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Histoire naturelle et voyages scientifiques (1780-1830) | Lorelai B. Kury

Conduzir os leitores no “sentido inverso” ao das viagens francesas aos países exotiques na época da transição do século XVIII para o século XIX é a proposta de Histoire naturelle et voyages scientifiques (1780-1830), publicado na França em 2001 e que apresenta a tese de doutoramento apresentada na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris pela historiadora Lorelai Kury, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Um dos primeiros méritos a se destacar nessa obra, embora as viagens sejam um dos aspectos mais recorrentes na literatura internacional relacionada à história natural, é exatamente a originalidade com que o tema é abordado. Não se trata de questionar ‘olhares europeus sobre países exóticos’. Pelo contrário, interessa compreender as razões que levaram os franceses a viajar, as instituições que organizaram e lucraram com esses empreendimentos, o destino dado às coletas que chegavam em profusão à França na virada do século XVIII para o XIX, para servir à agricultura e à indústria e favorecer as pesquisas dos naturalistas em seus gabinetes.

E se o tema é a cultura científica francesa do final do século XVIII, o lugar de destaque, como não poderia deixar de ser, é reservado ao Muséum d’Histoire Naturelle de Paris.

O período escolhido — 1780-1830 — é exatamente aquele em que a história natural desfrutou de um status único entre as ciências naturais, acrescido de sua reputação como disciplina acadêmica ao longo do século XVIII. Ela permaneceu vista como prática próxima ao domínio público, aberta e igualitária (Drouin et al., 1997). Seguindo os preceitos estabelecidos por Lacepède e seus colegas, que viam no estudo da história natural o fundamento da reforma intelectual que a Revolução Francesa então anunciava, advogou-se que o contato direto com a natureza era útil para o bem-estar e a moral dos cidadãos (Hahn, 1997). Nesse sentido, a reificação do Muséum como instituição modelar foi algo inseparável de sua capacidade de fornecer um local de exposição do conhecimento e, conseqüentemente, de sua imagem como provedor de um saber patriótico (Spary, 1997).

Naquilo que identifico como uma discussão no contexto dessas idéias, a obra de Lorelai Kury, partindo de ampla documentação primária e de vasta bibliografia, disseca as diferentes práticas científicas das viagens de forma primorosa. A autora analisa as instruções de viagem; menciona teorias científicas vigentes; descreve o movimento de aclimatação de espécies; as peripécias de reunir, enviar, armazenar coleções; discute a tendência à profissionalização e à especialização dos naturalistas; refere-se à aliança estreita entre as ciências e as artes, característica do século XVIII, e ao debate sobre a utilidade intrínseca da história natural na época; e destaca a problemática da filantropia que também faz parte intrínseca, em inúmeros casos, da consolidação da história natural como disciplina da era moderna. Essas características tornam esse vibrante período fundamental para o entendimento do papel da história natural no iluminismo, em uma época que iria testemunhar grandes revoluções e utopias políticas e culturais, nos processos de construção de novos impérios, de formação de nacionalidades, tão emblematicamente representados pela Revolução Francesa e pelas guerras napoleônicas.

O livro está dividido em cinco capítulos. O primeiro parte da constatação do lugar central ocupado pela natureza na cultura francesa da transição para o século XIX. Iniciando com a discussão sobre aspectos “dos sonhos de abundância”, do imaginário cristão do jardim do Éden, a autora passa então a examinar os relatos das viagens imaginárias e das utopias científicas como gênero literário, em oposição às idéias racionais do iluminismo.

No segundo capítulo, Lorelai Kury interpreta como esses sonhos de abundância estavam relacionados às buscas de respostas para as necessidades concretas da população, em termos econômicos, políticos e sociais. O controle da natureza pelo homem europeu como condição para atender a essas necessidades iria situar-se na base dos projetos de viagem e na concepção utilitarista dos saberes e produtos adquiridos e apropriados durante essas expedições. Se não faltam as referências à batata — o exemplo por excelência da importância dos gêneros alimentícios exóticos na Europa — e a outros gêneros, o destaque é dado à fruta-pão nas colônias francesas, cuja importância relacionava-se à premência de se suprir a subsistência dos escravos. Essa importância foi destacada pelos naturalistas parisienses, particularmente por André Thouin, o jardineiro do Jardin des Plantes, que seria, inclusive, lembrado pelo tema no elogio fúnebre a ele dedicado por ocasião de sua morte.

Embora não se trate de uma obra que privilegie abordagens conteudísticas, da história natural, o livro indica os debates que polarizaram a disciplina no período, em suas versões francesas. Identificados na historiografia da área como polêmicas em torno da teologia natural e das tradições e dos programas dinâmico-histórico e classificatório-descritivo protagonizados por Buffon e Lineu, os debates são mencionados pela autora, que salienta a abundante literatura produzida por naturalistas e filósofos que relacionaram o estudo da natureza à felicidade humana e aos ideais republicanos.

Servindo-se das amplas redes de sociabilidade construídas nas viagens, pouco a pouco os museus foram se especializando, hierarquizando, ao mesmo tempo que centralizavam profissionais e conhecimentos. Os museus europeus abarrotaram-se com as conquistas dos impérios, à proporção que rompiam com a teologia natural, que se criavam novas áreas de conhecimento, que se transferiam os interesses dos sistemas de classificação para os aspectos internos de funcionamento dos sistemas fisiológicos.

Redefinido como a própria cultura da história natural no século XVIII, o próprio local do Muséum constituiu-se como espaço de extrema visibilidade. Foi aí que esses e outros programas rivais de história natural adquiriram prestígio científico e popularidade junto à opinião pública.

Situo no contexto dessa discussão historiográfica o Jardin des Plantes — reformado a partir de 1793 — ‘Muséum d´Histoire Naturelle e a transformação dos objetos naturais em objetos científicos’, graças à organização, ao enquadramento em sistemas classificatórios e a publicação em catálogos dos materiais coletados nas viagens.

Tratadas de maneira precisa, as inúmeras e bem conhecidas histórias sobre o Jardin des Plantes são abordadas de acordo com o objetivo da autora: enfatizar a relação entre o Jardin e seu público, segundo a ligação entre história natural e sua utilidade pública como expressão de ordem e civilização. Destacando que, por ser a instituição que encarnava por excelência a multiplicidade de funções — pesquisa, ensino e divulgação —, o conhecimento do Muséum d’Histoire Naturelle favorece o entendimento das viagens científicas, a autora passa a analisar os vínculos entre o Jardin e os cursos gratuitos ministrados na instituição, bem como os motivos que levaram à criação da Menagérie, voltada para o aprimoramento dos estudos zoológicos da época. Ela realça ainda as relações entre a instituição e o aperfeiçoamento da agricultura, das artes e ofícios e do comércio, e o significado que essa relação teve na reestruturação e na ampliação do museu nesse período.

Se, no século XVI, os naturalistas argumentavam que o museu em si distinguia a nova e a antiga história natural, em fins do século XVIII, as discussões sobre os métodos de ordenar e catalogar as coleções caracterizariam o espaço. Lorelai Kury ressalta que, ao demarcar os papéis dos profissionais e do público, os museus incorporaram aquilo que ensinavam os debates sobre as construções das nacionalidades que ajudavam a forjar. Nessa perspectiva, a autora discute de maneira aprofundada a função dos múltiplos significados atribuídos aos objetos de história natural e à própria natureza, transformados em símbolos de conquista, poder, ordem e civilização.

Também é analisado o próprio espaço do Jardin, que se torna palco de cerimônias patrióticas em louvor aos grandes savants. O enterro de Daubenton revestiu-se de uma homenagem às próprias leis naturais e à moralidade naturalizada: “a polissemia do termo ‘natureza’ permite associar aqueles que estudam os produtos naturais — os naturalistas — à obediência a princípios morais irrepreensíveis” (p. 5).

Nessa discussão, a identificação dos museus e seus objetos como “lugares de memória”, como quis Pierre Nora (1997), faz ressaltar o papel central desempenhado pelo Muséum na construção e na especialização da pesquisa científica em história natural, no período analisado pela autora. Centro por excelência de produção de conhecimentos, lá eram formuladas as instruções de viagem e para lá retornava grande parte dos objetos coletados e do espólio de povos conquistados durante as expedições francesas.

São exatamente as instruções de viagem — que “orientaram o olhar e moldaram os gestos” — e as viagens em si — com suas “missões de apropriação física e intelectual do mundo que misturaram utopia, ciência, lucro pessoal, utilidade pública e espírito de conquista” (p. 147) — que Lorelai Kury analisa no terceiro e no quarto capítulos, dois pontos altos da obra. Essas orientações precisas e minuciosas destinavam-se não só aos naturalistas, mas ao conjunto de profissionais envolvidos nas expedições. A autora mostra como a institucionalização das instruções de viagem e a criação do título de ‘correspondente’ do Jardim do Rei foram etapas fundamentais na centralização, por parte do Muséum, do conjunto das atividades científicas possibilitadas e diversificadas pelas viagens.

A autora recupera a história dessas instruções, especialmente de tradição francesa, em suas diferentes versões e atualizações, bem como dos lugares geográficos privilegiados pelas diferentes viagens. Ela examina a posição de destaque que os naturalistas-jardineiros ocupavam nas primeiras instruções e a forte concepção utilitarista decorrente dessa posição. Isso justifica-se, sobretudo, quando lembramos que André Thouin talvez tenha sido o maior representante da corrente científica que privilegiou o engajamento da história natural nas atividades filantrópicas e de utilidade social imediata.

Retomando a tradição das instruções, desde as de Boyle, de 1660, publicadas postumamente em 1692 e posteriormente traduzidas para o francês, a autora também analisa as instruções dos alunos de Lineu, as de Michaelis, du Monceau, Turgot etc. Instrumentos de controle muito bem definidos, essas determinações constituíam um verdadeiro programa que orientava desde a escolha do local das coletas, passando por seu envio e classificação, até os processos expositivos. Ao tratar de filantropia e precisão, a autora comenta como a agricultura parece ter sido o campo escolhido para as causas filantrópicas em um período no qual a ciência humboldtiana (Canon, 1978) já levantava a questão da confiabilidade e da exatidão dos relatos de viagem, apoiada no uso de instrumentos de medição e nos questionários de dados quantitativos, característicos da física do globo, a corrente principal da filosofia natural e grande novidade da ciência profissional na primeira metade do século XIX.

Lorelai Kury examina o interesse europeu pelas viagens aos “mares do sul” e como elas eram minuciosamente preparadas, com uma variedade de instruções emanadas das mais diversas instituições, seja do próprio rei, da Academia de Ciências, da Academia de Medicina, do Jardin, como no caso da expedição de La Pérouse. Outras viagens teriam objetivos bem precisos, como é o caso da de Entrecasteux, que partiu em busca de La Pérouse.

As missões preconizadas pelo Muséum d’Histoire Naturelle são tratadas no quarto capítulo, no qual se situa a discussão tão cara e tão polêmica para a história natural do período. Os papéis do campo, do viajante, dos coletores, dos amadores, das diversas categorias de profissionais das viagens científicas e da viagem em si em termos de produção local de conhecimentos são comentados de forma instigante pela autora, quando retoma a oposição que Cuvier construíra — ao fazer a crítica dos trabalhos de Humboldt — entre o naturalista sedentário e o viajante (Outram, 1984). Esse é um aspecto central na discussão sobre a função do campo na produção dos conhecimentos da disciplina e que opôs os naturalistas entre si e as áreas disciplinares que se particularizavam, como, por exemplo a anatomia comparada e a paleontologia, a história natural de tradição baconiana e a física do globo.

Ao analisar o lugar que o naturalista viajante ocupava no Muséum, Lorelai Kury aborda ainda dois temas: a literatura científica e a divulgação da ciência. Aqui temos exemplos de textos não publicados, de méritos não reconhecidos. Não falta a problematização sobre os métodos de aquisição das coleções, seja por compra, troca ou mesmo pilhagem. Exemplos paradigmáticos do último método de coleta são a missão de Geoffroy Saint-Hilaire em Portugal, por ocasião da invasão napoleônica, em contraponto com a missão civilizatória francesa da viagem do outro Saint-Hilaire, Auguste, pelo Brasil.

Outro aspecto interessante e importante abordado nesse capítulo é a Escola de Jovens Naturalistas como modelo formador do naturalista-viajante, que, por um lado, devia servir como agente recrutador de novos talentos, e, por outro, como meio de enquadrá-los segundo as concepções e necessidades do Muséum. É interessante notar como a instituição lançava mão de publicidade para atrair candidatos, que também eram aliciados pela remuneração recebida durante a formação.

O quinto e último capítulo discute como a disciplina se apropriava de todo o mundo novo e desconhecido dos europeus e como os limites e fronteiras do conhecimento eram questionados e ampliados pela própria natureza em sistematização, nas obras de De Candolle e Humboldt, entre outros. Debate também como o desenvolvimento das sociedades de aclimatação testemunhava a construção e a mobilidade das redes cada vez mais importantes tecidas entre os naturalistas, as viagens e as instituições de ensino e pesquisa, como museus, jardins botânicos e zoológicos.

Abordando as discussões em torno da influência do clima sobre a civilização, não mais nos termos puramente científicos da história natural e da climatologia, mas sim em termos políticos e através da literatura médica, a autora aponta com clareza os debates que tratavam da degeneração, que vinculavam de forma indissociável seres e lugares, desde Hipócrates, e eram marcantes nas concepções da ‘cadeia dos seres’ e particularmente nas teses buffonianas e de De Paw sobre a inferioridade da natureza nas Américas.

Ao retomar temas centrais de cada capítulo, a autora conclui chamando a atenção ainda para quanto o expansionismo francês não se manifestou apenas através do poder econômico ou dos empreendimentos colonizadores, destacando o papel da história natural nesse processo.

Lorelai Kury é bem conhecida dos leitores brasileiros interessados em história da ciência pela qualidade de sua produção. A relevância do trabalho para a história da disciplina história natural recomenda a tradução do volume para o português.

Referências

CANON, Susan F. 1978 Science in culture: the early Victorian period. Nova York, Science History Publications.

DROUIN, Jean-Marc. et al. 1997 ‘Nature for the people’. Em N. Jardine et al., Cultures of natural history. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 408-25.

HAHN, Roger 1997 ‘Du Jardin du Roi au Muséum: les carrières de Fourcroy et de Lacepède’. Em C. Blanckaert et alii (org.), Le Muséum au premier siècle de son histoire. Paris, Éditions du Muséum National d´Histoire Naturelle, pp. 31-41.

NORA, Pierre. (org.) 1997 Les lieux des mémoires. Paris, Gallimard.

OUTRAM, Dorinda 1984 Georges Cuvier: vocation, science and authority in post-revolutionary France. Manchester, Manchester University Press.

SPARY, Emma 1997 ‘Le spectacle de la nature: contrôle du public et vision républicaine dans le Muséum jacobin’. Em C. Blanckaert et alii (org.), Le Muséum au premier siècle de son histoire. Paris, Éditions du Muséum National d´Histoire Naturelle, pp. 457-79.


Resenhista

Maria Margaret Lopes – Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas. E-mail:  mmlopes@ige.unicamp.br


Referências desta Resenha

KURY, Lorelai B. Histoire naturelle et voyages scientifiques (1780-1830). Paris: L’Harmattan, 2001. Resenha de: LOPES, Maria Margaret. Invertendo o sentido das viagens. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.10, n.2, maio/ago. 2003. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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