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Guerra e Paz: casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30 | Ricardo Benzaquem Araújo || O Brasil visto de fora | Thomas Skidmore

Há quase um século as imagens sobre a suposta singularidade das relações raciais no Brasil têm como um de seus principais marcos constitutivos a experiência norte-americana. Processos distintos de implantação do sistema escravocrata e de sua posterior extinção, maior ou menor grau de miscigenação e seus efeitos sociais, sociedade multirracial versus sociedade birracial, mecanismos legais ou informais de discriminação racial foram alguns dos parâmetros utilizados para definir as diferenças entre as duas sociedades.

Apesar do denominado mito da democracia racial ter sido elaborado no século XIX, seu refinamento, sem dúvida, contou com a colaboração imprescindível de cientistas sociais tanto brasileiros quanto norte-americanos, especialmente nas décadas de 1930 e 1940. Gilberto Freyre e Donald Pierson são exemplos representativos desse momento.

É bom lembrar que a crença na existência de um intercurso étnico harmonioso no Brasil com lições a oferecer ao mundo recebeu incremento definitivo no intervalo entre o final da Segunda Guerra Mundial e a década de 1960. O mundo pós-holocausto e a persistência de sistemas legais de apartação, tanto nos Estados Unidos como na África do Sul, transformaram o Brasil num ‘laboratório racial’, patrocinado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no início da década de 1950. No entanto, a pesquisa sobre relações raciais realizada no país ficou aquém das expectativas originais, revelando, principalmente nas regiões mais desenvolvidas, o descompasso entre o mito e a realidade.

Todavia, só a partir da década de 1960 a imagem étnica positiva do Brasil começou a sofrer duras críticas. O ‘paraíso’ das décadas anteriores transformou-se no ‘inferno tropical’. Este tema será o fio condutor das observações acerca das recentes publicações de Guerra e paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30 O Brasil visto de fora.

A princípio, gostaria de destacar dois aspectos do estudo monográfico de Ricardo Benzaquen de Araújo. O primeiro diz respeito à solução original do autor para a recorrente dissonância nas análises a que Gilberto Freyre foi submetido, ora sendo considerado um determinista étnico, ora um culturalista. Benzaquen expõe brevemente duas versões modernas sobre a noção de raça e as subseqüentes orientações quanto ao fenômeno da mestiçagem. Mesmo existindo uma polarização entre a visão poligenista (Agassiz, Gobineau, Nina Rodrigues), que considera os cruzamentos raciais como fonte de degeneração, e o enfoque monogenista (Batista Lacerda), que acredita na solução do branqueamento a longo prazo, observa-se nos dois casos um diagnóstico negativo da miscigenação.

Diante da dificuldade de enquadramento de Freyre nos modelos expostos anteriormente, Benzaquen encontrou na perspectiva neolamarckiana uma alternativa fecunda para o entendimento das relações entre raça, meio e cultura em Casa-grande & senzala, o que dificultaria qualquer juízo definitivo sobre o ‘racismo’ do autor. A definição neolamarckiana de raça credita aos seres humanos não só uma enorme capacidade de adaptação aos mais diversos meio ambientes, mas, também, a possibilidade “de incorporar, transmitir e herdar as características adquiridas na sua — variada, discreta e localizada — interação com o meio físico” (p. 39). Estas “raças artificiais ou históricas”, conceito do sociólogo William I. Thomas, seriam, na visão do historiador da antropologia George W. Stocking, “o último elo importante entre a teoria social e a biologia” (p. 40).

Ao refinar teoricamente o neolamarckismo de Freyre, Benzaquen torna mais inteligível o elogio freyriano da miscigenação que, na visão do autor de Guerra e paz, não dissolveria as particularidades no intercurso étnico. Pelo contrário, o mestiço guardaria “a indelével lembrança das diferenças presentes na sua gestação” (p. 44).

O segundo aspecto a ser destacado no estudo de Benzaquen refere-se à seguinte questão: em que medida o poder de adaptação da identidade mista lusitana se confundiria com a freqüente afirmação da existência de um suposto ‘paraíso tropical’ freyriano? Ao destrinchar a expressão “luxo de antagonismos”, mencionando diversas passagens de extrema violência no universo da casa-grande, Benzaquen confirma a viabilidade de um ambiente que envolveria heterogeneidade, proximidade, despotismo e confraternização.

O possível convívio de situações tão díspares encontrar-se-ia na recorrente utilização por Freyre da idéia de excesso, que Benzaquen irá traduzir pela noção grega de hybris (p. 58). Sua fonte inicial, a natureza tropical, com seus vermes e sua carência alimentar, associada à antiga miscibilidade portuguesa e à escassez de mulheres brancas, geraria um verdadeiro e contraditório ambiente de “intoxicação sexual” no interior da casa-grande. O conceito de hybris reforça, ao mesmo tempo, a tendência étnico-climática (neolamarckiana), indicadora do sucesso da miscigenação, e a dimensão cultural, por meio dos efeitos perversos da sifilização na poligâmica sociedade patriarcal, sem deixar de enfatizar um quadro de proximidade e intimidade.

Nesse sentido, talvez possamos inferir da leitura da primeira parte de Guerra e paz que o “mito freyriano da democracia racial” não cancela as desigualdades e a violência existentes no complexo casa-grande e senzala. No entanto, este ambiente não impede um intenso convívio étnico.

Em O Brasil visto de fora, uma coletânea de artigos que abrange o período de 1967 a 1992, Thomas Skidmore aborda questões relativas à construção da identidade nacional, o dilemático problema racial no Brasil, analisado a partir das semelhanças e diferenças com o exemplo norte-americano e, finalmente, as trajetórias econômica e política do Brasil e da Argentina ao longo deste século.

Diante do tema proposto, vamos nos ater aos capítulos ‘O negro no Brasil e nos Estados Unidos’ (1973) e ‘Estados Unidos birracial Brasil multirracial: o contraste ainda é válido?’ (1992). O intervalo de quase vinte anos entre um artigo e outro representa, sobretudo, a mudança de enfoque do autor, podendo ser considerado representativo das alterações mais gerais das imagens do Brasil e dos Estados Unidos.

O primeiro artigo de Skidmore está atento às diferenças entre a história das relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos desde o século passado. Processo gradual de libertação dos escravos, quantidade expressiva de negros e mulatos livres antes de 1888, sistema classificatório multirracial onde prevalece o aspecto físico em detrimento da origem biológica, “rede sutil e enganadora de barreiras raciais” (p. 103) com a ausência de leis discriminatórias e a forte presença da ideologia do branqueamento, que relativizaria a importância das diferenças raciais. Algumas destas características prevaleceriam até hoje, apesar das pesquisas sociológicas mais recentes demonstrarem o descompasso entre uma suposta convivência igualitária no terreno racial e uma rígida hierarquização social com base na variável independente raça. No caso americano, prevaleceria a “rígida divisão birracial” (p. 111), calcada num sistema de castas, segregação legal e na absolutização das diferenças biológicas e culturais.

No segundo artigo, Skidmore critica as análises comparativas das relações raciais nos Estados Unidos e no Brasil, considerando-as “um saber convencional”. Esta abordagem, elaborada nas décadas de 1940 e 1950, pode ser sintetizada pela idéia de que no hemisfério ocidental concorreriam dois sistemas de relações raciais: birracial (Estados Unidos) e multirracial (Brasil). Nesse sentido, o Brasil teria uma reduzida taxa de racismo em comparação com a sociedade norte-americana. Uma das possíveis explicações para a persistência de tal crença, segundo Skidmore, seria a prevalência de estudos qualitativos, principalmente elaborados por antropólogos, em detrimento de análises quantitativas, que seriam mais afeitas aos sociólogos.

Com o aumento da disponibilidade de dados sobre a estratificação social no Brasil em anos recentes, especialmente os números relativos ao item raça, Skidmore, baseando-se em dados comparativos elaborados pelo historiador George Reid Andrews, afirma que “a desigualdade racial ao longo dessas quatro décadas vem diminuindo nos Estados Unidos e aumentando ou permanecendo estável (dependendo do indicador) no Brasil” (p. 183). A conclusão do historiador americano não permitiria a permanência do legado da superioridade brasileira em relação aos Estados Unidos no que tange ao modo mais ‘civilizado’ de lidar com a diversidade étnica existente no país.

Esta visão de Skidmore fica ainda mais nítida quando o autor questiona a concepção, ainda hoje em voga, de que a sociedade norte-americana seria birracial. Nos últimos vinte anos, com a implantação dos programas de ação positiva — um dos resultados não previstos do Movimento pelos Direitos Civis — a conceituação do que seja uma minoria racial tem gerado controvérsias no âmbito das cortes americanas, o que aparentemente causaria surpresa, já que se trataria de uma sociedade birracial. Skidmore sugere outras evidências de que os Estados Unidos seriam uma sociedade multirracial ao mencionar o caso da população hispânica, que não vem sendo enquadrada nem na categoria de branco nem na de afro-americano, e o exemplo de pesquisas recentes que demonstram que “a comunidade norte-americana é em si sensível a gradações de cor” (p. 187).

O brasilianista não deixa de destacar, também, o trabalho de sociólogos brasileiros, como Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva, que colocam em dúvida a visão tradicional do Brasil como uma sociedade multirracial. Valle Silva, baseando-se em dados censitários, mostraria “que as diferenças relativas a raça entre negros e pardos são muito menos significativas do que as diferenças entre brancos e não-brancos” (p. 188). Nesse caso, haveria uma aproximação com a típica análise bipolar utilizada nos Estados Unidos. Contudo, Skidmore tem o extremo cuidado de ressaltar que as diferentes formações histórico-sociais continuam a ser de suma importância para qualquer análise das relações étnicas nos dois países.

Ricardo Benzaquen, concentrando sua análise na parte mais importante da obra de Gilberto Freyre, e Thomas Skidmore, voltado, em grande parte de seu livro, para as relações entre pensamento social, identidade nacional e relações raciais, convergem, mais ou menos enfaticamente, para o tema da democracia racial. Apesar desta crença já estar presente em diversas interpretações anteriores a Casa-grande & senzala, o sociólogo pernambucano é responsabilizado pela criação do mito.

O singular ‘paraíso étnico-tropical’ seria compreendido ora como negativo, por diluir a relevância das profundas desigualdades raciais no Brasil e impedindo assim, entre outros fatores, a politização dos conflitos raciais no país, ora como positivo, ao estimular a crença numa identidade brasileira extremamente original e civilizadora.

Apesar das diferentes e, às vezes, antagônicas avaliações do pensamento de Gilberto Freyre, ainda existe uma enorme distância entre o reconhecimento social de sua obra e o exame das idéias do Mestre de Apipucos.

Nesse sentido, o trabalho de Ricardo Benzaquen é uma importante contribuição. Sua interpretação de “Gilberto”, como ele o denomina, revela não só a extrema complexidade do pensamento do autor, com seus “antagonismos em equilíbrio”, mas espelha também o não menos intrincado cenário étnico do país. Benzaquen sugere, no meu entender, que a idealização do cenário multifacetado do complexo “casa-grande e senzala” é um elogio à diversidade étnica como água e azeite” (cap.2) sem a chancela da hierarquização. Isso não significa, como o próprio Benzaquen faz ver de modo recorrente, apagar uma das principais marcas de Freyre: a ambigüidade. Talvez seja esta ambigüidade que faça com que a sociedade brasileira acredite na existência de uma democracia racial como utopia recheada por algumas evidências cotidianas e, ao mesmo tempo, reconheça a realidade das práticas racistas.

Este hiato entre mito e realidade é freqüentemente denunciado por aqueles que procuram superar, como denomina Skidmore em seu livro, o “saber convencional”. Investidos de dados e análises sociológicas cada vez mais sofisticadas, uma plêiade de cientistas sociais brasileiros e norte-americanos procuram desmistificar o “mito freyriano”. De algum modo, estaríamos diante de uma rede que associaria agências nacionais e internacionais de fomento a pesquisa, universidade e movimento negro na denúncia contra o racismo disfarçado. Sem dúvida, em termos acadêmicos, são visíveis a ampliação do número de teses, pesquisas e dos espaços institucionais.

Manter-se no paraíso ou descer ao inferno. Talvez este seja um falso dilema. As interpretações distintas de Benzaquen e Skidmore, sugeridas na minha análise, apontam para o desafio da hora presente da pertinência e/ou viabilidade de politizar-se a questão étnica no Brasil, inspirada ou não no exemplo norte-americano.


Resenhista

Marcos Chor Maio – Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz.


Referências desta Resenha

ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz: casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. SKIDMORE, Thomas E. O Brasil visto de fora. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. Resenha de: MAIO, Marcos Chor. O dilema entre o ‘Paraíso’ e o ‘Inferno’ tropical. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.2, n.1, mar./jun. 1995. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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