Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 19311938) – HEIDEGGER (C-FA)

HEIDEGGER, Martin. Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 19311938) Vol. 94. Ed. Peter Trawny. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2014. Resenha de: HOEPFNER, Soraya Guimarães. Começo e fim da filosofia. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 19 n.2 Jul-Dez, 2014.

O primeiro volume dos Cadernos Pretos de Martin Heidegger, Überlegungen II-IV (Schwarze Hefte 1931-38), inaugura um último capítulo no processo de publicação das obras completas do filósofo, conforme cuidadosamente planejado por ele. Com o lançamento do presente livro, tornaram-se públicos os primeiros cinco cadernos da série, muito provavelmente organizados por Heidegger de modo a alinhá-los a uma determinada cronologia de eventos mundiais. Os anos cobertos pelo volume 94, do qual trata a presente resenha, coincidem justamente com aqueles decisivos, que antecedem a 2ª Guerra Mundial.

Por diferentes razões, a seguir explicitadas, a publicação dos Cadernos poderia ser vista como uma espécie de “o começo do fim”. Primeiramente, ela abre a possibilidade de pôr fim à pergunta fechada, não-filosófica, que há décadas se ocupa de buscar indícios concretos de uma postura comprovadamente antissemita de Heidegger. Visto que o presente volume e os subsequentes respondem categoricamente a essa questão com um sim, abre-se, por sua vez, a possibilidade de colocarmos um ponto final nessa pergunta, ou seja, a possibilidade de libertação para que nos voltemos a uma discussão eminentemente filosófica. Este “sim” como resposta à primeira pergunta, no entanto, não é fácil de ser assimilado, aceito, de modo que a publicação dos Cadernos também pode representar para os estudos heideggerianos um fim, duradouro, ocasionado pelo ofuscamento completo da discussão filosófica. Essa espécie de desvirtuamento é em parte alimentada pela hipótese de “contaminação” 1 do projeto filosófico de Heidegger por ideias fascistas e racistas, as quais, por razões óbvias, não queremos e não devemos nós mesmos jamais nos associar.

Para aqueles que se decidirem pela questão filosófica, considerando que seja possível para nós encontrarmos uma postura adequada diante do conteúdo polêmico das declarações, defendemos uma leitura dos Cadernos centrada na discussão de um outro tipo de começo e fim. Para quem tem familiaridade com a obra heideggeriana, esse tópico não é necessariamente novidade, trata-se mais precisamente do pensamento sobre o começo da filosofia – com os gregos – e sobre o fim da filosofia no Ocidente, no berço do nascimento da ciência e da técnica moderna. Desse modo, como pretendemos demonstrar, o primeiro volume dos Cadernos Pretos se apresenta como uma dramática narrativa filosófica sobre o começo e o fim da filosofia, enquanto também um começo e fim de mundo em tempos de guerra; uma discussão diante da qual, se compararmos o atual jogo de forças e atores nos bastidores da academia para salvar ou sepultar a filosofia de Heidegger, não passaria de mero prosaísmo.

Assim, os Cadernos Pretos, com seu “estilo único” 2, conforme observado pelo editor Peter Trawny em seu epílogo, colocam o leitor em contato com uma espécie de genealogia do pensamento heideggeriano; uma cuidadosa cartografia de suas inspirações, palavras-guia, intuições filosóficas de mundo, que parecem pontuar meticulosamente seus insights filosóficos ao longo dos anos de vida, ensino, filosofia. Em seu conjunto, as notas, que têm um tom extremamente pessoal, carregado de agressividade e inquietação com seu tempo, ilustram uma espécie de bastidores inéditos de uma filosofia que já tão bem conhecemos. No entanto, é importante observar que, nesses bastidores, o filósofo também está em atuação: as notas não foram escritas “no calor do momento”, mas, sim, devidamente revisadas, trabalhadas, meticulosamente organizadas pelo próprio filósofo. Nessa perspectiva, as Considerações se mostram como elucubrações, bem ao sentido da palavra latina lucubratione, “estudos noturnos, à luz da lamparina” 3, que mais tarde ganhou o sentido de referir-se a algo “penosamente trabalhado” (com grande esforço mental). Assim, enquanto elucubrações, as considerações do primeiro volume mostram se como notas escritas à sombra da razão que encobriu o mundo naqueles anos 30. Teriam esses tempos sombrios, de pouca claridade, também embaçado a visão do pensador de Ser e Tempo ? Para além de defesa ou acusação, podemos dizer, contudo, que foram tempos difíceis, que exigiram do filósofo uma resposta à qual ele não se furtou à tentativa de elaborar (isso basta?). Desse modo, quer sejam as notas delírios, estreitamento de visão, megalomania ou desespero, ou todos estes atributos juntos, elas são ainda assim um testemunho de uma filosofia lidando com o seu tempo – e que por isso de seu tempo, daquele hoje, não podem ser isolados, nem mais exatamente alcança dos. Todo olhar hoje resta uma aproximação

Nossa leitura dos Cadernos parte então da necessidade de se levar em conta o seu caráter de ser uma obra que dá conta de uma obra; um estilo que, embora ainda precise ser melhor compreendido, não deixa dúvidas de que não se trata de anotações de diários secretos que por alguma razão vieram à tona à revelia do seu autor. Além disso, não obstante o esoterismo, misticismo, devemos igualmente levar em conta que somos nós os principais destinatários dessa filosofia; justa mente nós (sociedade, acadêmicos, povo, senso comum), a quem o pensador impiedosamente se dirige com desprezo, ira, consternação. É nessa perspectiva filosófica, que todavia não pretende minimizar a delicada questão histórico-pessoal, que fazemos e propomos uma leitura dos Cadernos II-IV : como o registro do pensamento da filosofia sobre seu tempo, que nos atinge e nos diz respeito no hoje

Com relação a uma metodologia de leitura do primeiro volume, observamos a necessidade de ter em mente diferentes planos de relações lógico-filosóficas, necessárias para uma tentativa de compreensão do lugar dos Cadernos na obra de Heidegger. O primeiro plano é interno: diz respeito à interrelação dos cadernos, no contexto particular de seu estilo inédito de filosofar. O volume 94 foi imediatamente seguido pela publicação de outros nove cadernos, respectivamente organizados nos volumes 95 4 e 96 5. Juntos, os primeiros três livros reúnem dez anos de considerações filosóficas que, se não totalmente escritas naquele momento, foram definitivamente organizadas pelo próprio Heidegger para constarem entre os anos de 1931 a 1941. Mas isso não é tudo: esse conjunto inicial de 14 cadernos ainda será segui do por 20 outros, agrupados em diferentes volumes, intitulados respectivamente “Notas”, “Quatro Cadernos”, “Vigilliae”, “Notturno”, “Indícios” e “Considerações Preliminares”, a serem publicados nos próximos anos. Em suma, aquilo que chamamos de Cadernos Pretos é o registro de 40 anos de considerações filosóficas. Sugere-se, portanto, prudência, de modo que ao nos ocuparmos da leitura do primeiro volume, é preciso que mantenhamos essa visão do todo, para podermos assim dar a devida medida e proporção de representatividade esse volume, que é apenas o primeiro contato com uma obra dentro da obra de Heidegger.

Também é precisamente por esse caráter parentético dos Cadernos que sua leitura requer que estabeleçamos ainda um segundo plano de relação: o alinhamento externo entre o conteúdo dos Cadernos e os volumes publicados das Obras Completas que lhe são contemporâneos. Em nosso caso particular de leitura do Vol. 94, isso quer dizer deixar ecoar diversos outros escritos, a saber: os cursos ministrados naquele período, como o primeiro volume do curso sobre Nietzsche 6 e outros estudos nietzschianos dos quais Heidegger se ocupava na época; os cursos dedicados aos antigos e pré-socráticos no início dos anos 30 7 ; e os diversos cursos em torno da questão de Ser e verdade 8, linguagem e lógica 9 ; metafísica 10 ; além dos seminários sobre Hegel, Kant, Schelling 11 e, não menos importante para o contexto dos Cadernos II-IV, o curso sobre os poemas “Germânia” e “O Reno”, de Hölderlin 12. Vale ainda salientar que os cadernos desse período, 1931-38, além de con temporâneos dos diversos cursos resumidamente citados acima, estão diretamente ligados a duas importantes obras desse mesmo período: as Contribuições à Filosofia 13 e Meditação 14, ambas escritas entre os anos de 1936 e 38. Somam-se aos seminários, ainda, inúmeras conferências proferidas em diferentes ocasiões ao longo desses nove anos retratados no primeiro volume, todos extremamente conectados entre si – ainda que não possamos precisar exatamente de que forma, que não a óbvia relação cronológica

Os Cadernos têm ainda outra particularidade. Neles, como talvez em nenhuma outra obra publicada na filosofia, se encontram, de maneira exemplar, ainda mais fortemente borrados os limites entre a ideia que fazemos da figura do filósofo e do homem por trás da filosofia. Essa linha divisória imaginária, que estabelecemos ao entrar em contato com o pensamento filosófico (de um filósofo), aparece ainda mais tênue, por conta do estilo. Em proporção inversa, se torna ainda mais vivo o grifo de um conflito entre a ideia que fazemos de uma obra filosófica como “produto de seu autor” (no limite, produto editorial) e a ideia da filosofia como algo que reclama para si o pensamento do pensador. Esta última é a que mais se aproximaria do pensamento heideggeriano, se considerarmos o que significa para Heidegger o evento do que é, o misterioso jogo para além da causalidade na qual algo existe (como produzido). É precisamente a nossa dificuldade em lidar com as coisas fora do âmbito da produtividade, exequibilidade, que nos desafia na leitura dos Cadernos

Assim, eles são uma condensação icônica de vida e obra – homem e filósofo, de modo que, ou bem partimos de uma intepretação que toma ao pé da letra, e letra por letra, o dito de um pensador-autor e lemos essas notas em primeira pessoa como sendo a opinião de Heidegger. Ou bem procuramos entender como realmente possível que a linguagem da filosofia venha à sua fala, que deixe-ver por entre o que está escrito, o ato próprio do pensamento filosófico enquanto correspondência. Apesar da forte impressão causada pelo personalismo das notas, devemos nos esforçar para não perder de vista o seu caráter filosófico, qual seja, o de ser uma resposta do filósofo ao seu tempo, e isto somente na medida em que, sobretudo e primeiramente, este é um corresponder a um tempo de mundo. Nunca é demais frisar que, naquele momento, o tempo de mundo se anunciava em um contexto de revolução, dominação, guerra

Nessa perspectiva, abre-se então um terceiro plano de relação, igualmente crítico para uma metodologia adequada de leitura dos Cadernos. Trata-se de alinhar as notas à sua pertença de mundo. Esse terceiro plano não quer dizer somente estabelecer uma relação histórica com os eventos aos quais as notas, implícita ou explicitamente, se referem. Trata-se de observar um co-pertencimento que é característico do instante filosófico em seu espelhamento do presente, ou seja, de um momento de mundo. Devemos, portanto, para além da factualidade, perceber o caráter fatídico, destinal dos eventos que, no caso deste primeiro volume, representam os anos de triunfo do que começou como o Programa Nacional-Socialista, sua bandeira patriótica de unificação e expansão da Grande Alemanha, e que culminou com a chegada de Adolf Hitler ao poder em 1933. Os anos que se seguem dispensam apresentação, são cinco anos de tensão entre forças mundiais que têm como desfecho o início da 2ª Guerra Mundial. É nesse contexto, no olho do furacão, que se encontrava Heidegger: e também que se encontrava a tarefa da filosofia, enquanto correspondência direta ao apelo do que é – mundo. Desse modo, sugerimos uma leitura do Vol. 94 que, antes de tudo, tenha em perspectiva esses três planos, quais sejam, a sua interrelação com os outros 29 cadernos, observando-se que a grande maioria permanece inédita; sua relação com todo o conjunto de obras escritas em paralelo; sua relação lógica (histórica) e filosófica (historial) com o tempo de mundo no qual eles aparecem. Nessa perspectiva, os Cadernos ganham um outro contorno, mais distante da ideia de notas pessoais, e igualmente mais distante da ideia de um tratado filosófico convencional. Ambas as visões, nas quais somos inclinados a tentar apressadamente encaixar os Cadernos, não são fortuitas. Reconhecemos que este é o resultado da forte impressão deixada, por um lado, pelo tom íntimo, agressivo e direto das notas e, por outro, o tom aforístico e fragmentário das considerações filosóficas nelas contidas.

No tocante aos Cadernos II – IV 15 presentes neste volume, obser vamos inicialmente a peculiaridade do estilo, conforme já menciona do, sobretudo porque ele nos dá uma primeira – e provavelmente falsa – impressão de intimidade com o pensador; de estarmos, durante a experiência da leitura, mais diante do homem que diretamente nos fala do que da (sua) filosofia. Assim, ao lermos as Considerações, temos a impressão de estarmos finalmente diante do “verdadeiro” Heidegger, o homem desnudado do personagem. Nesse caso, entramos em contato com um homem visivelmente desiludido, perturbado, cheio de ira e de desprezo por uma determinada conjuntura de mundo representada pela “crítica cultural”, “visão de mundo”, “nova ciência”, “filosofia da cultura” 16, etc. É essa conjuntura que Heidegger representa categoricamente como começo de um longo fim da filosofia. Esse fim, no entanto, não é encarado de maneira derrotista, embora definitivamente de maneira apocalíptica. Trata-se de um fim conquistado. Com ele, se abre, paradoxalmente, um momento único de tudo ou nada, de possibilidade de um novo começo. Diante desse fim, o filósofo é “o filósofo como criatura solitária; porém, não sozinho com o seu pequeno ‘si mesmo’ – mas, sim com o mundo, e esse acima de tudo ‘um com o outro’” 17. O filósofo, portanto, atende a uma convocação destinal, repetidamente referida como um momento de “empodera mento de Ser” 18, de modo que vemos que não se trata, para Heidegger, de uma cruzada pessoal, mas de uma decisão historial

Assim, o destino da filosofia alinha-se, confunde-se com o destino do mundo. Trata-se de fins e começos que Heidegger parece jamais ver dissociados. Esse momento decisivo no contexto histórico-político, aparece nos Cadernos como um momento de decisão historial do Dasein. Aquilo que está em xeque, portanto, no seu ver, é muito maior que o jogo de forças de poder territorial e racial, de um povo (alemão) sobre outros povos. Trata-se da possibilidade de consagração de um modo de ser. Somente nesse modo de ser “ideal”, que curiosamente deveria ser almejado e desejado pelo povo alemão, a filosofia heideggeriana – obviamente, para Heidegger, a filosofia per si – é possível. Se abrirmos espaço para conjugar esse jogo de espelhos entre os planos ôntico e ontológico, sem contudo ignorar sua natureza problemática, podemos de certo modo compreender de antemão, guardadas todas as reservas, aquilo que explicitamente transparece, em especial no Caderno III : a esperança de Heidegger na promessa da Revolução Nacional-Socialista, sua crença no privilégio do povo alemão, sua quase fobia pela cientificização e tecnificação do mundo. Heidegger parece mergulhar em uma situação de extremos para tentar salvar a filosofia da nova forma dominante da ciência e institucionalização da vida que, na sua visão, promoviam a “escolarização” da universidade e, com isso “a perturbação de todo saber verdadeiro, o sufocamento de todo originário e contínuo desejo de saber, o impedimento de qualquer tentativa de abertura de Ser espiritual.” 19. O contra-ataque é então pensado como uma esperança na Revolução Nacional-Socialista, na forma de uma “metapolítica” 20 que, na prática, trata-se também de uma reforma universitária, que depende sobretudo de um pensamento profundo de transformação no seio do povo alemão. “O fim da ‘filosofia’. – Devemos por um fim nela e com isso preparar uma – Metapolítica – completamente diferente. E, de acordo com ela, igualmente a transformação da ciência.” 21.Esse crescendo dramático ilustra a vinculação clara do projeto filosófico de Heidegger aos acontecimentos de mundo naquele momento. Obviamente, a esperança é passageira, o Nacional-Socialismo não consegue manter a expectativa de Heidegger de ter outro objetivo maior por trás do seu “fazer e dizer” 22. Mais tarde, por ocasião da entrega de seu cargo de reitor da Universidade de Freiburg, o filósofo expressa: “Viva à mediocridade e à zoadaria!” 23, um dos muitos exemplos do tom particularmente ácido das notas dessa época.

A questão do triunfo dessa mediocridade, da “mera teoria”, da “ciência politizada” sobre a filosofia não surge, porém, do nada, no contexto iminente da revolução. Este é um inimigo anunciado, presente desde as primeiras notas e também em escritos mais antigos.

Ainda no Caderno II nos deparamos com esse cenário polarizado (típico de uma situação de guerra), no qual Heidegger articula um pensa mento de ataque à técnica e à ciência moderna, ao jornalismo, ao biologismo, aos colegas, ao senso comum. Por diversas vezes, ele se refere a “um mundo em reformas” 24 e descreve o homem em sua “estranheza e estranhamento da essência de Ser” (p. 43)” 25, entregue à “escrevinhação” 26, à falsa pergunta, que somente pode ser combatida por uma obstinada retomada da pergunta original, aquela do “grande começo”, interposta pelos gregos – antes da ciência moderna.

Especialmente com relação aos gregos, é necessário que façamos um parêntese: não obstante reconheçamos a força e autoridade do argumento defendido com propriedade pelo editor dos Cadernos, optamos por enfatizar um outro aspecto na questão chave da conexão entre alemães e gregos, que se apresenta insistentemente em todos os cinco cadernos deste primeiro volume, e também nos volumes posteriores. Para resumir brevemente o argumento de Trawny apresentado em seu livro 27, o autor elabora a forte hipótese de existência de um único projeto filosófico heideggeriano pós Ser e Tempo, esse aquele que consiste na tarefa de demonstrar o vínculo historial entre o pensamento principial dos gregos e aquele que, na visão de Heidegger, seria a sua continuação imediata: o pensamento alemão, mais precisamente o pensamento de Hölderlin e Nietzsche, culminando com o seu próprio pensamento heideggeriano, este conclamado a ser decisivo naquele momento histórico de revolução. Reconhecidamente, são muitas as passagens que descrevem os gregos como o “grande começo”, e que igualmente se referem à proposta heideggeriana como o “outro começo” ou “segundo começo”, como a que se segue: “A filosofia se tornou difícil, mais difícil talvez que seu grande primeiro começo – porque trata-se do segundo.” 28. Nesse contexto decisivo, está evidente como Heidegger atribui à filosofia – e ao povo alemão – a tarefa de conduzir o projeto de reinstauração da pergunta por Ser.

Não obstante a propriedade dessa interpretação, defendemos que também é possível dar uma outra ênfase à motivação para essa conexão greco-teutônica que seja diferente da questão racial (de povos) e sobretudo da questão racista. Assim, preferimos seguir a linha de raciocínio análogo àquela em que se investiga e até mesmo se legitima a autoria de um crime: é necessário um motivo. Desse modo, observamos como outro possível motivo nessa relação não necessariamente a questão dos gregos x alemães per si, mas a configuração de um fenômeno em particular, qual seja: o pensar, antes da ciência moderna, e o fim do pensar (na visão de Heidegger), advindo a consagração da ciência moderna. Tratar-se-ia, portanto, de uma vinculação desses dois momentos, uma tentativa de reencenar um modo de ser particularmente contra-científico, o qual a historicidade do Ser [Seinsgechichtlichkeit] demonstra ter sido certa vez possível – justamente com os gregos.Nesse sentido, defendemos que uma via de compreensão da vinculação desses dois momentos historiais pode também se dar através do foco na importância que tem a questão da nova ciência (técnica moderna) naquele momento de mundo e na filosofia de Heidegger. Assim, a ciência moderna, “o novo slogan” 29 ou a ciência política, a qual ele compara com um “botar o carro diante dos bois” 30, surge assim como o seu grande inimigo (da filosofia) de modo constante e insistente em todos os cinco cadernos. De modo geral, a ciência é descrita com desprezo, como transformada em algo ao qual seu nome não mais corresponde, como aquela que aniquila o pensamento, que impede toda e qualquer possibilidade de acesso ao pensamento do sentido de Ser, às coisas em si; um tempo onde “conhecemos tanto e sabemos tão pouco” 31. A pergunta “Por que agora nenhuma coisa pode mais descansar em si mesma e em sua essência?” 32 iconiza essa inquietação diante do aviltamento da possibilidades do pensar filosófico, assolado pelo avanço da nova configuração da ciência.

Tendo a conjuntura na qual se dá o fenômeno da ciência moderna um papel tão importante, parece então plausível pensar que Heidegger tenha buscado observar e compreender nos gregos como se dava o mundo pré-ciência e, a partir daí, pensar como seria possível um mundo pós-ciência – o fim da filosofia para o começo de um “novo saber” 33, e esse saber, engendrado como em oposição ao mero conhecer. O tempo dos gregos é, portanto, citado com admiração como um tempo de um mundo “inteiramente sem ‘ciência’” 34 e que fez nascer a filosofia. Como narrado nos Cadernos, os gregos ainda não haviam caído no “criticismo da ‘mera especulação’” da ciência, esse no qual a filosofia é “desencorajada e se torna constantemente suspeita” 35. Assim, torna-se clara uma motivação por ensejar e conduzir um novo momento pós-ciência, de “fim da universidade e começo do novo saber” 36, que anseia se espelhar em um momento parecido com aquele ocorrido no berço da filosofia. A questão, portanto, se dá circunstancialmente pelo povo (grego, alemão), tratando-se mais de uma questão de afirmação da filosofia diante de seu fim iminente; não de mera nostalgia ou mero racismo.

Essa linha de pensamento, no entanto, não diminui a gravidade ética de um pensamento que se articula com base nos privilégios entre determinados povos, tampouco torna menos espantosa a constatação de seu caráter problemático do ponto de vista filosófico. Aquele presente vivido por Heidegger não poderia jamais representar um marco divisório a partir do qual se consolidaria um hiato – com vistas a colocar entre parênteses quase dois mil anos de história. O instante filosófico que Heidegger ensejou inaugurar jamais poderia ser bem -sucedido em seu objetivo de demarcar, naquele presente, a instauração de um momento pós-ciência. Como bem sabemos, e isso de acordo com a própria filosofia heideggeriana, aquele tempo presente dos anos 30 é também um presente que herdamos dos gregos, talvez mais um “presente de grego”, mas de todo modo algo que o próprio Heidegger claramente aborda em pelo menos uma de suas obras contemporâneas a estes cadernos, aqui nos referimos ao curso sobre Aristóteles 37, de 1931.

Nele também está clara a constatação de uma condição especial de aproximação dos gregos com o que é, com as coisas, que também já se mostra como um lançar-se do Dasein, como o início de um estranhamento. A saber, essa condição, enquanto historial, desde sempre existiu, e Heidegger está todo o tempo, embora contraditoriamente, ciente dela, como nessa passagem onde expressa sua consternação: “Como, nos Antigos, o desdobramento de Ser morreu e paralisou tão rápida e completamente.” 38. Assim, de acordo com o próprio filósofo, também os gregos foram um povo ao modo de uma “queda”; aliás, com o próprio filósofo aprendemos que só é possível ser povo (em primeira instância, Dasein ) ao modo dessa queda, desse lançar-se. Portanto, é no mínimo curioso pensar como Heidegger poderia defender veementemente a possibilidade de uma outra – e nova – condição de aproximação com as coisas que comece onde deva acabar a ciência moderna. É possível e plausível um projeto como tal? Quereria Heidegger, sobretudo, negar o inevitável, qual seja, a transformação gradativa e a consumação da filosofia em um outro tipo de saber, esse que vivemos hoje? Aparentemente indiferente a essa impossibilidade existencial, ele insiste: “Nós devemos nos reposicionar no grande começo”39 Sobretudo, é ainda mais desconcertante pensar que esse projeto de recondução tenha sido gestado, naquele momento, em termos de uma relação de mútua dependência com a Revolução Nacional-Socialista.

Igualmente problemático é pensar o que de fato significa a sua ira contra o “homem que vai toda semana ao cinema” 40, o que significa propriamente, fora da perspectiva comportamental/cultural que, aliás, ele veementemente refuta, o seu advogar por um modo de ser no qual haja espaço – e que esse seja o único espaço – para as grandes questões da filosofia, sobretudo para a pergunta pelo sentido de Ser.

A depreciação da filosofia contra a qual Heidegger luta furiosamente é encarada como “uma guerra contra a desenssencialização da essência” 41, da qual o filósofo parece querer salvar o homem comum, que contraditoriamente parece ser ao mesmo tempo o principal agente desta desgraça.

Por essa e muitas outras razões, a questão do povo não se deixa elucidar facilmente. É preciso uma análise cuidadosa dos Cadernos III e IV, na qual, para entendermos como os alemães podem ser “os protetores e executores do empoderamento de Ser” 42, precisamos levar em conta as diferentes gradações entre as ideias de povo, do alemão, das diferentes instâncias de raça que o filósofo articula. Essa é, aliás, uma discussão que também não é inédita, mas extensivamente abordada de maneira mais didática em uma outra obra contemporânea a esses Cadernos, o curso sobre Lógica 43. Nele, há uma detalhada tentativa de responder à pergunta sobre quem somos “nós” conduzida a partir de uma reflexão sobre conceitos caros à antropologia, como “ser humano”, “si mesmo”, “comunidade” e, consequentemente, “raça” e “povo”. De modo geral, o que fica claro nos Cadernos é que a questão do povo para Heidegger não se dá primeiramente em um viés cultural, biológico, tão pouco meramente historiográfico – o que em princípio também pode ser usado como um argumento de refutação para o seu alegado racismo. A questão está atrelada, primeiramente, ao reconhecimento do caráter múltiplo da essência do povo, da qual se sobressai a ideia de povo como “incorporado no Ser” 44.

A essa altura, denotamos que, passada a euforia com o regime Nacional-Socialista, Heidegger intensifica e concentra suas observações sobre o caráter maquínico da técnica, em sua extrema relação inclusive com a própria concepção de povo, sendo por fim o Caderno VI uma busca pela compreensão desta destinação historial, que culmina na ainda mais extrema tecnificação, a “queda” (p. 485) do povo, da academia, na compreensão calculadora de mundo. Esse “acabamento” dos tempos modernos tem apenas como saída a possibilidade da filosofia de reencontrar sua essência, manifesta na retomada e sustentação do exercício da pergunta por Ser: “Começar o outro começo… Se voltar para o âmbito do que é digno de ser questionado.” (p. 514).Entra em cena um jogo de proporções: o “imenso”, “grande”, “pequeno”, de medidas contra a cultura, tida como “uma forma de barbarismo” (p.515), em favor do pensar o sentido [Besinnung], contra a “maquinação” e o pensamento “calculador”. Esse jogo de medidas e desmesuras encerra-se, curiosamente de maneira megalômana, em uma comparação de momentos chave na história do Pensamento Ocidental, marcados pelo aparecimento e desaparecimento de Hölderlin, Wagner, Nietzsche, e culminando com a chegada ao mundo do próprio Heidegger !).

A desmesura das Considerações é desconcertante, mas como tentamos denotar anteriormente, proporcional em intensidade àquele momento. A correspondência com aquele momento, como também tentamos evidenciar, se dá não apenas circunstancialmente, mas no âmbito de uma temporalidade especial que é a do instante filosófico.

Compreender ou julgar o teor dos Cadernos, nesse caso, é uma tarefa que precisa partir do conjugar diversas esferas superpostas, do político e do filosófico, do público e do privado. Sobretudo para um filósofo que naquele momento atribui especial importância ao “silenciar”.

A eloquência vociferante de Heidegger nos atinge em nosso hoje como algo fora de proporção, e é quase impossível equalizar seu tom.

Assim, na leitura dos Cadernos II-VI e provavelmente na leitura de todos os outros que se seguem, nos damos conta que nos cabe lidar ainda com uma última e quarta relação, essa que é extemporânea, e que trata de dar conta da significação daqueles escritos – se o considerarmos filosóficos – com o nosso presente. Como o próprio Heidegger parece ter antecipado: “Porque uma filosofia não se deixa jamais refutar ! Porque ela não contém nada de refutável, pois o que há nela é filosofia, ou seja, abertura de Ser…” 45. Se somos nós, do futuro e de hoje, os destinatários dessas Considerações, o desafio de encontrar uma perspectiva que não seja nem apologética nem persecutória talvez comece, justamente, pela compreensão temporal dos limites, de fim e de começo, do dizer da filosofia.

Agradecimentos

A autora torna público seu agradecimento à Prof. Dra. Marcia Cavalcante Sá Schuback, cujos diálogos contribuíram em muito para as impressões ensaiadas nesta resenha.

Notas

1 TRAWNY, P. Heidegger e o mito da conjuração judaica mundial. Rio de Janeiro: Mauad X (No Prelo).

2 TRAWNY, P. Nachwort des Herausgebers. In: HEIDEGGER, M. Überlegungen II-IV, p. 530. (Tradução nossa e em todas as passagens a seguir).

3 VARRO. On the Latin Language. Vol. I. Translated by Roland G. Kent. London: William Heinemann, 1938. p. 269.

4 HEIDEGGER, M. Überlegungen VII-XI (Schwarze Hefte 1938/39). Ed. Peter Trawny. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2014

5HEIDEGGER, M. Überlegungen XII-XV (Schwarze Hefte 1933/41). Ed. Peter Trawny. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2014

6 HEIDEGGER, M. Nietzsche. Vol. I. Tradução de Marco A. Casanova. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2007. Também os inéditos Vol. 43 (vontade de poder como arte); o vol. 44 (eterno retorno do mesmo);

7 São, respectivamente, vol. 33 (Aristóteles); vol. 34 (Platão); Vol 35 (Anaximandro e Parmênides)

8 HEIDEGGER, M. Ser e Verdade. Tradução de Emmanuel C. Leão. Petrópolis: Vozes, 2007.

9 HEIDEGGER, M. Über Logik als Frage nach dem Wesen der Sprache. Ed. Günther Seubold. Frankfurt: V. Klostermann, 1998; IDEM. Grundfragen der Philosophie. Ausgewählte „Probleme“ der „Logik“ Ed. Friedrich-Wilhelm v. Herrmann. Frankfurt, 1992.

10 HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. Tradução de Emmanuel C. Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999

11 Respectivamente, vol. 32 (Hegel); vol. 41 (Kant); vol. 42 (Schelling)

12 HEIDEGGER, M. Hölderlins Hymnen „Germanien“ und „Der Rhein“. Ed. Susanne Ziegler. Franfkurt: V. Klostermann, 1999

13 HEIDEGGER, M. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis) Ed. Friedrich-Wilhelm v. Herrmann. Franfkurt: V. Klostermann, 2003

14 HEIDEGGER, M. Meditação. Tradução de Marco A. Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010.

15 Como esclarece o editor do volume em seu epílogo, cogita-se que um Caderno I jamais tenha existido (a série inicia-se com o número II) ou, se existiu, teria sido destruído por Heidegger. De acordo com Trawny, não há registros ou menção a um primeiro volume. Também não há uma explicação plausível para a sua inexistência. Especulativamente, cogito que tenha sido intenção de Heidegger iniciar com o número dois, fazendo assim uma alusão implícita ao ‘segundo começo’ em relação ao ‘primeiro começo’ com os gregos, questão tratada mais adiante nesta resenha. Ao final de janeiro deste ano, o professor emérito Silvio Vietta anunciou ter em sua posse um outro volume ausente da série, aquele que justamente registra os anos 1945/46 (ver. CAMMAN, A., SOBOCZYNSKI, A.; Eine grundlegende Entwurzelung. Gespräch mit Silvio Vietta. Die Zeit. 30 Jan. 2014).

16 HEIDEGGER, M Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 1931-1938), p. 346.

17 Idem, p. 56 (grifo do autor)

18 Idem, p. 40-41

19 Idem, p. 183

20 Idem, p. 115

21.Idem, ibidem (grifo do autor).

22.Idem, p. 114.

23 Idem, p. 162.

24.Idem, p. 31.

25.Idem, p. 43.

26 Idem, p. 19.

27.TRAWNY, P.Heidegger e o mito da conjuração mundial.

  1. HEIDEGGER, M. Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 1931-1938), p. 244.

29.Idem, p. 175

30.Idem, p. 191.

31.Idem, p. 232.

32.Idem, p. 340.

33.Idem, p. 128.

34.Idem, p. 41.

35.Idem, ibidem.

36.Idem, p.128.

37.HEIDEGGER, M.Metafísica de Aristóteles 1-3. S obre a essência e a realidade da força. Tradução de Enio P Giachini. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.

38.HEIDEGGER, M. Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 1931-1938), p. 29

39.Idem, p. 53.

40.Idem, p. 302.

41.Idem, p. 85.

42.Idem, p. 98.

43.HEIDEGGER, M.Logik als die Frage nach dem Wesen der Sprache. Ed. G. Seubold.

Franfkurt: V. Klostermann, 1998.

44.HEIDEGGER, M. Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 1931-1938), p. 521

45.Idem, p. 239 (grifo do autor).

Referências

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HEIDEGGER, M.Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Vol. 65. Ed. Friedrich-Wilhelm v. Herrmann. Franfkurt: V. Klostermann, 2003.

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__ ____ Überlegungen XII-XV (Schwarze Hefte 1933/41). Vol. 96. Ed. Peter Trawny. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2014.

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TRAWNY, P.Heidegger e o mito da conjuração judaica mundial. Trad. Soraya Guimarães Hoepfner. Rio de Janeiro: Mauad X, (No Prelo).

VARRO. On the Latin Language. Vol. I. Translated by Roland G. Kent.

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Soraya Guimarães Hoepfner – Doutora em Filosofia pela Universidade federal do Rio Grande do Norte. E-mail: sorayahoepfner@gmail.com

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