Este número da revista Projeto História atenta às repetições dos desmandos, humilhações e contínuas tragédias humanas, faz um chamamento à reflexão sobre temas que marcam nossos próprios destinos. Guerras, impérios e revoluções nascem de processos sociais contraditórios, que ganham configurações específicas, inusitadas, em suas próprias singularidades. A dominação de grupos sociais sobre outros; os embates político, religioso e étnico; a conquista de domínios territoriais; o gigantismo da subjugação e extermínio de populações civis; a regressão dos direitos sociais dos indivíduos são produtos da interatividade societária, todavia, não são traços perenes e eternos, são, sim, formas transitórias, históricas.
Paul Celan, em Fuga da morte (1952), escreveu que “a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio”.1 Adorno, detendo-se sobre essa poética pós-Auschwitz, com indignação e coragem, enfatizou que essa regressividade jamais poderia ser repetida, pois “a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora”.2 É possível agir sem ter essa indignação como móvel? É possível criar, educar, poetizar, cantar tendo em mente o que se passou? Mas a barbárie parece não ter fim. O revisionismo atual continua com sua pregação criminosa recheada de inverdades históricas. Pierre Vidal-Naquet arrolou essas concepções negacionistas, relativistas, neonazistas, que se disseminam: a inexistência do genocídio e da câmara de gás; a “solução final” vista como “recuo” ou “expulsão dos judeus para o Leste europeu”; o número de vítimas é bem menor, pois, dizem, há grande número de casos de morte natural; o maior inimigo da humanidade foi Stálin e não Hitler; a Alemanha hitlerista não foi a única responsável da Segunda Guerra Mundial; o genocídio é mero recurso propagandístico judaico e sionista.3
Não nos esqueçamos que as guerras mundiais do século passado foram guerras intercapitalistas. Os potentados imperialistas que conheceram a via sinuosa, tortuosa, retardatária de objetivação do capital tinham como meta uma nova partilha do mundo. Para tal era necessária uma ideologia de guerra, uma ideologia de mobilização nacional – e não importam aqui os nódulos que a sustentam, se montada no darwinismo social, no anti-semitismo, no anticomunismo, no ideal nazista de beleza, na pureza e superioridade da raça, no irracionalismo de todos os matizes –, uma ideologia que pusesse em marcha multidões em nome de um patriotismo visceral que vingasse o extermínio de outros povos.
Mas, nos dias que correm, as atuais guerras, genocídios, torturas e práticas criminosas, como jogos de diversão sexual, como as verificadas nas prisões de Abu Ghraib e Guantánamo, as ocupações de territórios como na guerra do Iraque, são expressões do novo imperialismo ou do domínio do Império, tal como Toni Negri e Michael Hardt tentam conceituar a nova configuração mundial?
Domenico Losurdo tenta problematizar esta nova quadra histórica, retomando as teses leninianas sobre o imperialismo. Tenta responder acerca da natureza dessas intervenções bélicas; seriam, em verdade, imperialistas ou, como quer Michael Hardt, balizadas para tutelar os direitos humanos? Seria a intervenção norte-americana no Iraque uma aposta, por meio da brutal violência, pela defesa intransigente de concretização da democracia para um povo incivilizado? Como explicar que, no momento em que se busca invalidar a categoria do imperialismo, se assiste, ao mesmo tempo, a uma série de operações militares que reforçam a tese leniniana da essencialidade da guerra de talhe imperialista? Losurdo visa, em confronto com o conceito de Império, dos filósofos Negri e Hardt, responder a esta e outras questões: “Por que a derrota do ‘campo socialista’ abriu o caminho, não para o afrouxamento, quanto para um enrijecimento da situação internacional? Por que à Guerra Fria não se seguiu a paz perpétua prometida pelos vencedores, quanto uma série de guerras quentes que parece não ter fim?”.
No mesmo diapasão, Christian Castillo investe contra as teses inscritas em Império. Segundo esse autor, com a persistência do desemprego de massas, da precarização do trabalho, vários autores passaram a discorrer sobre o “fim do trabalho”, a “sociedade pósindustrial” regida pelo “capitalismo cognitivo”, que superaria a teoria marxiana do valor. Com a diminuição crescente do proletariado industrial teria emergido na cena histórica um novo sujeito social: a “multidão” constituída de indivíduos independentes e autônomos. Para essa perspectiva, segundo Castillo, “a atividade cognitiva torna-se o fator essencial de criação de valor, calculando-se este em grande parte por fora dos lugares e do tempo de trabalho”. Com o predomínio do “trabalho imaterial” no mercado globalizado, a cooperação social do “general intellect”, o cérebro se torna, na acepção de Negri, a “máquina útil que cada um de nós carrega em si”. Surge, daí, uma nova configuração da luta social não engendrada por relações contraditórias, dialéticas, mas uma nova alternativa que prescinde da transição. O conceito de “transição” é substituído pelo de “poder constituinte”. Castillo tenta rebater esse “novo antagonismo” a partir da dialética imanente ao sociometabolismo do capital e da determinação do trabalho alienado, visando à compreensão dos verdadeiros limites e potencialidades da categoria social dos trabalhadores.
Márcio Seligmann-Silva nos oferece um competente e rigoroso ensaio sobre o conceito de testemunho em vários registros, todavia, buscando o dialógico entre paradigmas que certa interpretação busca separar, e ele, ao contrário, os integra respeitando suas diferenças. Trata-se, de um lado, do testemunho enquanto testis, que tem como centralidade a visão, e o testemunho como experiência vivida, supertestes, concernente àquele que está na condição de “manter-se no fato”, “como alguém que habita na clausura de um acontecimento extremo que o aproximou da morte”. Na rica seara dos estudos literários e suas ramificações, o autor tece os imbricamentos entre narrativas ficcionais e as ações dispostas no mundo efetivo, valendo-se desses modelos. Os estudos sobre a Shoah e o “testimonio” hispano-americano, entretanto, apontam para a virada de paradigma que vem ocorrendo no campo das artes e da literatura.
Modesto Florenzano apresenta os caminhos do revisionismo na historiografia contemporânea da Revolução Inglesa. Traça um paralelo com a historiografia francesa e examina as confluências e diferenças que apontam para essa “herança conflituosa”. Considera François Furet e Lawrence Stone como as principais figuras desse “embate”, que põe de ponta-cabeça os resultados do conhecimento histórico sobre o processo revolucionário. No caso inglês, desde 1953, Trevor-Roper propiciou outra interpretação acerca da visão de Tawney sobre “a ascensão da gentry”, simplesmente negando sua condição de classe empreendedora e capitalista. Acabava por inverter o caráter e o significado de seu ser revolucionário. Modesto sinaliza que a historiografia conservadora, com referência ao revisionismo francês, vai além, passando a negar a própria existência da revolução. Respondendo às principais questões do debate em solo inglês, o historiador destaca o vigor das análises de Thompson, Christopher Hill, Hobsbawm e Perry Anderson, nessas “batalhas espetaculares”.
Izabel Marson retoma as interpretações históricas de Marx e de Victor Hugo no que tange ao Golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851. O contraponto se faz por meio das obras O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte e Napoleão, o pequeno. Golpe de Estado que inaugura pelas armas o II Império francês e dissolve a República Parlamentar. Victor Hugo, que jogara seu prestígio na eleição presidencial de Luis Bonaparte, agora, desiludido, parte para o ataque. Marson resgata a qualidade da narrativa-testemunho, mas aponta para os limites dos princípios e métodos praticados pela historiografia liberal francesa. O dramaturgo francês é levado à inevitável comparação com a grandeza de um, o tio, e a pequenez política e moral do sobrinho, Napoleão III. Do prisma marxiano, é o processo histórico que torna inteligível os movimentos de indivíduos, grupos, classes sociais, nos episódios do 2 de dezembro e seus desdobramentos. No confronto, a narrativa de Victor Hugo elide a complexidade histórico-social, reduzindo as tramas sociais às ações de um indivíduo. “O acontecimento propriamente dito aparece em sua obra como um raio caído de um céu azul”. Por isto, analisando os eventos políticos, Marx especifica como a luta de classes engendrou “as circunstâncias e condições que possibilitaram a uma personagem medíocre e grotesca desempenhar um papel de herói”.
Vera Lucia Vieira, num esforço exemplar, expõe os limites e as possibilidades das constituições burguesas. Enfrentando questões espinhosas das relações entre iluminismo, liberalismo, constitucionalismo e também o fluxo da democracia para formas autocráticas no bojo das lutas de classe, a autora aponta para a determinação ontonegativa da politicidade que perpassa o aparato jurídico da dominação proprietária. Do prisma marxiano, mostra como os passos constitucionais não se separam dos conflitos práticos que se estampam na consolidação conservadora após os processos sociais advindos com as revoluções burguesas. É na própria organização social, em sua disposição assimétrica, que se encontram os pilares que estruturam a base do poder político do capital. E não na busca da inteligência ou vontade políticas. Com as intervenções revolucionárias da classe trabalhadora, os proprietários, em sua resposta contra-revolucionária, sedimentaram seu mando com uma legislação feroz e violenta regrando a mobilização das classes subalternas.
Lincoln Secco apresenta um amplo balanço das configurações do “comunismo histórico”, expressão que denota o papel dos partidos comunistas no poder político de várias formações sociais cuja organização produtiva se estruturou a partir da abolição da propriedade privada dos meios de produção. O autor investiga a complexidade do movimento comunista, desde a revolução russa de 1917, os impasses do drama histórico e da crise advinda com o relatório dos crimes de Stalin revelado no XX Congresso do PCUS em 1956, assim como a ruptura entre URSS e China, em 1961. Passa em exame as revoltas estudantis e populares, como a invasão da Tchecoslováquia, em 1968, os conflitos fronteiriços entre China e URSS, de 1969, assim como o declínio e a estagnação de suas formas produtivas e a crise social aberta no sistema. O historiador fornece um quadro preciso da distribuição das forças comunistas em vários países, não apenas na Europa, mas também na Ásia e na América Latina.
Valério Arcary intenta a crítica da “teoria dos campos progressivos” de Eduard Bernstein. A inflexão da nova teoria política que desanca a filosofia marxiana, jogando-a ao limbo, é aqui desvelada à luz da história. Ponto de confluência com o stalinismo, o revisionismo de Bernstein também opera a naturalização da história e projeta uma catástrofe final. O télos da história é o socialismo democrático. Só que no terreno das reformas graduais, lentas e pacíficas. Valério Arcary dilucida as circunstâncias dessa ideologia, que se despe da necessidade histórica, em tempo de normalidade aparente, e se põe na ruptura com o objetivo final, a estratégia da revolução social. Recorde-se que, para Bernstein, o capitalismo monopolista superara o caos do sistema, as contradições internas do próprio capital. Daí a crítica à dialética hegeliana, as contradições que se resolvem em nova síntese, com suposta (falsa) base teórica de Marx e o alinhamento ao “retorno de Kant”. Uma vez banida a revolução social, o imperativo categórico da liberdade atua como retor moral, como idéia reguladora de atos possíveis, porém jamais atendidos. Daí a teoria da revolução, da luta de classes e do valor-trabalho serem inteiramente descartados. Só é possível a diminuição das desigualdades, ajustes possíveis, por meio da ação parlamentar. Daí que somente com esse “método”– a estratégia gradualista, a defesa da centralidade dos meios sobre os fins e da moral sobre a política revolucionária – o apóstata de Marx vislumbra a democracia como valor universal como paradigma civilizatório do socialismo, a via parlamentar sempre em permanente aperfeiçoamento e progressão.
A seção Entrevista apresenta o ensaísta consagrado, Boris Schnaiderman, que além de ter contemplado nossa “República das letras” com traduções primorosas de clássicos russos como Dostoiévski, Tchekhov, Púchkin, entre outros, e como memorialista e romancista, a tornada clássica Guerra em surdina, dispõe-se mais uma vez a narrar suas experiências sobre a Segunda Guerra Mundial. Ao lembrar daquela “estranha epopéia dos brasileiros”, a combatividade dos nossos soldados da FEB, Boris Schnaiderman, com seu humanismo incontrastável, diz que esperava por um desastre. Porém, “o soldado brasileiro teve uma atuação surpreendente na guerra. Comportou-se muito bem”. Isso se deve ao fato de que “o brasileiro era mais hábil inclusive porque vinha de ambientes mais pobres. Geralmente pessoas originárias de tais circunstâncias têm uma capacidade maior de improvisação”.
A Guerra de Canudos recebe um tratamento crítico que se contrapõe à versão consagrada por Euclídes da Cunha. José Maria de Oliveira Silva examina As prédicas de Antonio Conselheiro e refuta a imputação de elementos messiânicos a milenaristas ao beato. Dessa maneira, o historiador ressalta novas especificidades desse fenômeno histórico, a partir das pregações, como a concepção providencialista da história, a pobreza edificante e o caráter piedoso de A. Conselheiro.
O artigo de Giselda Brito põe à prova algo cristalizado pela análise convencional em nosso país, a saber: o Estado Novo seria o projeto integralista abocanhado por Getulio Vargas. Segundo sua interpretação, o integralismo e o Estado Novo não seriam a mesma coisa. Acentuando traços comuns como o anticomunismo, a crítica à liberal-democracia, a luta de classes, a busca de coesão nacional contra os regionalismos, a necessidade de um Estado forte e intervencionista, por si só, no nível de generalidades abstratas, a analítica convencional acaba por elidir as diferenças, suas especificidades históricas. Destrinçando a natureza do discurso ideológico de Vargas, a autora revela como o bonapartista do entre guerras esmera em atacar os “adeptos de idéias externas”, “os desordeiros e perigosos inimigos” do “destino imortal” da nação. Vargas imputa aos comunistas e integralistas a disseminação de ideologias nefastas que causam instabilidade política.
Em nossos tempos, o casamento do projeto neoconservador americano com a investida política de Bush sob o signo da guerra preventiva, batizada de “Choque e Pavor”, contra o Iraque, faz parte da nova estratégia (ou arquiantiga?) de vingar o modus vivendi da única superpotência mundial para o “resto do mundo”. Afinado com a ideologia neoconservadora do “fim da história” e do triunfo do modus vivendi norte-americano, segundo o qual testemunhamos, na última quadra histórica do século passado – como rezava o ideólogo Francis Fukuyama –, “o fim da História enquanto tal: ou seja, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como forma última de governo humano”. Mas que isso não encubra os propósitos declarados de subjugação e domínio das reservas de petróleo, gás, água, minérios, etc., em especial assegurados para os monopólios norte-americanos. Bem antes do monstruoso ataque às torres gêmeas de 11 de setembro de 2001, por membros do grupo AlQaeda, os neoconservadores como Paul Wolfowitz, Donald Rumsfeld, Francis Fukuyama, entre outros, ainda sob a administração de Bill Clinton, sugeriam o ataque e destronamento de Saddam Hussein. O Oriente se apresenta como esfera de influência, parte anexada ou controlada pela grande potência com seu projeto “hegemônico benevolente”.
Enfocando essas questões, Paulo Edgar-Resende põe a nu a doutrina da guerra preventiva, estabelecendo nexos com a política imperialista do “Destino Manifesto”. Daí a atualidade da interpretação do sociólogo Max Weber ao imputar influências entre a ética protestante e o espírito do capitalismo. Segundo o autor, “a presença tentacular dos Estados Unidos no mundo atual tem justificativa religiosa, expressa na direção de cruzada do eixo do bem contra o eixo do mal”.
O historiador Ettore Quaranta, com fina erudição, examina a influência da tradição grega e do Oriente no que tange ao significado essencial do culto ao soberano. A partir da “Vitória guerreira”, oriunda da epopéia de Alexandre, o autor sinaliza como a cultura grega nutriu o regime da realeza no período helenístico configurando um novo mundo heterogêneo, com os aportes do estoicismo e a divinização real. Projeto História retoma também a problemática da guerra e do poderio romano, a formação e ampliação do imperium. A interpretação de Políbio sobre o império romano é retomada por Breno Sebastiani. Este autor busca compreender, no interior da historiografia polibiana, as conexões íntimas entre a Segunda Guerra Púnica e a Constituição romana desse período e, com isso, o suceder de atos que potencializam o poderio romano. Na visão de Políbio, tanto a guerra como a estrutura constitucional romana são tomadas como causa preponderante de sua política expansionista e domínio militar sobre outros povos.
O protagonismo das mulheres é retomado em nossas páginas por Vanessa Cavalcanti ao tratar da “politização do privado” e do combate aos silêncios da esfera doméstica. A revolução das mulheres tornou-se, de modo irreversível, metro societário que dispõe as potencialidades de novas maneiras de viver por meio dessa conquista do gênero humano. Tematizando tanto experiências pessoais e subjetivas, quanto aquelas da esfera pública, a autora demonstra o papel efetivo das lutas feministas na desconstrução das práticas discursivas que, em tempos de guerra, ressurgem com suas formas virulentas e garras inumanas.
Questionando a concepção habermasiana de “esfera pública”, Giulia Crippa e Marco Antonio de Almeida buscam apreender as relações recíprocas entre mídia, guerra e cultura, a partir da complexidade que aflora na “sociedade de informação”. Confluindo com as reflexões de Rancière, que ampliam a acepção de democracia como “democracia enquanto regime de escrita”, não apenas reduzida ao âmbito da política, os críticos apontam para a constituição de uma opinião pública sem coações, livre e aberta. Com Walter Benjamin, os autores atestam que a malha formada, na modernidade, pela circulação de mercadorias e troca de informações “proporciona o compartilhamento da experiência (Erfahrung) e aciona a possibilidade da narração dessa experiência”. Todavia, como é possível ultrapassar os limites iluministas da concepção habermasiana de espaço público sem a banalização dos grandes temas da experiência humana? Como superar a supremacia ideológica do “pensamento único”, da perspectiva de esquerda, de um modelo único de democracia?
A cobertura do “11 de setembro” da revista Veja aponta para a unilateralidade e posicionamento comprometido ante os métodos imperialistas do “presidente da guerra”. A historiadora Carla Silva mostra que, nas páginas de Veja, não há espaço para o contraditório. Com coragem, a autora, pela crítica imanente, desmonta os preconceitos e argumentos falaciosos, ao mesmo tempo em que revela as ligações entre Bin Laden e a CIA, o apoio dado pelo governo estadunidense a outrora aliados, que se transformaram no “fascismo islâmico”.
Hannah Arendt considera uma “confusão moral” a atribuição de uma culpabilidade coletiva de modo indistinto; enquanto os verdadeiros responsáveis por atos criminosos e inumanos continuam sem ter sequer o mais tênue remorso. Acusava cada “dente da engrenagem”, pessoas que cumpriam funções burocráticas no interior do sistema repressivo. Nos julgamentos do pós-guerra, de indivíduos que praticaram o terror em maciça escala, que se tornaram assassinos de multidões, muitos dos criminosos lesa-humanidade corroboraram a idéia de que “se eu não tivesse feito isso, outra pessoa poderia ter feito e faria”. Há que denunciar aqueles que se valem do “método de cavar buracos gigantescos para enterrar fatos e acontecimentos indesejados”.4
Em tempos de barbárie inaudita – no repor-se de formas de talhe imperialista, com a ocupação de terras alheias, que significa imposição violenta de modos de vida estranhos, com a utilização da guerra preventiva, do assassinato seletivo, do terror sem limites, e de tantas outras formas que dilaceram os indivíduos e suas sociedades –, há que se perguntar, como fez Primo Levi diante do holocausto, a que ponto ficamos reduzidos: “Isto é um homem?”. Isto somos nós? Ou como vozeirava Susan Sontag: é possível ser indiferente diante dos horrores dos genocídios, das ocupações, dos massacres, das violentações que passam diante dos nossos olhos, e não se indignar diante da dor dos outros?
Em tempos tensos, de predomínio do niilismo, numa era de supremacia bélica da grande potência, a decomposição do caráter tem levado ao pessimismo cego e incondicional que não mais acredita em possibilidades humanas mais autênticas. Nessa quadra histórica, com a revolução tecnológica sem precedentes, com o desfazimento do Leste europeu e o prolongamento da utilidade histórica do capital, é premente perguntar se é possível sonhar ainda com uma vida humanamente social, a liberdade da vida cotidiana, da comunidade interativa de indivíduos livres em permanente autoconstrução, na qual, como frisa Marx, “o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.5
Notas
1. Cf. Epígrafe (Todesfuge, tradução de Modesto Carone). In: RHODES, R. Mestres da morte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003.
2. ADORNO, T. W. Educação e emancipação. São Paulo, Paz e Terra, 1995, p. 119.
3. VIDAL-NAQUET, P. Os assassinos da memória. Campinas, São Paulo, Papirus, 1988, pp. 37-38.
4. ARENDT, H. Responsabilidade e julgamento. São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 340.
5. MARX, K e ENGELS, F. Manifesto comunista. São Paulo, Boitempo, 1998, p. 59.
Antonio Rago Filho
Editor científico
FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 30, 2005. Acessar publicação original [DR]
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