Guia de visitação do Cemitério Israelita da Vila Mariana | R. Cytrynowicz

Do que se conhece das publicações existentes, o Guia de visitação do Cemitério Israelita da Vila Mariana é a primeira publicação no Brasil voltada a um cemitério judaico, que apresenta roteiros. A realização da obra tornou-se possível por meio do apoio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, por meio da aprovação em edital do Programa de Ação Cultural do ano de 2020. O livro é de autoria do historiador Roney Cytrynowicz, graduado em Economia, mestre e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, suas pesquisas tem como foco a história dos judeus no Brasil. Cytrynowicz (1990, 2000) é autor de obras sobre os judeus durante a 2ª Guerra Mundial e a barbárie do Holocausto. Também tem se dedicado à literatura infantil e a publicação em vários veículos de comunicação e científicos. Ainda, foi diretor do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, atual Centro de Memória do Museu Judaico de São Paulo, a principal instituição que preserva um grande acervo documental relativo à memória, à história e à cultura dos imigrantes judeus no país.

O guia contém 176 páginas com ilustrações coloridas e apresenta arte e diagramação que ajuda a identificar os roteiros durante o seu manuseio. A pesquisa histórica, roteiros e redação são de autoria de Monica Musatti Cytrynowicz e de Roney Cytrynowicz, autores de Associação Israelita de São Paulo, 85 anos: patrimônio da história da comunidade judaica da cidade de São Paulo, também publicados pela editora Narrativa-um (Cytrynowicz & Cytrynowicz, 2008). As fotografias são de Laila Zilber Kontic, que se dedica a fotografia como instrumento de pesquisa. Os mapas confeccionados por Kontic e Joana Spadaccini são fundamentais para um guia de visita.

O livro foi publicado quando o Cemitério Israelita da Vila Mariana completou 100 anos de seu primeiro sepultamento. Portanto, a obra adquire caráter memorialístico e documental, por lembrar o centenário deste campo santo. Mesmo para aqueles que se encontram distantes da capital paulista e, por isso, terão pouca chance de percorrer os roteiros e conhecer mais de perto a história das sepulturas e seus sepultados, o livro é uma grande fonte de informação e conhecimento sobre a história judaica no Brasil, em especial, referente a arte e arquitetura cemiterial e as famílias de imigrantes que se destacaram na sociedade brasileira. Ao longo dos roteiros, existem boxes com textos complementares que ajudam no entendimento as especificidades de um cemitério judaico, em relação aos ritos fúnebres, aspectos formais dos túmulos, atributos artísticos e contextualizações de cunho histórico.

Podemos definir um cemitério judaico como um local murado e cercado com portão, um espaço para sepultar aquelas pessoas que se autoidentificam como judaicas – as quais partilham um sentido de identidade, por sua cultura, origem e/ou história –, sendo os membros da Chevra Kadisha responsáveis por assegurar os serviços fúnebres, conforme os preceitos religiosos, observando a simplicidade das estruturas sepulcrais e o uso exclusivo de símbolos judaicos. Tais espaços podem ser cemitérios monumentais, cemitérios-jardim ou cemitériosparque, ativos ou inativos e em estado de preservação variado. Como caracterização: “Os cemitérios judaicos apresentam em geral – como um valor cultural e comunitário – sepulturas discretas, comedidas e desprovidas de ostentação ou luxo e sem tampouco a construção de mausoléus com estátuas” (Cytrynowicz & Cytrynowicz, 2008, p. 61).

A preservação dos cemitérios e sepulturas é um elemento crucial para os povos judaicos, pois faz parte do ciclo da vida. Reforçando essa perspectiva, Avriel Bar-Levav fala que a conexão com a morte é central na cultura judaica, no cerne da estrutura social – um produto criativo da morte no centro da experiência judaica (Bar-Levav, 2014, p. 15). Em muitos locais da diáspora, as lápides são os únicos testemunhos da presença dos judeus no território. Dessa forma, as lápides de um cemitério podem ser vistas como artefatos de grande documentalidade e expressão comunitária, um espaço de aprendizado para os judeus, pois ali se reproduz socialmente uma visão de mundo que lhe é própria (Aguiar, 2008).

A privação dos ritos fúnebres judaicos ao longo do período nazista foi um trauma para os moribundos que percebiam que suas tradições seriam violadas. Para as comunidades judaicas, configura-se como um grande apagamento, já que além do plano espiritual a ausência da lápide é um duplo apagamento da história. A Shoah foi um evento extremamente traumático e doloroso, até mesmo para os judeus que seriam mortos, pois tinham a consciência que seriam enterrados em valas comuns. Do ponto de vista religioso, foi uma irreparável ofensa já que a tradição judaica preceitua a sepultura individual com uma lápide que a identifique (Rugg, 2000, p. 268-269). A existência de muitos memoriais às vítimas do Holocausto ao redor do mundo foi uma forma das comunidades judaicas lembrarem de seus mortos (Cytrynowicz & Cytrynowicz, 2008, p. 106).

Além da destruição de sepulturas judaicas no período da 2ª Grande Guerra, nos últimos anos, com a escalada da ultradireita na Europa e o fortalecimento de grupos neonazistas, os cemitério judaicos tem sido alvo de vandalismo. Muitos desses casos foram noticiados pela imprensa internacional, ocorridos em sepulturas judaicas, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. No Brasil, o estudo da cultura judaica, do seu legado e do patrimônio tornamse fundamentais para uma educação que repudie imagens e estereótipos antijudaicos de “judeofóbicos” e antissemitas (Lesser, 1995). Nesse tocante, é importante lembrar que existe uma ausência da história dos judeus na historiografia brasileira, levando a que essa comunidade seja desconhecida e, por consequência, se fortaleça os preconceitos e a ignorância eles (Blay, 2020, p. 25). A visitação de cemitérios judaicos a partir de um guia, como o Cemitério Israelita da Vila Mariana, possibilita conhecer a história dos judeus na cidade de São Paulo, aspecto pouco abordado nos livros de História.

No Brasil, os cemitérios judaicos estão localizados nas regiões onde a imigração judaica se fez mais presente, a exemplo do Pará, do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Rio Grande do Sul (Roitberg, 2015). Antes da República, a maioria dos judeus era enterrada em cemitérios de acatólicos, com sepulturas datadas dos séculos XIX e XX, tais como aquelas inventariadas por Egon e Frieda Wolff, entre 1973 a 1982, ultrapassando o número de mil túmulos (Wolff & Wolff, 1983). Como explica José Roitberg (2015), não existe uma lei religiosa judaica que obrigue o enterro em cemitérios judaicos. Assim, encontram-se sepultamentos feitos em cemitérios municipais ou em cemitérios não-judaicos com alas específicas em várias cidades brasileiras.

Em terras brasileiras, as comunidades judaicas estabeleceram, com o auxílio da Jewish Colonization Association, uma série de instituições de base social e religosa, especialmente após a Primeira Grande Guerra. Foram fundadas sinagogas, cemitérios, organizações de ajuda, bibliotecas, escolas, jornais impressos, asilos para idosos, casas funerárias e restaurantes (Lesser, 1995). A garantia de um cemitério judaico era premissa para que se cumprisse o ritual funerário conforme os preceitos da tradição. Ainda, os cemitérios judaicos são espaços de lembrança, adquirem sentido identitário e de pertencimento para a comunidade de imigrantes e seus descendentes.

Em São Paulo, o Cemitério Israelita da Vila Mariana foi instalado nos anos 20 do século XX, cujo terreno foi doado por Maurício Klabin. É um cemitério privado e administrado pela Associação Cemitério Israelita de São Paulo, também conhecida pela denominação em hebraico Chevra Kadisha, sendo mantido pela comunidade. Todas as sepulturas são perpétuas e individuais, totalizando cerca 5.500, incluindo imigrantes da Europa Oriental, da Europa Central e do Oriente Médio de 20 países e regiões de origem.

Roney Cytrynowicz explica interpreta o cemitério como um lócus de memória:

Ao visitar um cemitério como o da Vila Mariana, ao mesmo tempo visitamos individualmente um falecido, lembramos deles, de sua vida, e lembramos da história da comunidade e da cidade de São Paulo. Assim, o cemitério é ao mesmo tempo o local onde estão sepultados nossos familiares, ancestrais e amigos e o local que, coletivamente, preserva a memória da comunidade. O sepultamento em um cemitéro judaico é uma marca de pertencimento à comunidade, e, neste caso, uma marca que a enraizou na cidade de São Paulo (Cytrynowicz, 2021, p. 19).

Do ponto de vista religioso, o cemitério é um local de grande significado como explica a Torá. O rabino Simon Philip De Vries escreveu em 1932:

Nos conmovemos profundamente cuando visitamos estos lugares. Son aquéllos en los que reposan los restos mortales de tantos hombres que forjaron nuestra historia, corresponsables del desarrollo del espíritu judío. Son estos profetas, estos héroes, los que en todos los siglos pusieron la base y marcaron las metas de la vida judía (De Vries, 2007, p. 280-281).

Seja por interesse comunitário, religioso ou turístico, o guia oferece uma forma orientada de visitação. Nele propõem-se cinco roteiros que percorrem as alamedas, fazendo o uso de uma numeração que indica a quadra, rua e número da sepultura, plotadas nos mapas. Os roteiros um, dois e três são mais curtos e os quatro e cinco percorrem uma área maior e terreno mais íngreme. Cada roteiro vai destacar a história do cemitério, sendo selecionadas 120 sepulturas, a partir das formas tumulares e seus signos e em razão das pessoas sepultadas que tiveram uma vida pública, como artistas, cientistas, empresários e políticos.

Em suma, O Guia de Visitação Cemitério Israelita da Vila Mariana oferece em linguagem simples e direta orientações precisas de o que fazer ao visitar um cemitério judaico, propondo cinco roteiros para caminhar por entre árvores e túmulos e conhecer um pouco mais sobre a comunidade judaica e seu papel na formação maior capital do país. O guia funciona como um elemento condutor da visita ao cemitério, o visitante ao percorrer um ou mais roteiros será aquele que poderá melhor avaliar a eficâcia e lacunas do mesmo. Pelo tamanho do cemitério, foram feitas escolhas de inclusão ou não de sepulturas em cada roteiro, o que abre o caminho para se pensar na continuidade do projeto com base na experiência do primeiro guia de um cemitério judaico no Brasil.


Referências

Aguiar, A. M. (2008). Palco para a vida: cemitério e identidade. Anais do IV Encontro Nacional do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro (pp. 193-203). São Paulo: Arquivo Histórico Judaico Brasileiro.

Bar-Levav, A. (2014). Jewish attitudes towards death: a society between Time, Place, and Texts. In: S. C. Reif; A. Lenhardt & A. Bar-Levav (Eds.). Death in Jewish Life: burial and mourning customs among Jews of Europe and Nearby Communities (pp. 3-16). Berlim: De Gruyter. https://doi.org/10.1515/9783110339185.3

Blay, E. A. (2020). O Brasil como destino: raízes da imigração judaica contemporânea para São Paulo (2ª ed.). São Paulo: Editora Unesp.

Cytrynowicz, M. & Cytrynowicz, R. (2008). Associação Israelita de São Paulo, 85 anos: patrimônio da história da comunidade judaica da cidade de São Paulo. São Paulo: Narrativa-um, 2008.

Cytrynowicz, R. (1990). Memória da Barbárie: a história do genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Nova Stella.

Cytrynowicz, R. (2000). Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Geração Editorial. https://doi.org/10.1590/S0104- 59702000000200004

Cytrynowicz, R. (2021). Guia de visitação do Cemitério Israelita da Vila Mariana (1ª ed). São Paulo: Narrativa Um.

De Vries, S. P. (2007). Ritos y símbolos judíos (2º ed.). Madrid: Caparrós Editores.

Lesser, J. (1995). O Brasil e a questão judaica: imigração, diplomacia e preconceito. Rio de Janeiro: Ed. Imago.

Roitberg, J. (2015). Pequena história do enterro judaico e os cemitérios judaicos no Brasil. Anais do VII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (pp. 190-206). UNIRIO: Rio de Janeiro.

Rugg, J. (2000). Defining the place of burial: what makes a cemetery a cemetery? Mortality, 5 (3), 259-275. https://doi.org/10.1080/713686011

Wolff, E. & Wolff, F. (1983). Sepulturas de Israelitas II. São Paulo: Cemitério Comunal Israelita do Rio de Janeiro.


Resenhista

Fabiana Comerlato – Doutora em História (concentração em Arqueologia) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É professora do curso de Museologia e do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia e Patrimônio Cultural da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Atualmente, é pós-doutoranda do Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património da Universidade de Coimbra. E-mail: fabianacomerlato@ufrb.edu.br ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4675-1224 CV: http://lattes.cnpq.br/6498759283519657


Referências desta Resenha

CYTRYNOWICZ, R. Guia de visitação do Cemitério Israelita da Vila Mariana. São Paulo: Narrativa Um, 2021. Resenha de: COMERLATO, Fabiana. O cemitério como fonte de conhecimento da cultura judaica. Revista M. – Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, e11946, jan./jun. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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