Em 1989, diante de uma plateia estarrecida, a jovem indígena Tuíra Kayapó apontava um facão para o pescoço do então chefe da Eletronorte. O público era formado por diversos profissionais, populações tradicionais, políticos, jornalistas e outros, e estavam ali para o Primeiro Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. Na ocasião, discutiam-se os diversos impactos na vida da população ocasionados pela construção de uma usina hidrelétrica no rio Xingu. O chefe da Eletronorte tentava convencer da necessidade da obra, Tuíra procurava, ao seu jeito, mostrar o contrário. Três décadas depois, a Usina de Hidrelétrica de Belo Monte ocupa a paisagem outrora marcada pela floresta, rio, ocas e animais de muitas espécies (COLACIOS, 2015). A cena é simbólica. Símbolo da situação do meio ambiente no Brasil, das leis, políticas públicas, dos povos indígenas, da justiça ambiental e das desigualdades sociais de vários tipos.
Anos antes dessa cena, em 1981, enquanto ainda perdurava a ditadura civil-militar brasileira, a política ambiental do país ganhava novos contornos. Foi instituída a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei n.º 6.983), com um peso significativo na perspectiva desenvolvimentista, nada diferente das ações na área ambiental promovidas até então pelo governo militar, tal como a Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA), de 1973, que por sua inação deu o tom da década do suposto milagre econômico brasileiro e todas as suas consequências ambientais. No entanto, essa nova política abriu um leque de instrumentos legais que tencionava, dentre outras questões, a avaliação dos impactos ambientais e estabelecia padrões de qualidade ambiental.
Além da indígena e seu facão, outra arma foi criada na década de 1980 para conter o avanço desenfreado das políticas econômicas e das tradições brasileiras: a Constituição de 1988. Seu artigo n.º 225 tornou-se notório nesse sentido, ao trazer uma perspectiva de meio ambiente moderna, considerada por muitos como a entrada do Brasil no mundo civilizado, em termos ambientais. No texto, o meio ambiente era visto como bem de uso comum do povo, cuja defesa e preservação era de responsabilidade do poder público e da coletividade. Ou seja, um meio ambiente ecologicamente equilibrado, embora se mantivesse na base da lei o antropocentrismo, que marca toda a história da legislação brasileira sobre esse assunto (COLACIOS, 2019a).
A legislação brasileira sobre o meio ambiente, ou para o mundo natural, certamente não surge com a Constituição de 1988. A historiografia ambiental já mostrou a preocupação com os recursos naturais, com os excessos da atividade extrativista, de caça e do uso da coivara para o plantio, no estabelecimento de reservas florestais, na expansão das monoculturas e da pecuária (DEAN, 1977, 1989, 1996; PÁDUA, 2004; FRANCO; DRUMMOND, 2009; FRANCO et al., 2012). No entanto, a sistematização ou o estabelecimento de ações, políticas e leis consideradas modernas só surgiu no Brasil com a promulgação desta Constituição. A partir daí observa-se a celeridade na criação de áreas de proteção, em programas de educação ambiental e sua inclusão nos currículos escolares, na gestão dos resíduos sólidos e, mais recentemente, na política nacional referente às mudanças climáticas, além de outras muitas políticas nesse sentido.1 Os efeitos desta atuação pública colocaram o Brasil como um player internacional nas medidas de proteção ambiental. Ainda que se possa criticar a abrangência e a aplicação in totum da legislação brasileira para o mundo natural, os resultados foram visíveis, embora ainda irrisórios, em termos de território nacional, sobretudo no que respeita à diminuição do desmatamento, às queimadas na agricultura, ao uso dos solos, às medidas de saneamento, entre outros.
Ainda assim, há muito o que ser feito para o meio ambiente nacional. Embora tenha existido essa tendência no aprimoramento da proteção estatal ao mundo natural, este ainda é ignorado em relação aos variados projetos de desenvolvimento que se acumulam na história do país. Há uma tradição de que o meio ambiente entre nesses projetos ora como elemento externo, sendo a melhoria de seus níveis de qualidade como um resultado das demais variáveis; ora como empecilho, problema, quando o mundo natural, é visto apenas como recurso, a ser extraído, derrubado, queimado para criar oportunidade de negócios, sejam áreas de plantio, de ocupação imobiliária, de especulação ou de pecuária. Há também uma tradição em se esquecer de que parte considerável das florestas existentes ainda hoje mantiveram-se dessa forma pela presença de populações indígenas e tradicionais, que não apenas possuem uma percepção muito distinta de desenvolvimento e relação com a natureza, mas também são personagens relevantes na manutenção e aumento da biodiversidade (DIEGUES, 2001; COLACIOS, 2019b).
A forma em que está organizado o pensamento ambiental “oficial” hoje no Brasil, vê o ambiente e estas populações como uma barreira, um empecilho. Sob o governo de Jair Bolsonaro (iniciado em 2018) a legislação, os programas, políticas e instituições de fiscalização e controle, tiveram um retrocesso, ou melhor, uma diminuição em amplitude e eficiência. Sobre o meio ambiente parece ter-se retomado certa ideia opaca de desenvolvimento econômico. A obscuridade dessa ideia de desenvolvimento está em sua ineficiência comprovada historicamente. “Passam a boiada” de ações “infralegais” em nome de um retorno econômico de pouca sustentabilidade temporal, ou seja, a destruição do meio ambiente nacional em nome da lucratividade imediata, embora não contínua, já que depende de novas áreas degradadas para manter os níveis de ganhos financeiros. Algo que fatalmente leva à exaustão de todos os ecossistemas dentro do território nacional em pouco tempo. A degradação do meio ambiente é uma bomba-relógio que irá explodir em todos nós.
Evidentemente que na sociedade civil organizada há os contrapontos a essa política destrutiva. Organizações Não Governamentais, comunidades e grupos diversos (como o Movimento dos Atingidos por Barragens e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) têm dedicado especial atenção às práticas ambientalmente saudáveis, a divulgar e ensinar outras possibilidades de produzir alimentos (como a agroecologia), a promover a coleta seletiva do lixo, hortas urbanas, uso de ciclovias e muitos outros tipos de ações que contribuem para melhorar a qualidade do mundo em que vivemos.
A história ambiental brasileira, matéria deste dossiê, tem lidado com todos esses assuntos e outros. O dossiê que apresentamos a seguir está estruturado em três grandes blocos. O primeiro deles refere-se à já bem consolidada discussão da História Ambiental a partir dos rios. O “protagonismo” da figura do rio aparece de forma mais ou menos semelhante nos artigos que constituem este bloco. Em De balseiros a patrulheiros ambientais: as trajetórias dos pescadores de Porto Ubá no médio rio Ivaí-PR (1930-2020), Simone Quiezi e Gilmar Arruda mostram a proximidade com o rio a partir do horizonte histórico de pescadores, consolidando a tradição de situar a história dos personagens a partir da história oral. Assim como vários trabalhos investigando a história de ribeirinhos, o artigo identifica o violento processo de institucionalização da profissão de pescador. O trabalho levanta um ponto importante – a transfiguração do pescador (enquanto indivíduo) em patrulheiro ambiental (tangenciando responsabilidades que deveriam ser do Estado). O artigo também apresenta a correspondência entre o saber ribeirinho e as trocas culturais com os indígenas que habitavam a região de estudo.
Bruna Leite Figueredo, Raiane Souza Ferreira dos Santos, Eliana Evangelista Batista e Francisco Alves Ramon do Nascimento, em Avaliação ambientais no Rio Cochó decorrentes da expansão da cidade de Seabra BA (1970-2020) centralizam a relevância do rio no processo histórico. Se no artigo anterior o rio é visto como o elemento central do estabelecimento dos pescadores, este toma como fio condutor o rio durante o desenvolvimento da cidade, também a partir do emprego da oralidade. Finalmente, no último artigo deste bloco, A cidade e o rio: entre a preservação e o descaso com o Meia Ponte em Goiânia (1933-2020), Fernando da Silva Ribeiro, Maria de Fátima Oliveira e Giuliana Muniz Vila Verde analisam a emersão da cidade de Goiânia na esteira da ideia de progresso. A contextualização dessa ideia no horizonte da política varguista aparece também no próximo bloco de artigos. Isso parece evidenciar uma sintonia da historiografia brasileira que costuma pontuar o contexto varguista como uma guinada notável para a consolidação da política ambiental brasileira. No artigo, é oportuna a percepção do abandono de um projeto paisagístico que pretendia colocar o rio como um palco paisagístico da cidade.
O segundo bloco do dossiê está mais relacionado à legislação ambiental. Embora nenhum deles faça referência à história do tempo presente (como as mais recentes ameaças à legislação ambiental brasileira e o alinhamento político e econômico ao neoliberalismo que citamos acima), são artigos que retomam reflexões na gênese e aperfeiçoamento da política ambiental brasileira. No artigo 1934, um ano decisivo para a legislação florestal brasileira Tayla Antunes situa as preocupações preservacionistas do início do século XX, dando destaque para a relação entre o patrimônio florestal brasileiro e a identidade nacional no contexto do governo de Getúlio Vargas, uma chave aparentemente indispensável para compreendermos a possibilidade da promulgação do Código de 1934. Neste caminho, a autora nos apresenta alguns fatos na consolidação desta identidade, que vão da atuação de Alberto Loefgren, das Festas da Árvore e do conceito de floresta protetora. Por fim, reconhece que embora tenha sido uma conquista relevante, a legislação mantinha um interesse econômico pela floresta.
Em Modernidade formal: a legislação florestal como critério de progresso no Brasil Raíssa Orestes Carneiro faz uma combinação da ideia de progresso com a visão predatória da natureza. O artigo está contextualizado com o anterior e dá atenção ao Código Florestal de Pernambuco (juntamente com o do Paraná). Apresenta uma visão crítica sobre a questão da conservação no horizonte da política varguista. Finalmente, em Pensamento e legislação ambiental no Brasil (1896-2000), Jackson Alexsandro Peres também procura retomar o surgimento da legislação ambiental no país, preocupando-se também em estabelecer um marco para falar do direito ambiental, discutindo uma série de pontos da Política Nacional de Meio Ambiente.
O terceiro bloco pode ser inserido em miradas mais “experimentais”. Em Uma flor furou o asfalto? O Cinturão Verde da cidade de São Paulo como Reserva da Biosfera (1988-1994) Carlos Alberto Menarin traça um belo e bem referenciado panorama histórico do cinturão da cidade de São Paulo. É apropriada a reflexão sobre o cinturão como uma possibilidade de sustentar a cidade, que esbarra, por sua vez, na questão do regime de propriedade (natureza liberal, portanto). O texto conversa com outros artigos do dossiê por pensar na Reserva da Biosfera como uma reivindicação social (ou seja, a sociedade reivindicando o “vácuo” do Estado). A reflexão histórica é interessante ao estender na linha temporal as sucessivas pressões que foram feitas ao cinturão (mesmo antes de sê-lo com propósito ambiental).
No artigo Espaço público e Natureza: um olhar sobre formação do ambientalismo como fenômeno público, Cainã Carneiro Gusmão realiza um balanço de História Ambiental alinhado com o tema de políticas públicas e o surgimento do ambientalismo no Brasil. Apresenta as ideias conceituais de ambientalismo de Eduardo Viola e Angela Alonso e procura dar outra interpretação à gênese do movimento ambientalista, a partir de Pierre Bourdieu. Para isso, apresenta e faz uma análise do Movimento de Resistência Ecológica (MORE). No artigo O discurso do desmonte do licenciamento ambiental no Rio Grande do Sul Eliege Maria Fante realiza uma análise do discurso do jornal Correio do Povo no período de 2003 a 2018 no que se refere à flexibilização das políticas públicas ambientais no Rio Grande do Sul e em que medida o jornal deslocou-se no sentido da visão hegemônica de setores alinhados ao capitalismo liberal.
Finalmente, em Trabalhadores rurais africanos e de origem africana e a africanização do Brasil republicano: balanço e perspectivas, Denis Henrique Fiuza traz uma discussão relevante no sentido de revisitar clássicos da Sociologia, Antropologia e História no horizonte da domesticação de plantas. Consideramos pertinente a menção do “guardar” territórios africanos do passado – africanidades. A revisão feita pelo autor é importante por trazer à tona que algo a mais do que trabalho braçal foi “capturado” na África – além da escravidão, além da apropriação de corpos africanos, apropriou-se também seu saber, suas experiências rurais.
Esperamos que os textos deste dossiê contribuam no processo de aprimoramento crítico da historiografia ambiental do país, demonstrando a relevância do estudo histórico sobre a relação entre a sociedade e a natureza em um país de altos contrastes, que apesar de ocasionalmente celebrar sua exuberante biodiversidade, permite que processos destrutivos a suprimam em políticas desenvolvimentistas ultrapassadas. Também esperamos que diante do preocupante cenário de desmonte das políticas sociais e ambientais à que temos assistido nos últimos anos, esses textos sirvam como instrumento de não esmorecimento e de luta para a salvaguarda socioambiental do país.
Nota
1 Dentre elas, podemos elencar o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei n.º 9.985 de 2000), a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei n.º 12.305 de 2010), a Política Nacional de Educação Ambiental (Lei n.º 9.795 de 1999), a Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei n.º 12.187 de 2009).
Referências
COLACIOS, Roger Domenech. Belo Monte: uma usina de conflitos (1975-2015). La Roca, Local, v. 2, n. 2dr, p. 145-154, mês/mês (abreviado), 2015.
COLACIOS, Roger Domenech. O Leviatã e o mundo natural. Revista de Fontes, Local, v. 6, n. 11, p. 64-83, mês/mês (abreviado), 2019a.
COLACIOS, Roger Domenech. Meio Ambiente e Neoliberalismo: a Environmental Protection Agency dos EUA (1970-1980). 1. ed. São Paulo: Humanitas, 2019b.
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Tradução de Waldívia Portinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
DEAN, Warren. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Nobel, 1989.
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
DIEGUES, Antonio Carlos Santana. O mito moderno da natureza intocada. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 2001.
FRANCO, José Luiz de Andrade; SILVA, Sandro Dutra; DRUMMOND, José Augusto; TAVARES, Giovana Galvão. História ambiental: fronteiras, recursos naturais e conservação da natureza. Rio de Janeiro: Garamond, 2012.
FRANCO, José Luiz de Andrade; DRUMMOND, José Augusto. Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil: anos 1920-1940. Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz, 2009.
PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista, 1786-1888. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
Organizadores
Roger Domenech Colacios – Doutor em História (USP) e professor da UEM https://orcid.org/0000-0003-2261-3695
Marcio Henrique Bertazi – Doutorando em Ciências da Engenharia Ambiental (USP) e professor substituto da Faculdade da UnB, Campus Planaltina http://orcid.org/0000-0003-1317-9989
Referências desta apresentação
COLACIOS, Roger Domenech; BERTAZI, Marcio Henrique. Apresentação. Faces da História. Assis, v.8, n.1, p. 19 -24, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]
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