História: a arte de inventar o passado – Durval M. Albuquerque Jr

Os historiadores brasileiros não têm a tradição de publicar obras que versem sobre discussões teórico-metodológicas. Nas últimas décadas, o número de pesquisas históricas cresceu vertiginosamente, em todas as regiões do país, porém, esse crescimento não foi acompanhado na mesma proporção pelas pesquisas focadas em torno das questões atinentes ao processo de produção do conhecimento da disciplina. Isto é, no mínimo, preocupante, pois o ofício do historiador jamais pode prescindir da dimensão epistemológica. O fazer histórico engloba a etapa empírica (que consiste no trabalho de coleta e cotejamento das fontes) e a etapa epistemológica (que consiste na interpretação das fontes coligidas, a partir do diálogo com a historiografia especializada e à luz dos instrumentos conceituais e pressupostos teóricos). Não basta descrever e narrar os fatos; deve-se interpretá-los, explicá-los, a partir de problemas e hipóteses de pesquisa e tendo em vista categorias analíticas e correntes historiográficas. São justamente as questões epistemológicas da historiografia contemporânea o tema central do livro História: a arte de inventar o passado, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior.

Doutor em História Social pela Universidade de Campinas, professor de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Albuquerque Júnior é autor de livros, como A invenção do Nordeste e outras artes. Depois de militar durante anos no campo da teoria e metodologia da história, publica agora A arte de inventar o passado. O livro é uma coletânea de textos, dos quais a maioria já foi publicada como artigos em periódicos acadêmicos ou capítulos de livros de outras coletâneas. Como é comum nesse tipo de publicação, os autores, as obras e as idéias se repetem. Para evitar esse tipo de problema, seria de bom alvitre que o autor procedesse a uma prévia revisão geral nos artigos, publicados em momentos distintos e com finalidades diversas. Mas como não o fez, o texto ficou redundante e a leitura, por sua vez, fastidiosa, pelo menos em alguns momentos.

A obra está dividida em três partes. Na primeira, o autor investiga a relação entre História e Literatura. Debate bastante atual, vem despertando a atenção de vários especialistas e gerando controvérsias múltiplas. Para Albuquerque Júnior, os historiadores tendem a defender o seu feudo, reafirmando a diferença entre História e Literatura. Tal postura defensiva mal disfarçaria a insegurança dos historiadores, no que diz respeito ao estatuto científico da disciplina. A discussão em torno do texto do historiador suscita questões como as características da própria narrativa em História, do seu caráter poético, da importância do estilo na construção do argumento propugnado pelo historiador, isto é, coloca em xeque noções de fato histórico, objeto e sujeitos históricos. A idéia de verdade em História também seria ameaçada por essa discussão à medida que desmorona a fronteira entre fato e ficção, fronteira, aliás, que durante quase dois séculos garantiu a separação entre o campo literário e o campo historiográfico. A partir desse arrazoado, o autor expõe seu conceito de história: “Desde o texto que dá título ao livro, inclino-me pela defesa do caráter artístico da História, do seu caráter poético e literário, e pensando com a Literatura e não contra ela, reflito neste primeiro conjunto de textos sobre as implicações para a prática do historiador de pensá-la como uma arte literária”.[2]

Na segunda parte do livro, Albuquerque Júnior procura demonstrar a contribuição de Foucault para a escrita da história e para as reflexões epistemológicas dessa área do conhecimento. Filósofo francês que foi bastante “consumido” pelos historiadores brasileiros, principalmente nas décadas de 1980 e 1990, notabilizou-se por problematizar os procedimentos de pesquisa tradicionais e questionou a forma de ver e dizer a história. Foucault teria sido, no Brasil, objeto de ataques teóricos infundados, com suas idéias sendo desqualificadas a partir de argumentos pretensamente científicos. “A crítica historiográfica brasileira”, afirma Albuquerque Júnior, “não lida com suas idéias, não discute suas proposições, não dialoga com seus argumentos, mas tenta simplesmente, numa atitude que politicamente sempre denunciou, alijá-lo do debate, construindo, em torno de seu pensamento, um conjunto de enunciados pejorativos, crivando-o de epítetos como: populista, irracionalista, nominalista, pós-moderno, estruturalista, etc.”.[3] É interessante notar que Albuquerque Júnior não só dialoga com os críticos de Foucault (ou assinala suas supostas contribuições para o fazer historiográfico), como faz uma defesa militante, para não dizer quase panfletária, do filósofo francês.

A terceira parte do livro apresenta um conjunto de textos diversos e desconexos, os quais abordam questões referentes aos problemas, dilemas e desafios da prática historiográfica contemporânea. Aí são enfocados temas como a relação entre memória e história; a questão da singularidade do evento histórico; a relação entre escrita e oralidade no campo da denominada História Oral. Da mesma maneira, são dedicados textos a examinar uma plêiade de intelectuais, particularmente Edward Thompson e Gilles Deleuze.

Para Albuquerque Júnior, a História não é ciência. Em virtude disso, ele argumenta que ela “precisa escapar deste discurso racional, deve reintroduzir a arte em seu discurso”, [4] e não perder de vista sua vocação transdisciplinar, de simbioses, “misturas” e “hibridismos” com “outros saberes”, sobretudo com a Literatura e a Filosofia. O livro, por sinal, é uma verdadeira apologia de uma História cujo estatuto ontológico se confunde mais com as artes do que as ciências. “Precisamos de arte”, conclama o autor, “da arte de inventar novos mundos possíveis, inclusive da arte de inventar o passado”.[5] Os intercâmbios interdisciplinares apaixonaram os estudiosos de ontem, e hoje ainda não perderam a sua atualidade. Na verdade, não é recente a discussão dos historiadores diante dos sociólogos, geógrafos, antropólogos, filósofos, psicólogos, críticos literários sobre as possíveis realizações complementares entre as várias especialidades. Já nas primeiras décadas do século XX, os historiadores franceses da Escola dos Annales advertiam da importância da história alimentar-se dos conceitos, métodos, das técnicas e hipóteses de outras ciências sociais. Lucien Febvre, por exemplo, preconizava de forma fervorosa: “Historiador, seja geógrafo. Seja também jurista e sociólogo, e psicólogo; não feche os olhos ao grande movimento que, à sua frente, transforma, a uma velocidade vertiginosa, as ciências do universo físico”.[6]

No entanto, foi no segundo pós-guerra, diante da proliferação das especialidades e de sua lenta institucionalização, que a interdisciplinaridade tornou-se palavra de ordem. Traduzindo a atmosfera intelectual daquele momento, Fernand Braudel escreveu num célebre artigo de 1958: “a História – talvez a menos estruturada das ciências do homem – aceita todas as lições dos seus vizinhos e esforça-se por repercuti-las”.[7] No entanto, nas décadas de 1970 e 1980, os próprios historiadores ligados aos Annales passaram a não parecer tão confiantes de seu projeto de aliança com as ciências sociais. Eles reconheceram que a identidade da história corria o risco de se perder na fragmentação dos objetos e no esgarçamento excessivo das fronteiras com as disciplinas vizinhas.[8] Demonstrando sua preocupação naquele contexto, Peter Burke ponderou: “Os historiadores econômicos são capazes de falar a linguagem dos economistas, os historiadores intelectuais, a linguagem dos filósofos, e os historiadores sociais, os dialetos dos sociólogos e dos antropólogos sociais, mas estes grupos de historiadores estão descobrindo ser cada vez mais difícil falar um com outro”.[9] O fato é que a chamada Nova História (a terceira fase da Escola dos Annales) abriu-se de tal modo a “outros saberes” que, no limite, ameaçava a própria legitimidade da disciplina.

No Brasil, a interdisciplinaridade somente arvorou-se como panacéia nas décadas de 1980 e 1990, quando parecia que tudo era possível em termos de paradigmas e formas de abordagem do passado. Tratava-se, porém, de um engodo, que levava a acreditar que a verdadeira História (!?) residia num campo intelectual permissivo, difuso e frouxamente compartilhado entre a Antropologia, a Sociologia, a Literatura, a Psicanálise, a Filosofia etc. Depois daqueles anos de euforia (e experimentalismos), percebeu-se que a identidade do historiador não se constrói pela diluição das fronteiras intelectuais da disciplina. Pelo contrário, o diálogo interdisciplinar era (e é) tão urgente quanto se fazia (e se faz) necessário afirmar a singularidade da abordagem histórica e historiográfica.

Talvez estejamos num estágio em que a História e as Ciências Sociais, a Literatura, a Filosofia devam manter sua autonomia, suas diferenças – ainda que sutis – de linguagens e procedimentos, sem com isso abandonar o diálogo, trocas conceituais e intercâmbios institucionais. É verdade que a História tem vários elementos em comum com outros domínios do saber humano, mas também é verdade que ela tem aspectos que a singularizam, que a distinguem, enfim, que a definem e a redefinem em cada contexto. Isto é uma das coisas mais extraordinárias de Clio: o seu dinamismo, a sua capacidade de ser mutante e inovadora, aproveitando o que as demais ciências sociais têm de melhor. Isto não é deficiência, mas uma vantagem, que enriquece a História, que a particulariza e a fertiliza no mundo acadêmico.

O diálogo e as trocas mútuas dos historiadores com os cientistas sociais, romancistas, filósofos não são um problema. Afinal, a contribuição teórico-conceitual destes só tem a ajudar aqueles na compreensão das complexas e multifacetadas sociedades de antanho. Mas ajudar o historiador não significa anulá-lo, de sorte que o pesquisador tem que saber distinguir a interdisciplinaridade das especificidades intrínsecas ao conhecimento histórico. Clio estabelece fronteiras ante as outras ciências sociais e saberes artísticos que, embora tênues, existem, não podendo jamais ser ignoradas.[10] Portanto, a interdisciplinaridade, per si, não é um problema, e sim o mau uso dela.

Como bem lembra Ronaldo Vainfas, “a interdisciplinaridade contribuiu muitíssimo, no atual século, para o aperfeiçoamento do saber e da narrativa historiográfica”, mas, por outro lado, “foi muitas vezes mal compreendida. Levada ao extremo, confundida com transdisciplinaridade, ao invés de entendida como diálogo entre disciplinas quanto aos métodos e objetos, pode conduzir a verdadeiros cataclismos teóricos”.[11] Isto aconteceu, segundo Vainfas, porque os historiadores ligados à Nova História e à história das mentalidades “se viram à certa altura encantados com o estruturalismo de Lévi-Strauss e com a anti-história foucaultiana”.[12] Vainfas tem razão. Hodierno, a delimitação de campos fixos e rigidamente estabelecidos parece ser impraticável, e já foi abandonada a idéia da oposição inexorável da História frente às Ciências Sociais, à Literatura, à Filosofia etc. Se a tendência é a colaboração, a maneira de realizá-la está ainda indefinida. E não me parece que a melhor maneira de empreender essa colaboração seja tomando a História como uma “proto-arte”, tal como propõe Albuquerque Júnior.[13] Em vez disso, prefiro continuar acreditando no velho – porém ainda atual – Marc Bloch quando postula que a História é uma “ciência na infância: como todas as que têm por objeto o espírito humano, que chegou tarde ao campo do conhecimento racional.

Ou, melhor dizendo, velha sob a forma embrionária da narrativa, durante muito tempo atravancada de ficções, durante mais tempo ainda vinculada aos eventos mais imediatamente perceptíveis, a história é, como empresa refletida de análise, novíssima. […] Não ultrapassou ainda, quanto a alguns dos problemas essenciais do seu método, os primeiros tenteios. E é por isso que Fustel de Coulanges e, já antes dele, Bayle tinham talvez razão quando a consideravam ‘a mais difícil de todas as ciências’”.[14] Em lugar de “arte”, “proto-arte” ou qualquer outra bizarrice que o valha, Bloch asseverava: a História é uma ciência em marcha, em construção, em permanente processo de definição (e redefinição) de seus métodos e aparatos analíticos, porém, que não se enganem: de difícil operacionalização. Por essa perspectiva, a produção do conhecimento histórico não deve ficar ao sabor dos romancistas, nem dos diletantes de plantão.

Notas

2. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru/SP: Edusc, 2007, p. 12.

3. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História…, p. 13.

4. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História…, p. 88.

5. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História…, p. 65.

6. FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 40.

7. Apud REVEL, Jacques. “História e Ciências Sociais: os paradigmas dos Annales”. In: A invenção da sociedade. Lisboa: Difel, s.d., p. 37.

8. A esse respeito, ver REIS, José Carlos. Escola dos Annales: a inovação em História. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

9. BURKE, Peter. “Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro”. In: Peter Burke (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992, p. 35.

10. A esse respeito, ver SILVA, Fernando Teixeira da. “História e Ciências Sociais: zonas de fronteira”. História, Franca, v. 24, n. 1, 2005; SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Entre amigas: relações de boa vizinhança”. Revista USP, n. 23, 1994, pp. 68-75 e, dessa mesma autora, “Questões de fronteira:sobre uma antropologia da história”. Novos Estudos Cebrap, n. 72, 2005, pp. 119-135.

11. VAINFAS, Ronaldo. “História das mentalidades e História cultural”. In: Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 145.

12. Idem, p. 146.

13. ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. Op. cit., p. 64.

Petrônio José Domingues – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe.


ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru: EDUSC, 2007. Resenha de: DOMINGUES, Petrônio José. História: a A HISTÓRIA É ARTE?  sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [20] jan./ jun. 2009. Acessar publicação original [MLPDB].

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.