O escritor judeu alemão Winfried Georg Maximilian Sebald, mais conhecido no Brasil como W.G. Sebald, aborda neste livro duas questões extremamente polêmicas, que se entrelaçam: a ausência do tema dos bombardeios das cidades alemãs na literatura alemã do pós-guerra e a brutalidade e o horror desses ataques (cuja consequência foi a dificuldade dos escritores em lidar com a história recente de seu próprio país).
O livro é composto por dois textos, antecedidos de uma breve introdução. Primeiro, temos as conferências que “não estão publicadas exatamente na forma em que foram proferidas na Universidade de Zurique no final do outono de 1997” (2011, p. 7). Na sequência, temos a um artigo sobre o escritor Alfred Andersch, por meio do qual ele pretende demonstrar como a literatura alemã foi influenciada de forma perniciosa pela atitude dos escritores que optaram por continuar no país. Eles teriam considerado como mais importante “a redefinição da ideia que tinham de si próprios depois de 1945” (Ibid., p. 8) e não “a apresentação das relações reais que os envolviam” (Idem), o que os levou a ignorar a História e, consequentemente, a tragédia que viveram.
A primeira parte das conferências aborda a destruição e mortandade promovida pelos bombardeios, a motivação dos bombardeios e suas consequências. Se, comumente, os números são utilizados para se demonstrar a brutalidade dos alemães durante a guerra, Sebald utiliza o mesmo recurso para ressaltar a violência dos Aliados contra eles. Aborda somente os bombardeios perpetrados pela Royal Air Force, citando “400 mil voos, 1 milhão de toneladas de bombas; (…), em torno de 600 mil vítimas civis; (…) 3,5 milhões de residências foram destruídas; (…) 7,5 milhões de desabrigados (…)” (Ibid. p. 13). Para ele, foi uma verdadeira “ação de aniquilamento” promovida contra os alemães e polemiza, ao dizer que tal ação foi “até então sem par na história” (Ibid., p. 14). Acompanhando o texto e, em diferentes momentos do livro, encontramos a utilização de fotografias, algo recorrente em seus livros.
Sua tese, mesmo sendo polêmica, deve ser vista dentro de uma característica essencial de sua obra: a luta contra a falsificação e o esquecimento da História. Sua intenção foi demonstrar que os alemães também foram vítimas e que esse fato não pode ser esquecido, assim como as atrocidades dos nazistas também não podem ser igualmente esquecidas. O aniquilamento dos alemães e o Holocausto – tema sempre presente em sua obra, mesmo que somente na forma um tanto oblíqua pela qual sempre tratou o assunto –, devem ser vistos como diferentes faces da grande tragédia que foi a 2ª Guerra Mundial. E como a sociedade alemã trabalhou essa questão na construção de uma memória social? O processo de ruptura com o passado ocorre no momento de reconstrução. Para Sebald, “a reconstrução alemã equivaleu, após as devastações causadas pelos inimigos de guerra, a uma segunda aniquilação, realizada em fases sucessivas, de sua própria história anterior” (2011, p. 16).
A partir dessa constatação, desenvolve a ideia de que a população foi levada ao silêncio sobre tudo que enfrentou (a escassez de testemunhos alemães daquele período seria uma prova disso). Paradoxalmente, esse fato negativo tem um caráter positivo ao se apresentar, “por assim dizer, como o primeiro estágio de uma reconstrução bem-sucedida” (Idem). Ao tratar da presença do tema dentro da literatura, comenta como “os poucos relatos redigidos em língua alemã provêm de antigos exilados ou outros autores periféricos, como Max Frisch” (Ibid., p. 18).
A partir desse diagnóstico, condena duramente o silêncio dos escritores que continuaram no país e, muitas vezes, criticaram os que optaram pelo exílio: “Os que permaneceram no país – e, como Walter von Molo e Frank Thiess na malfadada controvérsia sobre Thomas Mann, se jactavam de ter persistido na pátria na hora da desgraça, (…) se abstiveram de qualquer comentário a respeito do processo e do resultado da destruição (…)” (Idem).
Também comenta como a literatura do pós-guerra, surgida a partir de 1947, não abordou a questão. Com exceção de alguns poucos romancistas cujas obras serão comentadas na segunda parte, principalmente o “romance de Heinrich Böll O anjo silencioso” (Ibid., p. 19), onde o assunto foi melhor abordado, apesar de suas limitações.
A seguir, discute a legitimação dos bombardeios e a falta de protesto dos alemães contra esses ataques (condenados até por alguns ingleses), examinando como surgiu a ideia dos bombardeios. Defende a tese de que “a maioria das fontes sobre a destruição das cidades alemãs é de uma cegueira extraordinária para a experiência vivida, fruto de uma perspectiva extremamente estreita, parcial ou excêntrica” (Ibid., p. 26, 27). Para demonstrá-la, examina a primeira reportagem ao vivo de um ataque a Berlim; examina, também, alguns testemunhos de ataques e de como não se pode ver os relatos dos sobreviventes como algo digno de confiança.
O estudo da chamada “Operação Gomorrha”, com o qual conclui a primeira parte, serve para demonstrar suas teses, reforçadas pela afirmação de que “apesar da censura oficial que impedia qualquer informação mais precisa, não era impossível se inteirar do fim horroroso das cidades alemãs” (Ibid., p. 34). Dentro desse ponto de vista, a alegação de que os fatos não eram conhecidos não pode ser utilizada como justificativa dessa ausência.
A segunda parte começa com uma pergunta: “Como deveria ter começado uma história natural da destruição?” (Ibid., p. 34). Inicia com um exame do romance de Böll – descrevendo os deslocamentos dos refugiados que, segundo Böll, originaram o hábito de viajar dos alemães; comenta como a ausência das descrições das infestações de vidas parasitárias (ratos, moscas, etc.) “explica-se pela imposição implícita de um tabu bastante compreensível quando se pensa que os alemães, que se propuseram à total limpeza e higienização da Europa” (Ibid., p. 38), examinando as descrições do autor. Descreve a vida das pessoas naquela situação, seus problemas e dificuldades contrapondo algumas descrições de Victor Gollancz com a obra de Böll. Comenta “o relato de Kluge sobre a destruição de Halberstadt” (Ibid., p. 43) para discutir “o papel desempenhado pela música na evolução e na derrocada do Reich alemão” (Ibid., p. 44), seguido de um breve comentário do Doutor Fausto de Thomas Mann.
O restante dessa parte é um longo comentário crítico no qual aponta os defeitos e limitações das obras de Hermann Kasack, Hans Erich Nossack, Peter de Mendelssohn, Arno Schmidt, Hubert Fichte e Alexander Kluge. É preciso destacar que, ao tratar de Mendelssohn, seus comentários estão acompanhados de algumas associações do livro com os roteiros que “Thea von Harbou escreveu para Fritz Lang, mais precisamente, do script para a megaprodução Metrópolis” (Ibid., p. 54).
A terceira parte é um tipo de postscriptum das conferências comentando as reações, as cartas recebidas e o fato de que elas confirmavam suas afirmações sobre a ausência do assunto nos escritores. Além disso, “o pouco que nos foi transmitido pela literatura não guarda nenhuma correspondência, nem em termos quantitativos nem qualitativos, com as experiências coletivas extremas daquele tempo” (Idem). Problema encontrado também na historiografia onde há apenas um texto, de Jörg Friedrich, e que padece das mesmas limitações. Em seguida, faz uma longa digressão – com descrições de alguns episódios de sua vida nos quais sua “trajetória de vida se cruza com a história da guerra aérea” (Ibid., p. 73). Esses episódios o levaram a se dedicar a investigar o silêncio e/ou a impossibilidade dos escritores alemães abordarem o assunto.
Em seguida, inicia a discussão de alguns textos que haviam sido citados, em algumas das cartas, ou enviados, como prova de que haviam escrito sobre o assunto, ao contrário do que ele havia afirmado, apontando suas limitações. Apenas duas menções são dignas de elogio. A primeira se refere a Hans Dieter Schafer, como podemos ver no comentário a um artigo que considerou “um dos trabalhos mais importantes a respeito da literatura alemã do pós-guerra e, logo após a sua publicação, deveria ter servido para uma revisão da ciência da literatura no que tange à sua posição diante dos supostos conteúdos de verdade de muitas obras surgidas entre 1945 e 1960” (Ibid., p. 82), mas que lamentou por ter sido ignorado, e pelas referências a um romance que não chegou a escrever. O outro se refere ao livro Berlin im Zweiten Weltkrieg, comentando o capítulo que contém descrições da devastação de um jardim zoológico (que não teriam sido censurados por abordarem o sofrimento de animais e não de seres humanos). Passa, então, a comentar criticamente alguns livros de que veio a tomar conhecimento posteriormente. Ele os classificou como pertencendo a “categoria das obras desaparecidas” (pelo fato de que não voltaram a ser publicados). Apesar das críticas, eles apresentam alguns elementos positivos (uma das causas do “desaparecimento” dessas obras). Por fim, termina com um extenso comentário de uma carta onde estão presentes elementos tipicamente nazistas. Nela, defende a tese de que os judeus planejaram “alijar os alemães de seu legado e origem, destruindo suas cidades e preparando assim a invasão cultural e a americanização generalizada que ocorreram de fato no pós-guerra”, por meio da guerra aérea (Ibid., p. 89). Faz uma interessante comparação entre a visão do autor sobre os judeus e o personagem Dr. Mabuse, do filme de Fritz Lang que “paradigma da xenofobia que grassava entre os alemães desde o fim do século XIX” (Ibid., p. 92).
O artigo O escritor Alfred Andersch (Ibid., p. 97-124), com o qual encerra o livro é uma análise da vida e obra do escritor no qual revela um homem vaidoso e pretencioso (com uma obra onde se retratou de forma a omitir, e distorcer, fatos que mostrariam sua adequação ao regime nazista). Faz uma violenta crítica ao casamento com uma judia, aparentemente por dinheiro, e seu posterior divórcio para que tal casamento não fosse um obstáculo a sua carreira de escritor, e a outras atitudes que revelam as contradições do escritor. O apresenta como o autor de uma obra cuja qualidade literária estava muito aquém de suas altas pretensões, que é um exemplo dos escritores que Sebald havia condenado anteriormente.
Podemos então dizer que a obra de Sebald nos permite lançar um olhar sobre os traumas que a guerra causou a sociedade alemã e as marcas que deixou na literatura pós-guerra. Além disso, nos permite ter contato com um segmento da literatura alemã ainda pouco conhecido no Brasil.
Rodrigo Conçole Lage – Graduado em História (UNIFSJ), especialização em História Militar (UNISUL), em andamento. E-mail: rodrigo.lage@yahoo.com.br
SEBALD, W. G. Guerra aérea e literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: LAGE, Rodrigo Conçole. A presença da guerra na literatura e na memória da Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial. Escritas. Palmas, v.6, n.2, p. 244-248, 2014. Acessar publicação original [DR]
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