GADAMER, H-G. Hegel-Husserl-Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2012. Resenha de: KAHLMEYER-MERTENS, Roberto S. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.15, n.1, p.84-87, Jan./abr., 2014.
O nome de Hans-Georg Gadamer (1900-2002) se confunde com a ideia de hermenêutica. Esta afirmativa se legitima ao conhecermos as contribuições que o filósofo trouxe a esse campo de saber. Retirar a hermenêutica do registro metódico, que fazia com que esta ainda permanecesse distanciada de seus objetos, trazendo-a para o domínio filosófico (nas esferas estética, histórica e da linguagem) talvez tenha sido o mais significativo acréscimo do pensamento gadameriano (Rohden, 2002). Não se pode, contudo, em detrimento de suas ideias próprias, desconsiderar as apropriações que o autor faz das figuras filosóficas que, de alguma maneira, se encontram atreladas à hermenêutica e fenomenologia contemporâneas. Com vivo interesse hermenêutico, Gadamer comenta pensadores que influíram decisivamente em sua formação acadêmica, em sua síntese filosófica original e, de modo mais amplo, na cena intelectual do século XX. Valendo-se de ensaios, conferências e falas de circunstância, o autor nos oferece, com a clareza que lhe é habitual, interpretações que – além de sempre contar com a atitude hermenêutica fundamental – se beneficiam da experiência deste que não apenas viveu as ideias do século passado quanto conviveu com alguns de seus propositores.
Algumas dessas interpretações estão já disponíveis em português na série Hermenêutica em retrospectiva, editada entre os anos 2007-2008 pela Editora Vozes (Gadamer, 2007a, 2007b, 2007c, 2007d, 2008). Recentemente, sob o mesmo selo editorial, o leitor brasileiro passou também a contar com mais dessas leituras de Gadamer enfeixadas sob o título de Hegel-Husserl-Heidegger. Com esta entrada, chegamos a nutrir expectativas (em parte induzidos pelo distinto e quase homônimo capítulo que Sartre [1997] consagra aos três filósofos no interior de O ser e o nada) quanto ao livro tratar-se de um único e coeso ensaio que tentaria mesclar as ideias dos três filósofos. Entretanto, mesmo vendo nossas expectativas neste sentido dissipadas, a obra, coletânea de textos de diversas épocas, não deixa de gratificar os interessados em questões hermenêuticas e fenomenológicas, bem como, pontualmente, os pesquisadores dos referidos filósofos germânicos.
Equivalendo ao terceiro volume das Obras Reunidas (Gesammelte Werke), Hegel-Husserl-Heidegger traz 28 escritos distribuídos em três partes referentes aos filósofos nomeados no título. Desiguais em número de textos, as partes são também diferentes em extensão e gênero; alguns são longos ensaios e, outros, recensões e alocuções menores.
É isso que se vê na primeira seção, composta por cinco escritos sobre Hegel: “Hegel e a dialética antiga” (p. 13-46), “O mundo às avessas” (p. 47-69), “A dialética da autoconsciência” (p. 70-92), “A ideia da lógica hegeliana” (p. 93-121) e “Hegel e Heidegger” (p. 122-140). No primeiro tópico, temos a tentativa de Gadamer (que também era filólogo clássico) de pensar a dialética antiga em sintonia com a moderna; nos demais, é possível entrever o procedimento hermenêutico do autor ao caracterizar a filosofia da subjetividade hegeliana a partir da noção de “entendimento” na Fenomenologia do espírito e nas doutrinas da Lógica maior. Embora Gadamer seja bem pouco pretensioso frente a estes trabalhos que, para ele, apenas contribuiriam para “se aprender a soletrar Hegel” (p. 8), nosso autor se mostra um distinto leitor de Hegel, mostrando-se familiarizado com a literatura que – de Rosenkranz a Kojève – compõe o repertório crítico junto ao qual os problemas hegelianos se adensam e se esclarecem.
Proporcionalmente reduzida é a seção reservada a Husserl. Isto, no entanto, não significa que Gadamer atribuía importância menor ao fundador da Fenomenologia. Reconhecendo a extensão e magnitude do pensamento de Husserl, Gadamer nos oferece um conjunto de recensões outrora publicadas no periódico Philosophische Rundschau; com essas, pretende escutar, uma vez mais, o que foi dito por Husserl e estabelecer os acentos cabidos aos pontos de convergência e ressonância da fenomenologia. Isso pode ser conferido em textos como: “O movimento fenomenológico” (p. 143-199), “A ciência e o ‘mundo da vida’” (p. 200-216) e “Sobre a atualidade da fenomenologia husserliana” (p. 217-232). Entre os três títulos, voltemos nossas atenções ao primeiro. Neste longo escrito, encontramos uma apresentação muito didática dos termos da fenomenologia husserliana em seus objetivos, aspectos metódicos e, principalmente, seus objetos de crítica (a teoria do conhecimento, a ideia de sujeito e outras hipostasias). Um pouco do nível dos textos que Gadamer consagra a Husserl, e uma ideia do que o leitor interessado nessa fenomenologia encontrará nessa segunda parte do livro, pode ser apreciado nas seguintes linhas:
A fenomenologia não era menos crítica em relação aos hábitos do pensamento da filosofia contemporânea. Ela queria dar voz ao fenômeno, ou seja, ela buscou evitar toda e qualquer construção indemonstrável e colocar à prova criticamente o domínio autoevidente de teorias fi losóficas. Assim, ela considerava, por exemplo, uma construção marcada por preconceitos, quando se procura deduzir todos os fenômenos da vida social humana de um único princípio, por exemplo, a partir do princípio da maior utilidade ou mesmo a partir do princípio do prazer. Mas ela se remete sobretudo contra a construção que imperava na outrora disciplina fundamental da filosofia: a teoria do conhecimento (Gadamer, 2012, p.144).
Dentre as três seções componentes do livro, a mais substancial é a terceira. Inteiramente dedicada a Heidegger (o que denota que é sobre este que recai a ênfase do livro), seus ensaios, conferências e discursos não são inteiramente inéditos, já tendo sido publicados originalmente entre os anos de 1964-1986. Na maioria desses escritos é possível identificar o interesse gadameriano em caracterizar o pensamento de Heidegger em dois tempos: o antes e o depois da chamada “virada hermenêutica”.
Dos 20 textos sobre Heidegger, chama-nos atenção “Existencialismo e filosofia da existência” (p. 235-249). Esta distinção entre o pensamento do filósofo de Freiburg e a dita corrente existencialista poderia ser considerada uma temática “requentada” se fosse desconsiderado o fato de ele ter sido escrito em 1981, época em que se vivia uma verdadeira voga existencial ou um momento em que, como diz Gadamer (2012, p.235): “O que não era existencial não contava”. Problematizando a designação em pauta, nosso comentarista apresenta os termos das filosofias da existência na Alemanha e dos motivos da aversão de Jaspers e Heidegger ao rótulo. Gadamer ainda nos mostra o quanto reflexões desses autores apropriam certo “pathos existencial” presente na obra de pensadores fundamentais como Kierkegaard, Nietzsche e Husserl. Tal texto, se lido diante da consideração de seu contexto de época, ainda se presta a reforçar o quanto a filosofia de Heidegger não é existencialista.
O texto “História da filosofia” (p. 398-412), também de 1981, é outro que se destaca do conjunto. Lançando um olhar inteligente sobre o tema, Gadamer procura estabelecer um lugar para a história da filosofia no pensamento de Heidegger. Com isso, reforça o quanto, em Heidegger, a história da filosofia é menos historiografia dos problemas do pensamento do que questionamento filosófico propriamente.1 Entretanto, ao tomar este caminho, Gadamer se vê instado a tratar, também, do conceito heideggeriano de história, este que, como sabemos, possui acepções diversas em diferentes épocas (como se vê nos primeiros trabalhos de Heidegger, implicando as noções de historicidade e temporalidade existenciais e nos encaminhamentos para a obra tardia do filósofo, na qual a “história do ser” ganha proposição e relevo). Antes, porém, de chegar a esse ponto, Gadamer faz uma reconstrução histórica do conceito de história da filosofia mostrando o quanto ele surge do gesto inaugural de Hegel; como ganharia a acolhida de Schleiermacher; receberia contributos da escola histórica de Berlim e de pensadores a esta ambientados (como é o caso de Dilthey) e mereceria críticas quando é assumido como “história das ideias” no bojo do movimento neokantiano (em especial com Windelband).
“Martin Heidegger, 75 anos” (p. 250-264), “O pensador Martin Heidegger” (p. 298-305), e “Martin Heidegger, 85 anos” (p. 350-361) são discursos comemorativos por ocasião de aniversários do filósofo. Nesses (mais do que o registro de apreço de Gadamer a seu mestre) se encontra uma narrativa detalhada da trajetória de Heidegger, com ênfase em seus excitantes momentos iniciais. Longe do tom retórico e das formalidades (geralmente recorrentes em falas similares), o relato de Gadamer assume, por vezes, o tom de um memorialismo refinado. Em meio ao exercício de apresentar traços personais do filósofo, ilustrar o rigor de sua atitude fenomenológica, compreender seus conceitos fundamentais e revisitar as críticas voltadas à sua filosofia, é possível identificar o esforço de Gadamer em marcar suas posições frente ao pensamento de Heidegger, ou, como confessa o próprio Gadamer (2012, p.9):
Foi necessário o distanciamento que a conquista de um nível próprio pressupõe, até que eu estivesse respectivamente em condições de destacar a tal ponto o meu acompanhamento dos caminhos de Heidegger de minha própria busca por um caminho e uma senda, que eu pudesse apresentar por si mesmo o caminho do pensamento de Heidegger.
É claro que o recorte específico dado por nossa resenha não faz com que prescindamos da leitura dos demais textos do compêndio: “A teologia de Marburgo” (p. 250-264), “O que é metafísica?” (p. 281-285), “Kant e a virada hermenêutica” (p. 286-297), “A linguagem da metafísica” (p. 306-317), “Platão” (p. 318-332), “A verdade da obra de arte” (p. 333-349), “O caminho até a viragem” (p. 362-381), “Os gregos” (p. 382-397), “Há uma medida sobre a terra?” (p. 446-470), “Sobre o início do pensamento” (p. 507-531), “Em meio ao retorno ao início” (p. 532561) e “O caminho uno de Martin Heidegger” (p. 562-580). Afinal, estes escritos ajudam a introduzir o pensamento de Heidegger mostrando o quanto o autor foi tão obstinado quanto intrépido ao se afastar da filosofia e linguagem tradicionais, encaminhando-se a um pensamento novo e renovador.
Ao fim, é preciso indicar que, embora o título sugira apenas o universo de Hegel, Husserl e Heidegger, também comparecem no horizonte da obra autores (direta ou indiretamente) ligados ao pensamento dos primeiros. Destarte, vale conferir como Gadamer se posiciona frente a Natorp, Scheler e Hartmann.
Notas
1 Isso já poderia ser conferido pelo leitor brasileiro na preleção História da filosofia, de Tomás de Aquino a Kant (Heidegger, 2009).
Referências
GADAMER, H-G. 2012. Hegel-Husserl-Heidegger. Petrópolis, Vozes, 608 p.
GADAMER, H-G. 2007a. Hermenêutica em retrospectiva: Heidegger em retrospectiva. Petrópolis, Vozes, vol. 1, 132 p.
GADAMER, H-G. 2007b. Hermenêutica em retrospectiva: a virada hermenêutica. Petrópolis, Vozes, vol. 2, 212 p.
GADAMER, H-G. 2007c. Hermenêutica em retrospectiva: hermenêutica e a filosofia prática. Petrópolis, Vozes, vol. 3, 95 p.
GADAMER, H-G. 2007d. Hermenêutica em retrospectiva: a posição da filosofia na sociedade. Petrópolis, Vozes, vol. 4, 131 p.
GADAMER, H-G. 2008. Hermenêutica em retrospectiva: encontros filosóficos. Petrópolis, Vozes, vol. 5, 119 p.
HEIDEGGER, M. 2009. História da filosofia, de Tomás de Aquino a Kant. Petrópolis, Vozes, 271p.
ROHDEN, L. 2002. Hermenêutica filosófica: entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo, Editora Unisinos, 317 p.
SARTRE, J.P. 1997. Husserl, Hegel, Heidegger. In: J.-P. SARTRE; P. PERDIGÃ O, O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis, Vozes, p.302-325.
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens – Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Toledo, PR, Brasil. E-mail: kahlmeyermertens@gmail.com
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