

Já Marion Brepohl, em seu artigo intitulado “Ernesto Kroch e a memória do exílio: entre Uruguai e Alemanha (1934-1984)” analisa a trajetória de Ernesto Kroch (1917-2012), um ativista político judeualemão que se exilou no Uruguai a partir de 1938, logo após ter sido preso pelos nazistas no campo de concentração de Lichtenburg. Desde sua chegada ao Uruguai, Kroch trabalhou como metalúrgico e atuou no Partido Comunista. Com o golpe de 1973, viveu um período na clandestinidade, mas se viu obrigado a deixar sua segunda pátria e retornar à Alemanha, por um período de quatro anos. Regressando ao Uruguai, voltou a trabalhar como metalúrgico e como tradutor. Tomando como referência o livro de memórias escrito por Kroch, Marion Brepohl analisa as duas experiências de exílio do ativista, destacando os processos de construção da memória no exílio.

No artigo “Acción colectiva frente a la violencia estatal argentina (1976-2001). Derechos Humanos, estrategias repertoriales y tácticas de visibilización”, os autores Marianela Scocco e Sebastián Godoy analisam um conjunto de movimentos sociais artísticos que se organizaram para lutar por direitos humanos e protestar contra a violência do estado. Tomaram como referência de suas análises a cidade de Rosário, na Argentina, em dois momentos específicos: a) a década de 1980, onde vários movimentos sociais se organizaram na luta por direitos humanos, com destaque para um movimento conhecido como siluetazo, que se tratava de vários desenhos artísticos realizados nas ruas e em muros, com as siluetas dos corpos de desaparecidos políticos; e b) a década de 1990, a partir da experiência de atuação do grupo HIJOS (Hijos e Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio). Este grupo se mobilizou diante da sensação de retrocesso durante a tentativa de aplicação das leis do Punto Final (1986) e da Obediencia Devida (1987) e dos indultos outorgados pelo presidente Carlos Menen (1989-1990). Em resposta a tudo isto, organizaram algumas manifestações midiáticas contra o estado de violência, como por exemplo os chamados “show del horror” e “show de la impunidad”, que geraram diversas controversias na opinião pública e um “grande mal estar para alguns agrupamentos de direitos humanos”, como enfatizam os autores.

Reginaldo B. Dias, no artigo “A Ação Popular (AP) nos processos judiciais reunidos pelo Projeto ‘Brasil: Nunca Mais’” analisou os processos judiciais (Inquéritos Policiais Militares – IPMs) patrocinados pelo Estado brasileiro após a instauração da ditadura militar de 1964 e conduzidos pela Justiça Militar, que atingiram a organização política Ação Popular (AP) nas décadas de 1960 e 1970. Na análise destes processos o autor desvela o modus operandi da organização política (AP), bem como a complexidade do sistema judiciário constituído para tramitação dos processos gerados por supostos crimes contra a segurança nacional. Neste sentido, Dias ressalta que esses processos permitem entrever o “complexo jogo entre a dimensão formal do sistema judiciário e as práticas de terror de Estado”, o que proporciona ao leitor compreender a lógica e as diferentes dimensões do sistema autoritário brasileiro durante a Ditadura Militar.

Também analisando um Inquérito Policial Militar (IPM), Leandro Brunelo e Angelo Priori, no artigo “Mecanismos jurídicos e repressão política do Estado, durante a ditadura militar brasileira: o caso do IPM 745 no Paraná e o desrespeito aos direitos individuais”, buscaram compreender como o Estado brasileiro, durante a Ditadura Militar (1964-1985), se apropriou de dispositivos legais para legitimar as suas ações punitivas e jurídicas contra a oposição política, em especial, contra os militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Neste sentido, esmiuçaram o Inquérito Policial-Militar 745 (IPM 745), que apurou o envolvimento dos comunistas na reorganização do partido no Estado do Paraná, sul do Brasil. Além do IPM citado, os autores também utilizaram como fonte de pesquisa o Relatório Especial de Informações 1/75, da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), para destacar a importância dos trabalhos da polícia política, no afã de combater o avanço do comunismo.

Por conseguinte, Luciano Alonso, em “Clases sociales y movilización pro derechos humanos en la historia Argentina reciente” traz importantes reflexões sobre a luta por direitos humanos na Argentina atual. Neste artigo o autor propõe uma abordagem para a identificação de atribuições de classe dos membros dos movimentos de direitos humanos naquele país do Cone Sul. Observa, neste sentido, que há uma integração poli-classista do movimento social, que se concentra no domínio de sua liderança e na composição de membros da classe média e, às vezes, mais especificamente das classes de serviço. Partindo desta observação, são discutidas algumas dimensões subjacentes do conceito de “classe social”, para depois, tomando como referências diversas pesquisas atuais, descrever a composição de diferentes organizações de direitos humanos. Finaliza o artigo destacando que embora a atribuição de classe não tenha sido decisiva para a composição do movimento por direitos humanos, lançou as bases para uma cultura política compartilhada e para a adoção de repertórios de discurso e ação.

Ozias Paese Neves, no artigo intitulado “A trajetória dos primeiros embates do Movimento PróParticipação Popular na Constituinte — MPPC (1985-1988): afetos e temores na ‘transição política’”, analisa a atuação do Movimento Pró-Participação Popular na Constituinte (MPPC), durante os trabalhos do Congresso Nacional para a elaboração da Constituição Federal de 1988, atualmente em vigor no Brasil. Para este texto, tomou como referência as cartilhas elaboradas por diferentes grupos sociais durante o período da constituinte, para analisá-las sob o prisma da História Cultural da Política de Thomas Mergel e dos estudos sobre os sentimentos na história de Pierre Ansart. Assim sendo, revelou o conflito discursivo e as disputas políticas numa época conhecida no Brasil como “de transição” e que representou a passagem da Ditadura Militar para um regime democrático e constitucional.

O último artigo do dossiê foi escrito por Charles Monteiro e Carolina Martins Etcheverry e se intitula Fotografia e cultura visual nas ditaduras latino-americanas (1960-1980). Neste artigo os autores analisam o modo como o campo fotográfico se formou na América Latina, entre os anos 1960 e 1980, em especial nos países que passaram por golpes militares. Especificamente, centram seus esforços de análise no Brasil, na Argentina e no Chile, procurando compreender a relação entre fotografia e memória a partir dos variados papeis que a imagem assume. Como os leitores poderão observar, a fotografia pode funcionar como denúncia ou como instrumento político, sendo engajada socialmente, formando tanto um espaço público contrário à Ditadura como, quando operada por órgãos oficiais do governo, forjando uma imagem positiva deste ou servindo como dispositivo de vigilância.

Como se pode perceber, os artigos do dossiê abordam uma variedade de facetas e evidências relacionadas com o tema que nos ocupa. No momento em que a região registra fortes retrocessos nos direitos sociais e nas políticas de memória, verdade e justiça em relação às graves violações de direitos ocorridas na história recente, é conveniente fortalecer o conhecimento das lutas pela preservação e pela consciência de que os direitos humanos são construções sociais sempre instáveis e, por isso mesmo, necessita de defesa.

Queremos agradecer aos editores, aos pareceristas brasileiros e estrangeiros e aos autores, fundamentais para a realização deste dossiê e deste número da revista Diálogos. E desejamos boa leitura aos nossos leitores!


Organizadores

Angelo Priori –  Universidade Estadual de Maringá, UEM, Brasil. E-mail: angelopriori@uem.br

Luciano Alonso –  Universidad Nacional del Litoral, UNL, Argentina. E-mail: lpjalonso8@gmail.com


Referências desta apresentação

PRIORI, Angelo; ALONSO, Luciano. Editorial. Diálogos. Maringá, v. 23, n.3, p.1-3, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.