Guerra do Contestado / História em Revista / 2014
Rememorar a Guerra do Contestado é um dever, um compromisso ético e político com aqueles que morreram. Esse compromisso não se restringe à memória dos mortos. Ele está vinculado ao desejo de conferir visibilidade a situação dos remanescentes do Contestado na atualidade.
O movimento do Contestado foi duramente reprimido. A violência contra os sujeitos que atuaram nessa experiência histórica complexa e ousada, foi tanto física quanto simbólica. Ocorreu no campo de batalha, mas também nas trincheiras do discurso e da memória.
Movidos pelos lemas de progresso e esclarecimento, instituições políticas e militares moveram seu arsenal bélico contra homens, mulheres e crianças que ousaram colocar em prática um mundo novo. Neste, seriam abolidas a dominação dos coronéis, da igreja oficial e dos adversários de cristo e dos santos. Findaria também a exploração econômica personificada, na região, pelas empresas internacionais Brazil Railway Company e sua subsidiária Southern Brazil Lumberand Colonization Company. A organização de comunidades santas avessas ao propalado progresso era algo ousado demais para ser aceito. A reprimenda não tardou. No primeiro ato o governo catarinense enviou forças policiais contra José Maria e seus seguidos que estavam reunidos em Curitibanos. No segundo ato (outubro de 1912), tropas da força policial paranaense atacaram o mesmo grupo nos campos do Irani. Resultado: dezenas de mortos e feridos. Entre eles José Maria. No terceiro ato os habitantes do planalto catarinense se reuniram em Taquarussú para aguardar o retorno dos monges, dos santos e de todos os mortos. Seguiram-se novos ataques militares orquestrados pelos governantes em conluio com os coronéis locais. No quarto ato forças bélicas federais foram organizadas para destruir as cidades santas que se alastravam como barril de pólvora pelo planalto catarinense. Um dos quadros mais dramáticos dessa tragédia foi a organização de uma verdadeira campanha de guerra contra populações brasileiras. Um terço do efetivo do exército foi mobilizado para a região. O desfecho foi a destruição de milhares de casas, pessoas presas e assassinadas. Tudo em nome da ordem, da justiça e do progresso. Com essas estratégias os coronéis locais reforçaram sua liderança, as empresas internacionais foram protegidas e as elites brasileiras celebraram o combate ao malfadado fanatismo que imperava nos sertões brasileiros.
Passada a luta armada, intensificou-se a batalha de desqualificação do movimento e dos sujeitos que nele atuaram. Fanáticos, beligerantes, bárbaros, ignorantes, ingênuos, vítimas, desordeiros, bandidos. São esses os qualificativos erguidos na vasta produção memorial sobre o Contestado. Esses adjetivos compõem um cortejo triunfal que, sob a máscara da imparcialidade, mantém uma guerra cruel contra os rebeldes do Contestado. Essa guerra desqualifica a experiência passada, mas também destitui de autoridade todo e qualquer movimento que se organize em termos semelhantes ao do Contestado na atualidade. Trata-se, portanto, de uma guerra contra o sonho de mudança, contra a experiência de luta, contra a possibilidade de um mundo novo. Nesse sentido, uma batalha atemporal que lança mão de todos os instrumentos disponíveis.
Contra essa iniciativa, algumas vozes se ergueram. Pesquisadores identificados com a causa sertaneja tem revisitado os arquivos, revisado a história, criticado a memória dos vencedores. O dossiê que ora apresentamos, contempla, em sua composição, artigosdesses novos sujeitos. Podemos dizer que eles fazem parte da romaria de pesquisadores contrários ao cortejo dos vencedores. São descendentes de intelectuais identificados com a causa dos sertanejos do Contestado que remonta aosinovadores trabalhos publicados entre as décadas de 60 e 70 do século XX por Maurício Vinhas de Queiroz e por Duglas Teixeira Monteiro.
É preciso salientar que a proposta desse dossiê está relacionada às iniciativas promovidas pelo grupo de pesquisa certificado pelo CNPq intitulado Movimento do Contestado. Trata-se de uma rede de pesquisadores de diversas instituições (UFPEL, UFSC, UDESC, UFFS) que desde 2012 tem organizado seminários, promovido debates na imprensa e na academia e incentivado a pesquisa e publicação sobre o Contestado.
Contra o cortejo triunfal que teima em desqualificar a memória dos fiéis de João Maria, acreditamos congregar uma romaria de pesquisadores identificados com os mortos do Contestado, mas também com aqueles que ainda hoje sofrem as agruras da violência movida contra as populações pobres do interior do país. Talvez nosso cortejo pareça pequeno e insignificante na atualidade, mas ele cresce, a cada ano, em número de pessoas, de publicações e de iniciativas acadêmicas. Temos esperança que esse grupo consiga vencer a batalha pela memória do conflito e, com isso, reverter a interpretação que desqualifica as experiências de luta do passado. Quem sabe, dessa forma, conseguiremos repensar não só o que passou, mas também abrir nossas cabeças para refletir sobre o tempo presente, as lutas presente, o mundo presente. O Contestado é um convite à reflexão ao universo místico, mas também político e utópico.
Boa leitura!
[Guerra do Contestado]. História em Revista. Pelotas, v.20, 2014. Acessar publicação original [DR]