Ao longo das últimas três ou quatro décadas, os historiadores vêm demonstrando uma preocupação sensível com o tema da multiplicidade temporal. Ao tempo linear e homogêneo, característico de um regime disciplinar cada vez mais questionado, eles contrapõem “novas formas, múltiplas, variadas, policrônicas”.1 Essa pluralização expressa também questões políticas candentes, como aquelas relacionadas aos nossos tantos passados traumáticos, nos quais diversas modalidades de horror e de violência estatal indicam a persistência incontornável de experiências ainda sentidas como contemporâneas.2
Por outro lado, há uma abertura menor à reflexão sobre o tema do anacronismo, o que pode constituir, em certa medida, aquela situação na qual, de acordo com Christophe Charle, os debates e as polêmicas teóricas são eclipsados por uma atitude de apaziguamento, de conformação e de esvaziamento discursivo em função do peso de determinados vetos epistemológicos.3 Esse parece ser o caso da noção de anacronismo, cuja força persuasiva sobre a operação historiográfica não é novidade já há algumas gerações. Afinal, qual estudante não aprende a repudiar, desde os primeiros momentos de sua formação em História, o “pecado mortal” dos historiadores?
A interdição ao anacronismo é largamente conhecida. Ela foi estabelecida, principalmente, por Lucien Febvre. Em livro originalmente publicado em 1942 4, o fundador dos Annales buscou refutar a tese de Abel Lefranc segundo a qual Rabelais era um racionalista e livre-pensador capaz de escapar às amarras da religiosidade de sua época. Essa proposição equivocada seria o resultado, para Febvre, de uma tendência ainda comum entre os historiadores de transpor suas categorias de análise para períodos em que elas rigorosamente não faziam sentido. Enfim, Lefranc teria lido textos do século XVI com olhos de um leitor do século XX. Um exame mais detido da outillage mental do tempo de Rabelais revelaria a impossibilidade de a incredulidade ser representada no nível linguístico mais básico e, portanto, não existiam as condições para que o escritor quinhentista se colocasse como um racionalista incrédulo. A conclusão não poderia ser menos programática e normativa: “O problema consiste em determinar com exatidão a série de precauções a serem tomadas, de prescrições a serem observadas para que se evite o pecado dos pecados, o pecado entre todos irremissível: o anacronismo”.5 Com um olhar semelhante, Bloch, parceiro de primeira hora de Febvre, afirmava que “os homens parecem mais com o seu tempo do que com os seus pais”.6
As reflexões de Jacques Rancière configuraram-se como um ponto de inflexão decisivo no adensamento a respeito do debate sobre o anacronismo, retirando o tema de uma esfera acusatória e – não raro – moralista para situálo num espectro expressivo de problemas e questões que dialogam vivamente com o nosso tempo de dúvidas e incertezas quanto ao futuro da disciplina histórica e ao trabalho dos historiadores dentro e fora das universidades. Sob vários aspectos, as perguntas por ele desveladas são exploradas ao longo das páginas que se seguem: 1) por que o anacronismo é o pecado irremissível?; 2) o que deve ser o anacronismo para ser esse pecado?; 3) Como deve ser o historiador para dar ao anacronismo esse estatuto de pecado mortal?7
O dossiê História & anacronismo, que aqui apresentamos, contará com a presença de autores de três países (Brasil, Argentina e Portugal) e será publicado em duas partes. Ele assinala a maturação com que o campo da filosofia da história – ou da teoria da história e da história da historiografia – tem tratado do que concerne às relações entre tempo histórico, narrativa e verdade. Mas também, cremos, faz eco às palavras de Nicole Loraux que, alertando-nos para uma obediência quase religiosa ao princípio de não fazer comparações “indevidas” entre tempos históricos distintos, aponta para o perigo de o historiador “ser entravado, impedido de audácia”.8 Desejamos que os leitores captem esses estímulos e esses desejos de sermos audaciosos na busca, talvez, daquele tempo – a “acronia”, nas palavras de Rancière – “que se experimenta quando o tempo está, de maneira muito shakespeariana, ‘fora dos eixos’, esse outro tempo que é preciso, em todo caso, postular, ainda que fosse apenas para dar um estatuto a tudo aquilo que, em uma época se pensa adiante dela”.9 Ou, quem sabe, que nos lancemos, em um exercício de reconhecimento da fecundidade – controlada? – do anacronismo ao “mais-que-presente de um ato reminiscente: um choque, um rasgar do véu, uma irrupção ou aparição do tempo, tudo que Proust ou Benjamin disseram tão bem sobre a ‘memória involuntária’”.10
Notas
1 SALOMON, Marlon. Heterocronias. In: SALOMON, Marlon (org.). Heterocronias: estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos. Goiânia: Ricochete, 2018, p.9 e 10.
2 Ver FREDRIGO, Fabiana de Souza e GOMES, Ivan Lima (orgs.). História e trauma: linguagens e usos do passado. Vitória: Milfontes, 2020, e LORENZ, Chris e BEVERNAGE, Berber (orgs.). Breaking up time. Gottingen: Vanderhoec & Ruprecht, 2013.
3 CHARLE, Christophe. Homo historicus: reflexions sur l’histoire, les historiens et les sciences sociales. Paris: Armand Colin, 2013, p.15 e 16.
4 FEBVRE, Lucien. Rabelais ou le problème de l’incroyance au XVIe siècle. Paris: Albin Michel, 1968.
5 Idem, ibidem, p. 15.
6 Apud DOSSE, François. Anachronisme. In: DELACROIX, Christian et al. (orgs.). Historiographies II: concepts et débats. Paris: Gallimard, 2010, p. 665.
7 Ver RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (org.). História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011, p. 21. Ver ainda RANCIÈRE, Jacques. Anachronism and the conflict of times. Diacritics, v. 48, n. 2, Baltimore, 2020.
8 LORAUX, Nicole. Elogio do anacronismo. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 57.
9 Idem.
10 DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2015, p. 26.
Organizadores
Alexandre de Sá Avelar – Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pesquisador do CNPq.
Lucila Svampa – Doutora em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Professora da Facultad de Ciencias Sociales na UBA. Pesquisadora do Conicet. Autora, entre outros livros, de La historia en disputa: memoria, olvido y usos del pasado. Buenos Aires: Prometeo, 2016. E-mail: lucilasvampa@gmail.com
Referências desta apresentação
AVELAR, Alexandre de Sá; SVAMPA, Lucila. Ainda somos pecadores? Sobre o tempo histórico e o anacronismo.. ArtCultura. Uberlândia, v. 23, n. 43, p. 65-66, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]
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