História Ambiental, Migrações e Globalidades | Fronteiras – Revista catarinense de História | 2022
Há séculos as sociedades estão vivenciando problemas socioambientais, como doenças, epidemias, pandemias, mudanças climáticas, enchentes, tornados, entre outros – que foram catalisados por atos de degradação e não preservação/conservação dos recursos naturais. Tais problemas ocorreram e ocorrem de forma inter-relacionada e em escala global. Como exemplo, podemos citar o mês de janeiro de 2022 – em meio à pandemia de covid-19, durante o aumento considerável no número de casos em todo o mundo por conta da dispersão da variante ômicron – o Brasil foi acometido por enchentes, queimadas e deslizamentos. E também foi assim, perante o cenário do caos e de eminentes crises ambientais, que foi fomentada a necessidade de trazer o meio ambiente para as discussões da disciplina de História. Na década de 1970, surge a História Ambiental, que trouxe uma premissa revisionista tornando a disciplina da História muito mais inclusiva nas suas narrativas do que ela tinha tradicionalmente se apresentado.
O estudo do meio natural pelo viés da História Ambiental Global tem sua relevância redimensionada por questões transversais como: as fronteiras e seus espaços de conflitos; a biodiversidade; o patrimônio que resulta das múltiplas relações entre natureza e cultura; entre outros. Também é importante relacionar estas questões com os estudos sobre os movimentos migratórios humanos e da flora e fauna, os estudos dos aspectos históricos, demográficos e ambientais – presentes na formação dos territórios. Desta forma, através de estudos e discussões que tangenciam os aspectos aqui apresentados, os textos que compõem o Dossiê História Ambiental, Migrações e Globalidades legitimam a necessidade de discutirmos o meio ambiente dentro da História e em escala global.
Em El territorio y la transformación vitivinicultura de Mendoza (Argentina) desde la mirada de las mujeres, os autores Marina Miraglia, Juan Manuel Cerdá, Marianel Falconer, Eunice Nodari y Facundo Rojas, analisam a inserção das mulheres no mundo do vinho na província de Mendoza (Argentina) no contexto da transformação vitivinícola do final do século passado. O artigo mostra como as mulheres ascenderam no mercado da vitivinicultura. A baixa remuneração e ou até mesmo a ausência de mulheres eram recorrentes em períodos anteriores. O texto mostra como ocorreu a alteração dessa realidade, com a crescente presença de mulheres em diferentes etapas da produção de vinhos.
O texto de Laianny Cristine Gonçalves Terreri, Julia Mai Velasco e Eunice Sueli Nodari, também traz a vitivinicultura como tema de pesquisa no artigo Cultura e tradição: um estudo das festas da uva e da vindima em Videira (SC). As autoras analisam a parte histórica do cultivo da uva no município de Videira em Santa Catarina, assim como aspectos culturais envolvidos, como as festas que celebram este produto, especialmente as Festas da Uva e da Vindima, e do declínio que estas enfrentaram e enfrentam atualmente. Através da leitura do artigo é possível entender o entrelaçamento da história do município e a história da vitivinicultura no Meio-oeste catarinense.
De autoria de Gerd Kohlhep e Sandro Dutra e Silva, o artigo Colonização no Brasil Central: a fronteira agrícola em Mato Grosso entre as décadas de 1950 a 1970, discute a história da expansão da fronteira agrícola no Brasil Central, propondo um diálogo com diferentes temporalidades e modelos de ocupação, entre os anos de 1950 a 1970. O estudo foi feito com base em fontes documentais produzidas durante pesquisas de campo dos geógrafos alemães Gerd Kohlhepp e Gottfried Pfeifer. O texto nos permite compreender os investimentos nacionais e estrangeiros que auxiliaram no começo da transformação da região estudada em uma das áreas globais de maior produção agrícola, acompanhada de imenso desmatamento e danos ambientais.
Ainda sobre o Centro-oeste brasileiro, Márcia Inês Florin Costa e Giovana Galvão Tavares apresentaram a História ambiental do Cerrado na fronteira agrícola do Norte de Goiás de 1960 a 1980, a partir do cultivo do arroz de sequeiro (Oryza sativa L.) e evidenciar as consequências socioambientais. Em O cultivo do arroz de sequeiro no norte goiano entre 1960 e 1980, as autoras buscaram em diversas fontes bibliográficas, documentais e relatos orais elementos para demostrar como muitos produtores foram atraídos para a região, principalmente pelos baixos preços das terras, pelo apoio financeiro de programas governamentais e orientações técnicas. Com os cortes dos programas governamentais, houve o declínio do cultivo de arroz e a destruição do modelo agrícola implantado, contribuindo para a degradação ambiental e introdução de gramíneas exóticas.
O artigo Colonizando a floresta: migrantes do Oeste catarinense e a abertura da Transamazônica (1972), de Marina Andrioli e Marlon Brandt, analisou a experiência migratória ocorrida em 1972, que ocupou a região da rodovia BR-230 (Transamazônica) com colonos oriundos do Oeste Catarinense. O texto aponta como o Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) estimulou estes pequenos agricultores a construir um novo Eldorado e enriquecer praticando agricultura em solos férteis. Somado a isso, jornais e revistas locais buscaram noticiar a saga destes colonos como um objetivo patriótico e, de certa forma, civilizatório na região Norte do Brasil.
Também discutindo os processos migratórios humanos, Eduardo Relly analisou o surgimento da ideia de clima subtropical na América do Sul sob as perspectivas imperial e tecnológica da climatologia alemã e do Império Habsburgo, além de seus entrelaçamentos com a colonização alemã na região entre os séculos XIX e XX. O artigo denominado Imigração alemã, ciência imperial e a tradução/colonização de ecologias locais do clima subtropical na América do Sul, abordou como dois Impérios da Europa central encorajaram estudiosos a construir o campo da climatologia científica a fim de traçar as agendas imperiais dentro de seus domínios ou onde quer que eles tivessem algum grau de influência. Mostrando assim, como o sul da América do Sul tornou-se um foco de pesquisa climática, já que os interesses imperiais se expandiram para a região do sul da América do Sul especialmente a partir da colonização florestal perpetrada por grupos falantes do alemão.
Na sequência, Tuani de Cristo e Luís Fernando da Silva Laroque apresentaram a participação dos não humanos e os impactos causados por problemas ambientais na convivência com os Guarani e jesuítas nas missões durante os séculos XVII e XVIII. O artigo intitulado Ações não humanas no mundo missioneiro da província jesuítica do Paraguai: uma perspectiva da história ambiental, utilizou-se de documentos escritos pelos padres jesuítas, como cartas e diários e obras publicadas por Jaime Cortesão (1969), Hélio Vianna (1970), padre Antônio Sepp (1951) e bibliografias que abordam as missões jesuíticas e práticas indígenas. Com base na História Ambiental demonstraram como os não humanos causaram constrangimentos e ao mesmo tempo influenciaram ações por parte dos padres e de lideranças xamânicas.
Ana Marcela França, autora do artigo Leyendo la historia a través del paisaje: las transformaciones socioambientales desde un museo y sus alrededores (Punta Indio, Buenos Aires, Argentina), analisou as trocas de elementos paisagísticos na cidade de Verónica e seus arredores, na Argentina. O recorte temporal utilizado foi de 1914 à atualidade recente. O “Museo Histórico de Punta Indio – Eduardo Barés” é estudado no texto e foi considerado como epicentro da possibilidade de entender o contexto da modernização da Argentina. Através da História Ambiental, a autora revelou a autenticidade do lugar estudado e o impacto provocado pelo mercado global naquele país.
O artigo Cidades Verticais – um novo padrão de cidades modernas: um estudo de caso sobre a verticalização urbana de Campina Grande/PB e seus impactos socioambientais (1960- 2012), de Felipe Cardoso de Souza e José Otávio Aguiar, analisou os impactos socioambientais provocados pelo processo de verticalização urbana movido na cidade de Campina Grande/PB, no recorte compreendido entre a década de 1960 até o ano de 2012. O artigo se propôs a fomentar uma discussão acerca das transformações urbanas que nos cercam e os seus impactos ao meio ambiente, problematizando, assim, o ideário de “desenvolvimento” e “progresso” que justificam projetos de urbanização.
Fronteiras Sul-Americanas: O Pampa e a Mata Atlântica sob a perspectiva da História Ambiental foi o título dado ao artigo de João Davi Oliveira Minuzzi e Débora Nunes de Sá. Os autores, a partir da História Ambiental, e através da longa escala espaço-temporal, analisaram como esses dois biomas foram afetados e como eles afetaram as questões que envolvem a zona de fronteira, demonstrando a importância de considerar essas problemáticas em estudos históricos. Apesar de muito estudadas no campo histórico, as fronteiras muitas vezes são analisadas deixando de fora as características naturais de sua espacialidade. Ao pensarem os biomas, os autores demonstram que os mesmos perpassam essas fronteiras humanas e que tanto as populações quanto os Estados Nacionais os utilizam e os percebem de formas distintas ao longo do tempo.
No artigo Capitalização da natureza e políticas ambientais na Província do Paraná (1854-1865): um retrato dos sentidos de natureza na modernidade, o autor Luca Araujo de Oliveira Leite verificou de que maneira as políticas ambientais do governo Imperial estavam presentes no Paraná Provincial, utilizando como fonte a documentação referente à legislação oficial da época, presente em leis, decretos e decisões do Império, da Província e nos relatórios destes presidentes.
Natália Raiane de Paiva Araújo e Evandro dos Santos analisam o bioma da caatinga na construção do espaço do sertão do Seridó, região localizada no interior do Rio Grande do Norte, no artigo A Dizibilidade e visibilidade do sertão natural em Oswaldo Lamartine de Faria. Os autores relacionaram a vida de Oswaldo Lamartine de Faria (1919-2007) com sua obra. Através de seus escritos este autor construiu a historiografia sertaneja por um viés natural. Mostraram assim, a importância dos animais, plantas e homem, como também de toda composição natural paisagística que visibiliza o sertão, enaltecendo as práticas culturais desenvolvidas pelo sertanejo.
Em A saúde, a peste, a ciência e a ignorância: uma reflexão da História Ambiental sobre a Peste da Manchúria, Hélio José Santos Maia fez um importante exercício de aproximar a História Ambiental e História da Saúde/Doença a partir da análise da chamada Peste da Manchúria, ocorrida entre os anos de 1910 e 1911 – na Sibéria Oriental. O estudo também envolveu aspectos ecológicos e epidemiológicos, trazendo uma percepção social e cultural em confluência com a pandemia de SARS Cov2 e o papel que a Ciência exerce na produção de conhecimento e na delimitação de ações para o entendimento necessário à tomada de decisões. O autor expõe a importância de se analisar diversas fontes científicas, através da História Ambiental, em consonância com outros saberes, incluindo a História cultural.
Em Interfaces entre História Ambiental e Agroecologia para o Ensino de História no Antropoceno, Alfredo Ricardo Silva Lopes estabeleceu articulações entre, inicialmente, o papel da História Ambiental no Ensino de História e, posteriormente, o uso dos pressupostos agroecológicos como ferramenta para este fim. O objetivo do texto foi conjugar no Ensino de História as contribuições que a História Ambiental trouxe para o campo da História, desafiando o olhar dos professores e professoras de História para a agência não humana, para compreender problemas socioambientais contemporâneos.
O dossiê abriga ainda dois textos que se propõe a fazer uma análise teórica e metodológica da História Ambiental Global. No artigo História global à prova: um balanço sobre críticas e proposições historiográficas, de autoria de Gil Karlos Ferri, o mesmo se propõe a apresentar um balanço acerca das críticas e proposições de autores e autoras das áreas da história intelectual e cultural para o campo da história global. O autor afirmou que (re)conhecer as críticas ao giro global pode auxiliar na superação de suas fragilidades historiográficas e favorecer o aprimoramento de pesquisas que visam contemplar as conexões e interações multiníveis entre temas, espaços e sujeitos.
Na sequência vem o artigo de Jó Klanovicz: Nem todas as maçãs são iguais: a escrita das frutas em Henry David Thoreau e Georges Delbard (1862 e 1986). Nele, o autor mostrou como as duas produções culturais que estão separadas no tempo e no espaço – entre os séculos XIX e XX – abordaram narrativas de convivialidade com a maçã: Wild Apples, de Henry David Thoreau (1862) e Jardinier du Monde, de Georges Delbard (1986). A proposta de articulação das duas fontes foi visando pautar alguns conceitos e leituras possíveis em torno de uma História ambiental que dialoga muito com os estudos ecocríticos e com os estudos críticos de plantas.
Também compondo o dossiê, está a resenha História Ambiental, educação ambiental e pesquisas: possibilidades de análise, de Michely Cristina Ribeiro. O texto nos fornece elementos para instigar a ler a obra “História ambiental: configurações do humano e tessituras teórico-metodológicas”, organizada pelas historiadoras Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki e Tania Regina Zimmermann, professoras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, que foi publicada em 2020, pela editora Milfontes.
Os textos desse dossiê nos convidam a diversas reflexões, entrelaçando História, História ambiental, História das migrações, História da saúde e da doença, entre outras correntes e áreas do conhecimento.
Para finalizar este número, trazemos duas produções que se enquadram fora do dossiê, mas também reluzem o mesmo brilhantismo dos demais textos. O primeiro deles é a entrevista com a renomada historiadora Tania Regina de Luca, na qual ela nos permite mergulhar em sua trajetória como pesquisadora no campo dos periódicos. A entrevista foi realizada por Fabricio Adriano e intitulada: A trajetória de uma pesquisadora no campo dos periódicos impressos.
Finalizamos o número com a resenha Engajamentos entre a História Global do Trabalho e a micro-história translocal, de autoria de Nathan Henrique da Silva Lermen. A resenha nos convida à leitura do livro “Micro-Spatial Histories of Global Labour”, sob organização de Christian De Vito (pesquisador associado da Universidade de Leicester, Reino Unido) e Anne Gerritsen (professora vinculada ao Departamento de História da Universidade de Warwick, Reino Unido).
Aos colegas que contribuíram para este número, que enviaram textos, resenhas e ao entrevistador e à entrevistada, assim como àqueles que realizaram os pareceres – nosso sincero: muito obrigada! Aos leitores, pesquisadores e ao público interessado em História Ambiental Global, convidamos que se deleitem com o presente número revista.
Esperamos que os textos instiguem a todos e tragam novas reflexões. Boa leitura!
Organizadores
Eunice Sueli Nodari – Profesora Doctora. Profesora Titular y Coordenadora do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas – PPGICH/UFSC. Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. E-mail: eunice.nodari@ufsc.br Directora del Proyecto: “Da terra à mesa: uma história ambiental da vitivinicultura nas Américas”. https://orcid.org/0000-0001-5953-649X
Samira Peruchi Moretto – Editora da Fronteiras: Revista Catarinense de História.
Referências desta apresentação
NODARI, Eunice Sueli; MORETTO, Samira Peruchi. Apresentação. Fronteiras – Revista catarinense de História, n.39, p. 4-9, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]