Guerra Fria: entre o local e o global / Diálogos / 2018

Este dossiê reúne artigos produzidos por conta do simpósio internacional “Guerra Fria: entre o local e o global”, promovido pelo Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (INEST-UFF) em setembro de 2017, com apoio e financiamento da CAPES. Os artigos nele reunidos pretendem apresentar casos específicos das articulações entre questões locais e globais durante a Guerra Fria.

Ao longo da Guerra Fria, os embates se acirraram não apenas nos campos de batalha, mas também entre os intelectuais. No primeiro artigo do dossiê, “A Guerra Fria na historiografia revisionista: a política externa dos Estados Unidos com a China, 1890-1909”, Flávio Alves Combat analisa as obras de William Appleman Williams e Walter LaFeber com o objetivo de verificar de que forma a historiografia revisionista analisou a chamada “Open Door Policy”, de fins do século XIX e início do XX, entendendo nela as origens de uma série de antagonismos da Guerra Fria.

Em “George Frost Kennan e a arquitetura da política externa dos EUA na gênese da Guerra Fria” são analisados os pressupostos intelectuais em torno da principal formulação de política externa dos EUA do período. Ao conectar a história familiar do diplomata, suas vivências na URSS, o acurado olhar sobre as tradições russas e os princípios políticos soviéticos, Sidnei J. Munhoz esmiúça a elaboração e os princípios por trás da chamada “Doutrina da Contenção” e as críticas de Kennan à forma como ela foi colocada em prática pelo Departamento de Estado.

Outro embate intelectual e suas conexões com a política externa estadunidense ocorreu entre neoliberais e neoconservadores diante da Revolução Nicaraguense, foco do artigo de Roberto Moll Neto. A partir da análise de dois periódicos vinculados a aqueles grupos políticos, o artigo demonstra não apenas a centralidade que o debate sobre o sandinismo alcançou na política externa dos EUA naquele momento, mas também as visões circulantes sobre a América Central e seus povos e as possíveis estratégias de atuação do governo Reagan. Como demonstrado, não havia um consenso e tampouco uma forma única de se analisar a situação, com propostas concorrentes e que expressavam não apenas as dinâmicas da Guerra Fria, mas também as disputas domésticas e aquelas internas aos dois principais partidos dos EUA.

A última década da Guerra Fria também é o foco do artigo de Vágner Camilo Alves e Mariana Guimarães Alves da Silveira. Em “A Guerra Fria e o inimigo comunista nas telas de cinema norte-americanas dos anos 1980”, são analisados os filmes de língua inglesa de maior audiência na década que abordaram diretamente temas da Guerra Fria. Conforme demonstrado, o pico de produções se deu na metade da década, no auge das tensões entre o governo Reagan e os soviéticos, com queda acentuada na quantidade, tipo e audiência após a ascensão de Gorbatchev e o início das reformas na URSS, quando o chamado “perigo soviético” foi perdendo sentido.

No auge da Guerra Fria, as disputas por informações sobre a outra superpotência levaram a um processo intenso de coleta de dados e vigilância, cuja faceta mais evidente foi o lançamento sistemático de satélites artificiais e de missões ao espaço sideral. Em “Bring data! Corrida espacial e inteligência”, Leandro Siqueira apresenta aquele momento, relacionando-o à simultânea corrida nuclear, destacando de que forma o lançamento de equipamentos secretos de vigilância de territórios, governos e populações foi parte essencial da Guerra Fria e marcou os elementos constituintes dos dispositivos de poder das sociedades de controle atuais.

O estudo de Elitza Bachvarova, em “A Polícia Política na Bulgária Socialista – A ‘Máquina de Legitimação’ do regime, 1944-1989” apresenta os mecanismos de controle da sociedade pelo partido na zona de influência da URSS. A partir do resgate da história de vigilância, controle e repressão política prévia ao controle soviético sobre o país, o artigo relaciona estruturas sociais arraigadas à constituição de um novo, mais complexo e disseminado aparato de controle por parte do regime comunista na Bulgária, apresentando também como ele foi somente parcialmente  desmantelado ao fim daquele período.

O artigo “A Guerra Fria vista a partir do Sul”, de Beatriz Bissio, abre outro bloco do dossiê, destinado às políticas não diretamente relacionadas às duas superpotências. Seu estudo apresenta as continuidades e rupturas no chamado “Espírito de Bandung”, isto é, os movimentos políticos dos países do Sul Global de crítica à ordem internacional. Atravessando largo período de tempo – das independências após a Segunda Guerra Mundial, à conformação do bloco BRICS já no século XXI – o artigo demonstra as permanências, dificuldades e crises internas enfrentadas pelos diferentes blocos constituídos com o objetivo de alterar a correlação de forças no sistema internacional.

Uma das mais longas e dramáticas crises da Guerra Fria foi a do desmonte do Império Português, marcada por intensas guerras de independência e encerrada com a Revolução dos Cravos. Na análise de Adriano de Freixo, em “A crise do último império: a Guerra Fria e as décadas finais do colonialismo português (1945-1975)”, entram não apenas os aspectos domésticos já intensamente estudados pela historiografia, como também as conexões estabelecidas com o capitalismo internacional e o oportunismo português ao lidar com o controle de espaços e matérias primas estratégicas, que proporcionaram décadas de sobrevida ao regime.

Outro conflito alheio às disputas entre as superpotências é analisado por Gabriel Passetti no artigo “A construção de uma crise: usos da história por intelectuais argentinos na contestação aos tratados com o Chile nas décadas de 1960 e 1970”. O embate entre duas ditaduras pelo controle de ilhas no extremo sul do continente foi marcado pelo engajamento de uma série de intelectuais na construção de um clima belicoso e de uma narrativa histórica sobre as relações entre os dois países. Como demonstra o artigo, a quase guerra pelo canal Beagle, em 1979, teve raízes assentadas em uma série de publicações e na construção de uma versão histórica nas duas décadas anteriores.

Dennison de Oliveira, em “Da Segunda Guerra Mundial à Guerra Fria: políticas militares estadunidenses para a América Latina (1943-1947)” apresenta vasta documentação inédita, guardada nos arquivos dos EUA, em que é possível verificar intensos debates entre os Departamentos do governo daquele país em torno de como proceder diante dos dilemas de Defesa impostos pela América Latina. O artigo apresenta os diferentes projetos elaborados para o reequipamento do Hemisfério após a Segunda Guerra Mundial, as distintas preocupações do Exército, da Marinha e do Departamento de Estado, e os interesses políticos, estratégicos e mercadológicos em torno da reconfiguração do sistema interamericano.

Muitas vezes as dicotomias da Guerra Fria se concretizaram em disputas intensas no interior  das sociedades. Este é o caso analisado por Paulo Cunha em “Os militares entre a paz armada e a Guerra Fria”. No artigo, são retomadas as histórias do nacionalismo militar de esquerda e as suas intervenções bem-sucedidas em torno do monopólio estatal do petróleo e da não participação brasileira no conflito coreano. Por intermédio da análise de material da Comissão Nacional da Verdade, o artigo demonstra de que forma a repressão sobre este grupo foi intensa ainda no início da década de 1950.

Com a publicação deste dossiê, pretendemos contribuir na disseminação dos resultados de pesquisas sobre o período da Guerra Fria, em especial naquelas que procuraram articular os aspectos globais do conflito aos dilemas, crises e embates em nível local. Os artigos demonstram que, de Washington a Bandung, de Sófia ao canal Beagle, aquelas pouco mais de quatro décadas articularam disputas entre duas superpotências que se disseminaram e foram instigadas por rivalidades e interesses pessoais e de grupos específicos, também em dinâmicas nacionais e regionais.

Gabriel Passetti –  Professor de História das Relações Internacionais e do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos, no Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (INEST-UFF), bolsista produtividade em pesquisa do CNPq. E-mail: gabrielpassetti@id.uff.br

Sidnei J. Munhoz –  Professor do departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM), bolsista produtividade em pesquisa do CNPq. E-mail: sjmunhoz@uem.br

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