História: a arte de inventar o passado | Durval Muniz Albuquerque Junior
Às vezes sigo o (dis)curso, às vezes saio das margens, transbordo, alago, arrasto em meu caminho outras formas organizadas e as transformo em novas formas, e ambas compõem o meu existir de rio. Às vezes objetivado, às vezes sujeitado, às vezes objetivo, às vezes subjetivo, sempre os dois ao mesmo tempo, eu sou rio e eu sorrio, eu, natural e humano, cursivo e discursivo, invento na história e a História (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 36).
O livro de Durval Muniz Albuquerque Junior História: a arte de inventar o passado reúne uma coletânea de 16 artigos que têm por objetivo refletir sobre a escrita da História, com destaque para a relação entre História e Literatura, bem como fazer uma análise sobre o pensamento de autores de significativa importância para a historiografia contemporânea, entre eles Michel Foucault.
A obra está dividida em três partes. Na primeira são discutidas as relações entre História e Literatura; na segunda, as contribuições de Michel Foucault para a produção historiográfica, e na terceira, as práticas historiográficas e seus desafios.
Na introdução é encontrada uma análise sobre o significado do termo invenção, de modo a mostrar como elese tornou recorrente nos trabalhos das mais variadas áreas, como a Filosofia, a Pedagogia, a Educação Física, a Crítica literária, a Psicologia, a Comunicação e até a Literatura, a Religião e a Gastronomia. Para o autor, o termo remete a uma dada ruptura, a um dado momento inaugural de uma prática, de um costume, de um evento humano – o que se oporia ao termo formação ou à visão historicista do evento histórico. O termo assim se refere mais à descontinuidade, à ruptura, à diferença, à singularidade e subjetivo da produção histórica.
O seu uso, em oposição ao estruturalismo, reforça o caráter inventivo das práticas humanas e coloca o historiador como produtor da história, e não como uma figura ausente, que somente transcreve o documento histórico. Assim como o historiador inventa o fato histórico, os homens inventam a história através de suas ações e representações; o ato de invenção seria um “momento inaugural de alguma prática, de algum costume, de alguma concepção, de algum evento” (p. 20).
Segundo Albuquerque Junior, a terceira geração dos Annales, com influência dos filósofos chamados pós-estruturalistas – como Michel Foucault – e da historiografia de base hermenêutica, influenciada por Paul Ricoeur e Michel de Certeau – que primavam pela análise das práticas simbólicas, do imaginário, dos discursos – contribuiu para que fosse destacado o caráter inventivo e humano da historiografia. Não obstante, o uso do termo invenção por vários pesquisadores e historiadores não significa que estes o estejam utilizando em concordância, longe disso.
Com essa afirmativa o autor destaca a obra A invenção da História, de Arno Wehling, e assinala sua discordância da definição do conceito de invenção empregado por Detienne, Hobsbawm ou Certeau. Para ele, esses autores pensam a invenção “como o processo através do qual a vida social foi cristalizada num discurso e as razões que existiram para isso” (p. 21), enquanto em Wehling a invenção aparece como “o ato de descobrir ou encontrar um objeto/coisa que já existe, embora o desconheçamos”, ou como “o ato de apropriação de algo que jazia ignorado e desprezado pelos outros homens” (p. 21). Seriam, portanto, duas posturas epistemológicas distintas: uma chamaria a atenção para o papel do discurso, da narrativa no processo de invenção dos objetos históricos, e a outra tomaria o objeto como algo que preexiste ao discurso, algo que, estando oculto, seria revelado pelo discurso do historiador (p. 22).
Em seu entendimento, a história social é aquela que não coloca em questão a materialidade, a objetividade, a realidade do fato histórico, em que “o momento de invenção de um objeto histórico seria o próprio passado, e o saber histórico teria a função de dar conta dos agentes desta invenção” (p. 24). Além disso, conforme Eric Hobsbawm, o historiador deve discernir entre uma invenção genética, instituinte dos grupos sociais, e uma invenção ideológica, uma mitificação sem base na realidade. Aqui a invenção do acontecimento se dá numa instância extradiscursiva e aprisionada no passado, que vai ser decifrada pelo historiador que a interpela. O historiador vai ao passado e faz as perguntas adequadas às evidências, munido da teoria e do método. Assim, a produção do conhecimento é comandada pelos próprios fatos, pelas próprias evidências, muitas vezes chamadas de empiria: “o historiador se deixaria guiar pela lógica que emerge dos próprios eventos, da própria história […]” (p. 25).
Já na História Cultural o documento só se torna evidência no momento em que é evidenciado; ou seja, nada é evidente em si mesmo, a evidência “é a construção de uma forma de ver, de uma visibilidade e de uma dizibilidade social e historicamente localizada” (p. 25).
Assim, cada documento que ficou do passado deve ser entendido como algo produzido no seu tempo e com uma intencionalidade, evidências fabricadas em seu próprio tempo, e que somente se tornam evidências no momento em que o historiador, munido de teoria e metodologia apropriadas, o emprega.
Com esse entendimento o autor afirma que “para a História Cultural, a invenção do acontecimento histórico, do objeto ou sujeito da história, se dá no presente” (p. 26). De acordo com o interesse um determinado fato ou acontecimento pode adquirir muitos significados; o direcionamento teórico e metodológico empregado pelo historiador é que irá definir os caminhos a serem adotados. Esses caminhos podem ser diferenciados de acordo com o contexto em que o historiador está inserido e com as perguntas feitas ao documento, pois este só é fonte a partir do momento em que o historiador o interpela, o interpreta, o inventa. Assim, um mesmo documento pode ter várias interpretações. Daí a importância da narrativa para a união entre o presente e o passado, entre o material e o ideal, entre o empírico e o simbólico, entre o objetivo e o subjetivo. É nesta constatação que a Literatura e a História se entrecruzam, permeadas pela linguagem, pelo simbólico.
A partir de então, o autor apresenta quatro textos que discutem a controvertida relação entre História e Literatura. No primeiro, A hora da estrela: História e Literatura, uma questão de gênero, o autor se propõe a articular História e Literatura, e não separá-las ou encontrar o limite entre uma e a outra. Situa como marco para essa discussão o estruturalismo e a chamada virada lingüística, na qual a narrativa e a linguagem são colocadas no centro das discussões, o que põe aos historiadores um dilema, pois ao utilizarem a linguagem, narram e constroem, a partir desta narrativa, a noção de temporalidade articulando o passado e os eventos.
Daí decorre o dilema: como diferenciar a narrativa histórica da narrativa literária?
Albuquerque Junior destaca as definições de alguns autores – como Michel de Certeau e Haiden White – que defendem a total separação entre história e literatura, para conferir legitimidade ao texto histórico. Para eles, ao historiador cabe a verdade e ao literato a ficção, tomada como a invenção dos eventos que narra.
Para o autor, a principal diferença entre uma e a outra é o compromisso que a História tem com a verdade, com o que aconteceu ou se passou, com o real. A diferença entre História e Literatura pode se situar na questão de gênero, não só gêneros discursivos diferentes, mas em que o “discurso historiográfico pertenceria ao que na cultura ocidental moderna se define como sendo o masculino” (p. 49); já a Literatura estaria ao lado do que se define como feminino.
A História masculinamente escavaria os mistérios do mundo exterior, iria para a rua ver o que se passa; a literatura ficaria em casa, perscrutando a vida intima, o mundo interior, femininamente preocupando-se com a alma. […] o realismo da história seria masculino, pois os homens são a realidade. É isso contra o que se esbate a Literatura, o feminino inconformado com essa realidade que o alija, a procura de um outro mundo que só a mulher poderia compreender (2007, p. 49)
Nos capítulos seguintes o autor faz uma aproximação entre História e Literatura, mostrando suas semelhanças como narrativas. Para ele, a História tem lançado mão de ferramentas até então só utilizadas pela Literatura, visto que a interpretação dos acontecimentos exige que o historiador use a imaginação ao recortar seu objeto de estudo e construir “em torno deles, uma intriga” (p. 63).
Assim como na literatura de Franz Kafka, a tarefa do historiador seria a de, a partir de documentos a princípio sem importância e análogos, relacioná-los ao contexto, às particularidades, aos acontecimentos que serão interpretados. Com esse entendimento Albuquerque Júnior destaca o caráter serial da obra de Kafka, assim como da de Foucault, em que os personagens, os eventos, os temas parecem sempre os mesmos, porém singulares, pois os lugares que ocupam nas tramas variam.
Ao comparar a História a um labirinto de corredores e portas contíguas, que aparentemente são semelhantes, mas cada uma das quais guarda uma surpresa, o autor confronta o texto histórico com o texto literário. Nesse sentido, os novos caminhos da História, as novas invenções, exigem do historiador a busca incessante por novas linguagens, novas abordagens, novos conceitos, que tragam a história à vida, sem se esquecer do compromisso com a verdade, não a absoluta, mas a verdade contextualizada.
A parte dois do livro é dedicada à reflexão da contribuição de Michel de Foucault para a escrita da História.
No capítulo cinco – Menocchio e Rivière: criminosos da palavra, poetas do silêncio – Albuquerque Júnior traça um paralelo entre a obra de Carlo Ginzburg O queijo e os vermes e a obra de Foucault Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, meu irmão e minha irmã. Identifica semelhanças e diferenças metodológicas. Enquanto em Foucault é a singularidade de Rivière que é destacada – é Rivière quem fala -, Ginzburg Menochio tem sua singularidade relativizada ao ser representativo de uma classe. “Ginzburg toma a palavra para superar os silêncios, Foucualt toma a palavra para ressaltar os silêncios” (p. 111). São duas maneiras de produzir História. Cada uma delas tem seus erros, seus deslizes, mas ambas apontam para uma aproximação com a Literatura.
No capítulo sete – Uma fissura no silêncio – o autor discute as diferenças entre a obra de Edward Thompson e a de Foucault no que se refere ao conceito experiência, fundamental nas obras desses dois pensadores. De acordo com ele, para Thompson a experiência seria determinada pelas relações de produção, “em que os homens e mulheres experimentam a vida como necessidades e interesses, para depois tratálos na consciência e na cultura”, já para Foucault “[…] a experiência, nada mais é do que estas pequenas iluminações feitas pela luz do poder, que reduz vidas inteiras a pó, estas pequenas fissuras no silêncio que apagam vidas inteiras. A experiência não é dado concreto, coisa; a experiência é relação fugidia entre ação, fala, imagem e poder” (p. 146).
Nos três capítulos seguintes o autor destaca a contribuição de Foucault ao pensar o objeto historiográfico, o campo historiográfico, como um campo de disputas, como um jogo, onde “cada texto, cada livro, cada opinião é um lance que se faz em uma partida” (p. 179). Na seqüência compara os historiadores a comediantes representando um papel, e o papel que cabe ao saber historiográfico é o de descobrir como estes papéis foram estabelecidos, legitimados ou modificados pelo tempo (p. 193).
Na parte três do livro Albuquerque Junior apresenta cinco textos que discutem a prática historiográfica e alguns de seus desafios. Apesar de aparentemente não possuírem uma temática comum, os textos nos levam à reflexão sobre questões muito presentes no debate da historiografia contemporânea, como a relação entre memória e história, história oral e a singularidade do evento histórico.
Em função dos assuntos abordados no livro, não se pode negar que o conjunto da obra nos faz refletir sobre a difícil tarefa do historiador contemporâneo ao ter que lidar com essa grande variedade de temas e com a complexidade que estes apresentam. Além disso, é uma contribuição importante para se pensar a relação entre a História e outras áreas do conhecimento que, sem dúvida, enriquecem a escrita histórica e reforçam a importância de métodos e teoria que fundamentem essa escrita.
Resenhista
Angélica Schwanz – Mestranda do Programa de pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá.
Referências desta Resenha
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado. Bauru: Edusc, 2007. Resenha de: SCHWANZ, Angélica. Diálogos. Maringá, v.12, n.1, 235-240, 2008. Acessar publicação original [DR]