História Agrária e deslocamentos/Outros Tempos/2023

Não é de hoje que a História Agrária tem-se apresentado como um tema urgente na historiografia brasileira. A emergência dos movimentos sociais e populares no campo no século XXI vem provocando novas abordagens temáticas já conhecidas. Passamos de estudos mais centrados nas questões da estrutura e da economia agrárias brasileiras para outras que, mesmo sem necessariamente abandonar o econômico e o estrutural, centram-se em problemas referentes a identidade cultural, relações e conflitos sociais, contatos entre diferentes grupos étnicos, bem como diversos processos de povoamento e colonização, formas de acesso à terra e relações de trabalho no campo, leis e direito agrário e problemas ambientais (CONGOST, 2007; GUIMARÃES e MOTTA, 2007; LINHARES e SILVA, 1981; MOTTA, 1998; NUNES, 2016).

Assumem relevância neste dossiê as seguintes questões: a organização e a apropriação do espaço e o seu impacto sobre os grupos sociais articulados em torno da sua exploração; as políticas de Estado voltadas à territorialidade; a Amazônia e as formas de ocupação; a utilização do território pelos indivíduos, envolvendo as práticas sociais, ambientais e políticas; as pesquisas em torno da fronteira interna, englobando discussões sobre os assuntos fundiários, as terras indígenas e “comunais” e o impacto do poder nas áreas de expansão; além das temáticas relacionadas às migrações internas e aos projetos de colonização. A amplitude temática dessa matéria perpassa estudos sobre estruturas e processos produtivos no campo, formas de acesso à terra e aos bens naturais, relações tanto produtivas e socioculturais quanto de trabalho no campo (escravidão, agregados e trabalho livre), reprodução de formas de trabalho escravo ou análogo à escravidão, legislação agrária e ambiental, conflitos agrários e disputas por legitimação de direitos, modos de dominação e resistência social, política e econômica no meio rural, processos de ocupação humana do espaço e de construção de paisagens agrárias e relações socioambientais ao longo do tempo. Este dossiê é resultado de reflexões sobre o mundo rural e as suas interfaces com as questões que envolvem migrações de populações para ocupação de “espaços vazios”, como alternativa de colonização idealizada pelas elites modernizadoras.

Iniciamos os debates com o artigo Corsélinguistico a estímulo intelectual: por una mirada “desoccidentalizada” a losderechos de propiedad sobre latierra, de Rosa Congost. Trata-se de um exercício reflexivo para se pensar a necessidade de “desocidentalizar” a percepção sobre os direitos de propriedades, assim como insistir na importância de investigações levadas a cabo em sociedades não europeias, com o propósito de avançar no tratamento da problemática dos direitos de propriedade, considerando-se as diferentes experiências de acesso e uso da terra.

O artigo Fazem vida da lavoura: as condições dos lavradores pobres paranaenses no caminho de Viamão (1731-1794), de Fabio Pontarolo, problematiza a mudança nas formas de coerção e de inserção socioeconômica dos lavradores pobres do território dos Campos Gerais paranaenses pelo governo paulista no decorrer do século XVIII. No caso, trata-se do processo de arregimentação à força para a composição dos corpos de milícias para novas ocupações, em que os roceiros pobres buscaram resistir aos recrutamentos para manter seus modos de vida, a partir da década de 1730. Revela-se um significativo estudo que recupera a trajetória de pequenos proprietários instalados nas margens do caminho de Viamão, na rota do intenso comércio de gado entre a capitania do Rio Grande e São Paulo, em que homens e mulheres desenvolveram função econômica fundamental no abastecimento das tropas e das vilas que formavam as engrenagens da economia do tropeirismo de gado nos Campos Gerais do Paraná.

O texto seguinte, de autoria de Alan Dutra Cardoso, “É, contudo, o título que deveria firmar o seu direito de propriedade”: conflito, justiça e afirmação de direitos em Manaus no último quartel do século XIX, amplia as discussões acerca da propriedade da terra na província do Amazonas, ao deslindar aspectos que caracterizaram a sua disputa em uma zona privilegiada da cidade de Manaus, no último quartel do século XIX. Ancorados na tradição da História Social das Propriedades e da História Agrária, desnuda-se o embate entre o Procurador Fiscal da Tesouraria da Fazenda no Amazonas e um importante comerciante daquela praça, tornado réu após iniciar a construção de um imóvel em um terreno considerado próprio nacional. No texto, o autor, mais do que demarcar o desenrolar dos episódios, elenca aspectos que esquadrinharam as distintas concepções sobre os direitos de propriedades, a interpretação das normas legais alçadas pelas partes e o peso estabelecido, dentro da jurisprudência defendida, dos títulos legítimos que deveriam garantir e consagrar a propriedade.

David Rodrigues Farias, no artigo Tramita de si toda posse e senhoria: comércio de escravos e outras transações na Comarca de Igarapé-Miri, Pará (1868-1887), analisa o comércio interno de escravos na comarca de Igarapé-Miri entre os anos de 1868 a 1887. Diante dos dados documentais, no caso, 184 registros de compra e venda e registros de outras transações envolvendo cativos como a concessão, hipoteca, doação, entrega, troca e permuta, em um total de 18 registros, o especialista compreende a dinâmica e as formas de operação do comércio escravista, ou, ainda, o funcionamento desse trânsito interno de escravos, com os agentes envolvidos e os interesses pautados que envolviam os comerciantes e escravizados.

O texto de Avelino Pedro Nunes Bento da Silva, A legitimação judicial do latifúndio na floresta amazônica: conflitos, poderes e relações de trabalho em processos trabalhistas (Itacoatiara-AM, década de 1970), empreende uma importante reflexão sobre o processo histórico de expansão do latifúndio na floresta amazônica, no período da ditadura civil-militar brasileira entre os anos de 1964-1985. Para isso, o autor se utiliza da leitura em série dos processos trabalhistas da Junta de Conciliação e Julgamento do município de Itacoatiara, localizado no interior do estado do Amazonas. A sua perspectiva é a de revalorizar experiências de luta de trabalhadores na Justiça do Trabalho, discutindo temáticas de trabalho, justiça e propriedade mediante entendimentos daqueles sujeitos que se desdobram como práticas políticas de luta pelo direito ao trabalho, assim como analisar relações entre a Justiça do Trabalho e o setor do agronegócio em Itacoatiara, apreendendo procedimentos judiciais que tratam de legitimar a formação da propriedade fundiária, a precarização do direito ao trabalho e a exploração dos recursos florestais.

No artigo Por um cooperativismo vitorioso na Amazônia: as estratégias e ações do Cooperativista Bruno de Menezes (1940 – 1955), Renan Brigido Nascimento Félix discute o cooperativismo operacionalizado pelo literato paraense Bento Bruno de Menezes Costa, com produções variadas no universo das letras. Interessa ao autor conectar a doutrina mutualista presente em seus textos, discutindo os aspectos doutrinários, correlacionados à prática de fundação de sociedades mutualistas, que seria, em sua opinião, a maneira mais viável de os agricultores da Amazônia enfrentar o isolamento ao agregarem forças. O texto é uma oportunidade de examinar o tipo de política pública voltada à questão agrária, desdobrada no estado do Pará, nas décadas de 1940 e 1950, e mediada pela agência pública Serviço de Assistência ao Cooperativismo.

Max Fellipe Cezário Porphirio, em Teologia do desenvolvimento brasileiro: uma análise das propostas modernizadoras do episcopado brasileiro (1945-1968), analisa como o episcopado brasileiro tratou a modernização agrícola em suas cartas pastorais, visando entender o modo como os discursos produzidos no interior da Igreja legitimam e ressignificam elementos da cultura nacional e da ciência à época, a fim de manter, assim, a posição da Igreja como mediadora universal, aquela capaz de interpretar a dominação para os dominados e interpretar os anseios dos dominados para os dominadores. Para compreender melhor a questão, o autor procura discutir as principais características da ideologia da modernização e investigar como o episcopado brasileiro tratou a questão agrária, em especial a modernização agrícola, e a relação desse tratamento com os debates modernizadores internacionais.

Já no artigo Ditadura civil militar e contra-reforma agrária em Mato Grosso: luta pela terra em meio ao avanço da fronteira amazônica, podemos observar a maneira como a sociedade e o espaço no estado do Mato Grosso organizaram-se durante a ditadura entre 1964 e 1985 segundo os parâmetros da contrarreforma agrária, cujo foco é a complexidade dos deslocamentos de populações envolvidas na luta pela terra. Nesse aspecto, Luiz Felipe Farias aponta as múltiplas irregularidades do processo de transformação das terras públicas mato-grossenses em propriedades privadas, com especial destaque para a sistemática expropriação de terras indígenas e de posseiros e para as contradições dos projetos de colonização oficial e privada no estado depois de 1964.

O texto seguinte, de autoria de Caroline da Silva, Direito à terra: as desapropriações de terra por interesse social no Rio Grande do Sul 1960-2009, a questão agrária sul-rio-grandense envolvendo a desapropriação de terras por interesse social configura um tema novo e necessário no meio acadêmico. Isso porque, a partir do estudo de fontes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrário (Incra), é possível adentrar um mundo de litígios relacionado à posse da terra. Na pesquisa em questão, são 133 imóveis rurais que, por algum motivo, deixaram de cumprir com a função social – todos localizados em 15 regiões do estado territorializadas diferentemente por seus agentes, os quais trouxeram técnicas e modos de produção distintos. Na mesma medida em que o território recebia esses sujeitos, outros tantos eram excluídos perante as novas dinâmicas de produção e formação de latifúndios.

Nessa primeira parte do dossiê, concluímos a apresentação dos artigos com o artigo De camponeses migrantes a trabalhadores urbanos: sobrevivência e condições de vida de trabalhadores migrantes em Teresina (1970), autoria de Lia Monnielli Feitosa Costa, que analisa uma etapa do processo de migração cujas trajetórias de migrantes culminaram com o deslocamento definitivo para a cidade de Teresina capital piauiense, após experiências de sobrevivência em outros municípios também pertencentes à região de “Entre Rios”. A temporalidade comum de saídas, travessias e fixações em novos espaços e o deslocamento que marca profundamente a vida dos sujeitos são observados em experiências e meios de vida muda radicalmente.

Além de artigos livres e do dossiê temático, este volume traz ainda o estudo de caso intitulado Educação do Campo em Movimento: compreensões sobre a implantação dos cursos Pronera no Amapá, de Oseias Soares Ferreira, o qual analisa os desafios dos movimentos sociais e da Educação do Campo na Amazônia, com ênfase na implantação de políticas públicas para o campo no Brasil e as peculiaridade apresentadas no Amapá; a resenha do livro de Carmen Alveal, Senhorios coloniais: direitos e chicanas forenses na formação da propriedade na América portuguesa, pelo historiador Thiago Alves Dias; e uma entrevista realizada por Daniel Vasconcelos Solon com o antropólogo e padre Ricardo Figueira Rezende, professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo. Ricardo Rezende trabalhou durante 20 anos na Diocese de Conceição do Araguaia- PA e foi membro da Comissão Pastoral da Terra – a sua trajetória comporta reconhecimento internacional na defesa dos Direitos Humanos e no combate ao trabalho escravo contemporâneo, ou trabalho análogo à escravidão.

Como é possível observar, estamos diante de uma historiografia marcada pela diversidade, mas também pela preocupação em compreender a atuação de homens e mulheres do campo. O leitor se depara aqui com pesquisas relacionadas às interfaces da história social com a história política e agrária, nos recortes regionais em diferentes temporalidades, de um ponto de vista interdisciplinar. Afirmamos, ainda, que o dossiê é coerente com as atividades desenvolvidas por pesquisadores de diversas regiões do país e do mundo, responsáveis por discussões de estudos relativos ao campo dos temas agrários. Acreditamos que os textos dispostos nesta revista possibilitem a construção de horizontes críticos a serem seguidos por estudiosos e interessados no mundo rural.


Referências

CONGOST, Rosa; LANA, José Miguel (ed.). Campos cerrados, debates abiertos: análisis histórico y propiedad de latierraen Europa (siglos XVI-XIX). Pamplona: Universidad Pública de Navarra, 2007.

FERRERAS, Norberto O.; ROCHA, Cristiana Costa. Trabalho e trabalhadores no Brasil: experiências, deslocamentos, modalidades e resistências. Niterói: Eduff, 2017.

GUIMARÃES, Elione S.; MOTTA, Márcia (org.). Campos em disputa: história agrária e companhia. São Paulo: Annablume, 2007.

LINHARES, Maria Yedda; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. História da agricultura brasileira: combates e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1981.

MOTTA, Márcia. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Aperj: Vício de Leitura, 1998.

NUNES, Francivaldo Alves. Terras de colonização: agricultura e vida rural ao Norte do Império brasileiro. São Paulo: Editora Scortecci, 2016.

RIBEIRO, Vanderlei Vazelesk; SECRETO, Maria Verônica. O rural em América Latina: perspectivas. Belo Horizonte: Fino Traço, 2021.


Organizadores

Francivaldo Alves Nunes – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: fan@ufpa.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2750-0625

Cristiana Costa da Rocha -Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). E-mail: cristianarocha@cchl.uespi.br


Referências desta apresentação

NUNES, Francivaldo Alves; ROCHA, Cristiana Costa da. Apresentação. Outros Tempos, v. 20, n. 35, p. 102-107, 2023. Acessar publicação original [DR/JF]

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