Categories: Todas as categorias

Histoires d’un Historien Kantorowicz | Alain Boureau

Na Biblioteca da Pós-graduação em História, Antropologia e Ciência Política da UFF, encontra-se um livro pouco conhecido do público brasileiro, mas que trata de autor de inegável influência nas historiografias medieval e moderna, bem como na ciência política. Alain Boureau, historiador francês especializado nas concepções de poder no Antigo Regime, pretende neste ensaio desfazer o “monumento” Ernst Kantorowicz, autor de dois livros clássicos: a biografia do imperador Frederico II, publicação original alemã de 1927, e o célebre Os Dois Corpos do Rei, publicado primeiramente em inglês, em Princeton, 1957, com edição brasileira de 1998.

Boureau parte da perspectiva de que a produção intelectual de Ernst Hartwig Kantorowicz (1895-1963) se confunde com sua própria vida. A princípio, pode-se pensar que o ensaio consiste em mero exercício biográfico, ao serem relatados episódios concernentes ao nascimento de Ernst na Posnânia – terra de origem polonesa, que passou ao domínio da Prússia em 1793, depois ao II Reich – como filho de família judia ligada à produção e ao comércio de licores e espirituais. Sua participação na guerra entre 1914 e 1919 também é descrita. Após ser ferido em 1916, o jovem Ernst participa de missões na Ucrânia e na Turquia. No retorno à Alemanha, estuda economia em Munique e ingressa no círculo literário do poeta Stefan George, conhecido por seu culto ao Belo e pelo desejo de uma Alemanha renovada, na miríade de movimentos direitistas que assolavam a frágil República de Weimar. Neste âmbito, Kantorowicz escreve a biografia de Frederico II, após visitar o túmulo do imperador em Palermo, sul da Itália. O sucesso do livro garantiu sua entrada na Universidade de Frankfurt, em 1930, mas sua condição judia impõe-lhe crescentes obstáculos, ante a ascensão do nazismo e a fundação do III Reich.

Desta forma, Kantorowicz migra definitivamente, em 1939, para os Estados Unidos, instalando-se na Universidade de Berkeley, Califórnia. Destaca-se por sua recusa em prestar sermão de juramento contra os comunistas, em 1949, em pleno macartismo norte-americano. Em 1951, atravessa o país e vai para Princeton, onde lidera um círculo fechado de discípulos, entre eles Ralph Giesey, autor de livro escrito na mesma época que The King’s Two Bodies. Após sua morte, alguns de seus estudos são selecionados e publicados.

Entra-se, assim, na era “monumento E. K.”, que atinge seu ápice nos anos oitenta, quando o argumento central de Os Dois Corpos… (segundo os juristas Tudor, o rei teria um segundo corpo, isento de paixões e morte…) passa a ser utilizado em diversos estudos acerca do poder e do Estado, das diferentes monarquias do Antigo Regime até a presidência dos Estados Unidos da América. Em 1987, a publicação, em francês, do livro de Giesey, sobre os rituais funerários dos reis franceses, com o pomposo título Le Roi ne Meurt Jamais (materialização cerimonial da teoria dos dois corpos, pela reverência prestada às efígies régias), reforça o culto ao historiador germano-polonês.

Entretanto, o livro de Alain Boureau significa mais que simples biografia, ao constituir uma aula de sensibilidade e argúcia interpretativa, exemplo de estudo historiográfico que considera aspectos pertinentes à individualidade humana. Boureau rejeita o jogo vicioso de causalidades, que poderia conceber o homem-historiador Kantorowicz como mero representante de um conjunto de circunstâncias: a infância desprestigiada pela origem eslava e pela atividade familiar ligada ao álcool, a negação da condição judia e polonesa pela participação na guerra e a adesão ao círculo reacionário de George.

Este quadro comporia um perfil de personalidade frustrada, com desdobramentos políticos e intelectuais. A identificação a um Estado forte seria expressa, em princípio, mediante o estudo do poder excepcional e carismático do imperador germânico no século XIII, o que compensava o caos político vivido na Alemanha de Weimar. Depois, pelas teorias jurídicas, com nítida inspiração teológica, que respaldaram o poder de Elizabete I na Inglaterra, e pelas idéias políticas estudadas na América, após a migração forçada de Kantorowicz pelo nazismo. Tratava-se, então, de esmiuçar e explicar a origem do poder, construído através do mito e da ficção, após ter-se encantado com ele, à época de Frederico Hohenstaufen, príncipe da Renascença antes do tempo. Uma espécie de exorcismo acadêmico, que transformava a carga emocional de afeto em processo de linguagem, mediante análise crítica dos mecanismos de poder.

Sem rejeitar estas ilações, Boureau relativiza o possível sofrimento vivido por Ernst Kantorowicz, na infância e na juventude, pelo anti-semitismo, em um contexto onde falava mais alto a crescente germanização que atingia a Posnânia, desde a primeira metade do século XIX. Sair para a guerra, assim, significava deixar a família e associar-se à Pátria, a este segundo “pai” (o pai de Ernst morre em 1919): o Estado alemão modernizador e progressista, distante dos confins eslavos atrasados. A comunidade judaica tendia a partilhar deste ideal germanizador. Não por acaso, Kantorowicz estuda economia após a derrota na guerra, como contributo possível ao reerguimento alemão.

Surgem então o poeta Stefan George e seus discípulos, grupo que se caracteriza por um perfil mais esotérico que político. Carente de mitos, a Alemanha de Weimar consagra a biografia feita por Kantorowicz como sucesso editorial, dez mil exemplares vendidos em alguns anos. Mas o livro também recebe críticas: acusam o autor de ser fabricador de heróis, pois as ações do imperador não seriam tão grandiosas e espetaculares, quando situadas no devido contexto. Kantorowicz responde às críticas de forma brilhante: os mitos não são envelopes banais e retóricos da realidade, mas objetos históricos com causalidade própria. A resposta tem a aprovação de Boureau, para quem a idéia de uma história construída pela linguagem, ao lado das estruturas da realidade, não fez ainda seu caminho na atual historiografia, dividida entre o estudo do “real” e a análise das imagens. Mas esta dicotomia aparece na própria ação intelectual de Kantorowicz: criticado, só então adentra os arquivos para pesquisar e compor um segundo volume de notas e citações, publicado em 1931. Boureau observa que, neste caso, o resultado apareceu antes da experimentação. Doravante, a erudição e as citações seriam as principais marcas do historiador alemão, especialista na decifração de pequenas fontes e avesso ao debate.

Contudo, previsivelmente, a biografia de Frederico II seria admirada por Hitler e Mussolini; nos EUA, o próprio Kantorowicz inviabilizaria nova publicação da obra em alemão, temeroso do papel dos mitos na formação de um nacionalismo perigoso. Este episódio, bem como a recusa ao juramento anticomunista em Berkeley, podem ser vistos como sinais de uma conversão de Kantorowicz a um “humanismo” mais universal, expresso, por exemplo, no último capítulo de Os Dois Corpos…, consagrado a Dante e à idéia de uma realeza antropocêntrica.

Mas a interpretação de Boureau adquire maior brilho ao relacionar aspectos da personalidade pública de Ernst Kantorowicz aos seus estudos. O ensaio é dividido em capítulos não lineares, que trabalham metáforas inspiradas em Os Dois Corpos do Rei. Deste modo, “Corps caché” aborda principalmente a grande Alemanha escondida na República de Weimar; “Incorporation” trata da guerra e da perspectiva de se “morrer pela Pátria”, mediante ligações entre os símbolos do pai físico abandonado – a família – e este segundo pai, a pátria do Estado alemão; “Corps perdu”, por conseguinte, estuda a história da Posnânia como terra natal e a opção de Kantorowicz em sair de uma comunidade orgânica e fechada – o mundo degenerado dos confins eslavos – para entrar em uma organização exterior e aberta, o Estado libertador e capaz de combater os arcaísmos sociais; por sua vez, “Corps étranger” analisa o ambiente norte-americano e as concepções elitistas de Kantorowicz, no referente ao saber universitário e ao seu círculo restrito de alunos; por fim “Double corps” enfrenta o tema da sua produção acadêmica, aproximando o homem dos seus livros.

De discípulo a mestre. Historiador de muitos elogios e honras, membro de várias instituições, Kantorowicz formou, no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, um seleto grupo de amigos e orientandos, que se reuniam em seminários na sua casa. Retomava, assim, o papel desempenhado por Stefan George, em Heidelberg. Após análise minuciosa do conteúdo e do plano de Os Dois Corpos do Rei, Alain Boureau associa o percurso biográfico de Kantorowicz a uma obsessão pelo duplo pertencimento ontológico: o físico/natal e o místico/político.

Em relação ao subtítulo do livro, que inclui o termo “teologia política”, Boureau encaminha duas explicações. A primeira, mais evidente, associada às idéias de Weber e ao desencantamento do mundo. Mas Kantorowicz inverte esta perspectiva, ao contar a história do nascimento do Estado Moderno, enfatizando a sua inspiração teológica e medieval, diferente da análise usual que endossa a laicização do poder nos Estados, em contraposição à esfera eclesiástica. Seu estudo do poder carismático pelo exemplo de Frederico II também difere da teoria weberiana, ao concebê-lo como um caso excepcional e não instituído dinasticamente, como o fez, por exemplo, Marc Bloch.

A segunda explicação, mais complexa e provocante, enfrenta a hipótese da existência de certa nostalgia do Estado autoritário, presente em Os Dois Corpos… A noção de teologia política, inventada em 1922 pelo jurista alemão, simpatizante do nazismo, Carl Schmitt, guardaria semelhanças com as idéias do historiador. Em outras palavras, trata-se de saber se a orientação reacionária de Kantorowicz durante a República de Weimar se cristalizou em sua prática profissional. Segundo Alain Boureau, apesar do exílio e de Berkeley, Kantorowicz permaneceu um adorador do Estado forte, filho eterno do Pai prussiano. Neste sentido, as novas vestes da análise fria da linguagem de Kantorowicz em Os Dois Corpos…, diferentes do deslumbramento pelo poder na biografia de Frederico II, seriam um disfarce para demônios interiores, não de todo exorcizados. Mais uma vez, a diferença em relação à trajetória de Marc Bloch (também de origem judia). Após 1924, ao publicar Os Reis Taumaturgos, o historiador dos Annales não estudou mais os chefes e os soberanos.

Portanto, para Alain Boureau, a história constituía, para este “patriota apátrida” Kantorowicz, o meio e o recurso para se inventar uma história verdadeira, legitimada por histórias passadas e suas contemporâneas. A mistura da obsessão singular – capaz de transformar detalhes desapercebidos em aspectos importantes – e de objetividade erudita, faria a grandeza e a peculiaridade da obra de Kantorowicz, ao comunicar aos seus leitores uma paixão pelo sentido, sentido capaz de construir narrativas de um imperador herói, cortesãos entusiastas, juristas mirabolantes e reis divinizados.

Por meio de uma erudição também especial, que conjuga trechos de romances, biografias de parentes e contemporâneos, teoria política, psicanálise e, obviamente, muita história, Alain Boureau analisa as histórias deste historiador, o último dos gibelinos. Tudo isto é colocado a serviço de uma crítica contundente, que assusta por sua ferocidade, principalmente ao pensar-se no título irônico de seu outro livro, também preocupado em destruir o modelo em questão: Le Simple Corps du Roi: l’impossible sacralité des souverains français, XV-XVIII siècle. Simples corpo, impossível sacralidade… A erudição e a virulência da crítica são proporcionais ao impacto obtido pela obra do historiador- monumento. Pelo que as palavras finais de Boureau, ao citar Borges, lhe caem tão bem, embora as tenha escrito para o seu objeto Kantorowicz: “A erudição é a forma moderna do fantástico.”


Resenhista

Rodrigo Bentes Monteiro – Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: rodbentes@openlink.com.br


Referências desta Resenha

BOUREAU, Alain. Histoires d’un Historien Kantorowicz. Paris: Gallimard, 1990. Resenha de: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Crítica monumental. Tempo. Niterói, v.10, n.19, 2005. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

Recent Posts

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.9, n.1, 2020.

Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…

2 meses ago

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.9, n.2, 2020.

Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…

2 meses ago

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.12, n.03, 2023.

Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…

2 meses ago

História da Historiografia. Ouro Preto, v.16, n. 42, 2023.

Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…

2 meses ago

Sínteses e identidades da UFS

Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…

2 meses ago

História & Ensino. Londrina, v.29, n.1, 2023.

Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…

2 meses ago

This website uses cookies.