Hibisco Roxo | Chimanmanda Ngozi Adichie
A resenha aqui apresentada busca analisar o romance “Hibisco Roxo”, primeiro livro da autora africana Chimamanda Ngozi Adichie, lançado em 2003 e publicado no Brasil em 2011 pela editora Companhia das Letras e que conta a história de uma família nigeriana bem sucedida, mas permeada de conflitos a partir dos quais são apresentadas questões inerentes à cultura da Nigéria, bem como problemáticas ocasionadas pelo processo de colonização ocorrido no país.
Para compreendermos a obra em sua totalidade se faz necessário perceber o universo ao qual a autora se insere, a fim de se analisar a dimensão política e militante de sua produção. Chimamanda Ngozi Adichie nasceu em 1977, na cidade de Abba, estado de Anambra, Nigéria. É filha de um professor universitário e de uma administradora. Passou a infância em Nsukka, cidade universitária da região sudeste do país, indo para os Estados Unidos aos 19 anos, onde se formou em escrita criativa pela Universidade Johns Hopkins de Baltimore, além de mestre em estudos africanos pela Universidade de Yale.
A autora consegue com “Hibisco Roxo” se opor àquilo que caracteriza como “história única”, na medida em que problematiza elementos da vida no interior do continente africano através de uma narrativa que parte de dentro para fora, de uma Nigéria contada por ela mesma, com olhar de cotidiano, mas não de tranquilidade, de homogeneidade, de ausência de conflitos. Expõe outras histórias e outros olhares sobre a África. Histórias de pessoas que fogem do estereótipo que se atribui ao continente, como restrito à fome, aids e conflitos militares. É uma obra crítica, imbuída de expor o choque cultural ao promover a reflexão sobre a imposição de valores morais/religiosos expressos através da adoção de ideais de civilização internalizados pelos próprios africanos, demonstrada no livro na visão eurocêntrica que o personagem Eugene desenvolveu após sair da Nigéria para estudar na Inglaterra, convivendo com religiosos católicos. Passou a ter uma repulsa à cultura tradicional de seu país, uma vez que nega os valores até do pai. Para ele, seu pai (Papa-Nnukwu) seria um ímpio e por isso o priva do contato com os netos. Na oportunidade em que estes vão visitá-lo, vemos as dificuldades que têm em compreender a legitimidade que o termo “ímpio” tem ao ser usado para caracterizar o avô:
Naquele dia eu também examinara Papa-Nnukwu, desviando o olhar quando ele me encarava, procurando por um sinal que marcasse sua diferença, sua condição de pessoa ímpia, não vi nenhum, mas estava certa de que eles deviam estar em algum lugar. Tinham de estar. (p.71)
No que diz respeito à organização do livro, este se divide em quatro capítulos, aos quais se denominam: “Quebrando deuses: Domingo de Ramos”; “Falando com nossos espíritos: antes do domingo de Ramos”, “Os pedaços de deuses: após o domingo de Ramos” e “Um silêncio diferente: o presente”. Organizados nesta ordem, dão um tom de retrospectiva à história, e sobretudo o último capítulo deixa transparecer a transformação porque passa a família da protagonista Kambili. O “presente” associado a “um silêncio diferente” evidencia o pequeno número de falas que a personagem principal tem na narrativa. Seu mundo expressivo se faz no pensamento. Para ela, o silêncio é cotidiano durante quase toda sua vida, colocando-a na zona de conflito no período que passa com a tia Ifeoma em Nsukka, onde convive com os primos Obiora, Amaka e Chima, entre os quais o diálogo familiar é muito mais intenso, e a liberdade convive com as condições ruins da casa onde moram, da escola onde estudam, dos problemas financeiros que vivem.
A constante quietude de Kambili se mostra também como um paradoxo em sua escola: enquanto as colegas de turma a acham metida por estar sempre calada, ou sair às pressas assim que termina a aula para não atrasar seu motorista, sua professora refere-se a ela como “tem inteligência acima da média, e é silenciosa e responsável” (p.40). Neste caso, ser silenciosa é sinônimo de boa aluna. No entanto, se a diretora a considera “brilhante e obediente e uma filha que merece o orgulho dos pais”, seu pai Eugene a pune todas as vezes em que não fica em primeiro na turma.
Adentrando na questão do enredo, Hibisco Roxo tem sua narrativa construída sob a perspectiva de Kambili, uma jovem nigeriana de 15 anos, que tem sua família composta pelo pai (Eugene), sua mãe (Beatrice) e seu irmão (Jaja). A questão religiosa, em destaque na obra, bem como a adoção de práticas que não são as tradicionais do país onde a família vive evidencia uma questão muito mais ampla do ponto de vista histórico: a negação de valores, símbolos e de elementos culturais africanos e a constante valorização da cultura “do colonizador”. Alia-se a esta questão, as dificuldades de cunho social enfrentadas pela população, relacionadas à pobreza, fome, saúde e ao cerceamento do direito à liberdade de expressão no contexto dos golpes militares no país.
A autora, através de uma escrita atraente, discute os reflexos da colonização sob o viés do conflito cultural interno por que passa a Nigéria, exposto na obra através do choque entre a família de Kambili e seus familiares, que são distanciados do convívio por representarem a cultura e religião opostas àquela que Eugene acreditava ser a adequada à casa. Durante toda a narrativa, Kambili demonstra um respeito pelo pai que confunde-se com o medo que os integrantes da família sentem e que fica implícito à todo momento. Entre as restrições impostas está a da comunicação em público, que segundo ele deveria sempre ser feita em inglês, guardando-se o uso da língua igbo para dentro de casa: “Precisávamos ser civilizados em público, ele nos dizia; precisávamos falar inglês” (p.20).
Algo que chama a atenção é o caráter aparentemente ambíguo deste personagem no decorrer da história. Entre o empresário de sucesso, homem religioso e benevolente da vida pública e o pai/esposo rígido e violento da vida privada parece haver uma distância enorme, mas que nos é diluída neste mesmo cotidiano endurecido quando ele compartilha seu chá com os filhos, dando-lhes “goles de amor”. Dilui-se também quando Kambili demonstra a admiração que tem pelo pai expresso no trecho: “eu fixava o olhar em seus lábios, no movimento deles, e às vezes esquecia que estava ali, às vezes queria ficar assim para sempre, ouvindo sua voz, ouvindo as coisas importantes que ele dizia” (p.31), Admiração que está presente também na imagem pública de Eugene: “Um homem íntegro, o homem mais corajoso que conheço” (Ade Coker, editor do Standart, na ocasião em que deixa a prisão após ser detido por conta de críticas ao governo, p.48). Mas ainda é Eugene que provoca dois abortos em sua esposa Beatrice por conta de espancamentos, além de sequelas físicas em seu filho.
Os motivos que levaram à escolha do título, Hibisco Roxo, não se apresentam de forma tão evidente, dando margem a interpretações diferentes. Na residência de Kambili há alguns hibiscos que se oferecem em beleza aos transeuntes que se retiram após uma visita à residência. Afora este detalhe, talvez o trecho onde se possa justificar a escolha do título se encontra na página 22, onde temos o seguinte pensamento de kambili:
A rebeldia de Jaja era como os hibiscos roxos experimentais de tia Ifeoma: rara, com cheiro suave da liberdade, uma liberdade diferente daquela que a multidão, brandindo folhas verdes, pediu na Government Square após o golpe. Liberdade para ser, para fazer.
Acredito que a escolha do nome “Hibisco roxo” se mostra como uma grande metáfora da liberdade africana, como algo ainda experimental e que, como tal, transita pelos limites da adaptação, do acerto e do erro, mas que só se aperfeiçoa na prática. Alguns personagens se inserem como grandes representações da história da África e das problemáticas envolvendo o contexto atual. Jaja com sua rebeldia da liberdade associa-se aos conflitos travados pelos africanos em busca da liberdade frente ao colonialismo. PapaNnukwu como a representação viva das tradições africanas, sua cultura preservada, mas sofrendo com os ímpetos das tentativas de imposição cultural. Eugene, como a personificação da internalização de valores colonialistas, conforme já anteriormente descrito. Kambili como a própria África se descobrindo, fazendo suas próprias escolhas, partindo de um silêncio imposto e ganhando voz ativa paulatinamente para contar sua própria história. Amaka pode ser vista como a rejeição ao universo europeizado e diferente ao seu mundo. Cai no estereótipo de ver este “outro” como alienado, passível de desrespeito. O padre Amadi, para o qual Kambili nutre uma paixão adolescente, contrapondo-se à estática e europeia figura do padre Benedict poderia representar a não homogeneidade religiosa e a possibilidade de mescla entre duas frentes culturais. Padre Amadi propõe uma religiosidade mais próxima da África, de respeito a elementos culturais do continente, talvez por isso conseguindo uma melhor receptividade entre os jovens, ainda assim sendo coerente com os dogmas católicos. Por fim, podemos citar a figura da mulher neste contexto, na personagem Beatrice que é cerceada em sua vontade, vítima de violência doméstica, tem sobre si o estigma da mulher submissa, mas que tem no desfecho de “Hibisco Roxo” sua ação de resistência evidenciada.
Júnio Viana Gomes – Bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID/CAPES Graduando do 9º período História UNEB – CAMPUS X – Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8465682493240386
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: GOMES, Júnio Viana. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.3, n.5, p. 157-161, jul./dez. 2013. Acessar publicação original [DR]