Gritos de papel: las cartas de súplica del exilio español (1936-1945) | Guardalupe Adámez Castro
A obra é resultado da tese de doutorado defendida na Universidade de Alcalá de Henares/Espanha, sendo a autora, Guadalupe Adámez Castro, integrante do Seminario Interdisciplinar de estudos sobre Cultura Escrita (SIECE) e, do Grupo de Investigação Lectura, Escritura, Alfabetización (LEA)1. Orientado com um enfoque interdisciplinar, que parte da metodologia da História Social da Cultura Escrita, o material analisa as cartas de súplicas durante o período do exílio espanhol como um documento vivo, baseando-se na dimensão social e cultural desta prática. Organizada em cinco capítulos, prólogo e epílogo, a publicação objetiva dar visibilidade a uma parte da história particular dos refugiados, assim como compreender as relações que esses mantiveram com a escrita durante a experiência de retirada forçada para outro país.
Inicialmente, a autora aborda as diferentes fases do exílio espanhol, sendo a primeira ocorrida entre os meses de agosto e setembro de 1936, resultante da derrota do exército republicano na campanha de Guipúzcoa. Já o ano de 1939 marca o momento de maior êxodo, onde cerca de quinhentos mil espanhóis se deslocam para a França e para o norte de África. Outras levas de refugiados, nas décadas de 1940 e 1950, assim como as dificuldades de regresso, configuram o período longa duração do exílio, sendo que, em muitos casos, o retorno ocorreu somente com o decreto-lei 10/1969 2. Outros, voltaram ao País somente após a morte de Franco em 1975 e, alguns, jamais retornaram à sua terra natal.
O caráter assistencial aos exilados esteve vinculado, principalmente, a três organismos financiados pelo Governo Republicano: Servicio de Evacuación a los Republicanos Españoles (SERE), Comité Técnico de Ayuda a los Republicanos Españoles (CTARE-México) e, a Junta de Ayuda a los Republicanos Españoles (JARE). A acolhida inesperada de espanhóis em campos de internamento franceses tinha como objetivo isolar temporariamente indivíduos considerados suspeitos, realizando um levantamento dos ingressantes. Desse modo, uma das práticas desses organismos consistiu na elaboração de fichas cadastrais, que identificou um cenário heterogêneo dos exilados, principalmente, pelo local de origem, profissão, nível de estudo e procedência social.
Observada essa diversidade quanto ao nível de formação dos exilados, desenvolveu-se a chamada “cultura das arenas”, que consistia em lições/aulas para adquirir ou completar a formação, assim como a confecção de periódicos, boletins, escritas epistolares ou autobiográficas. As atividades culturais e educativas realizadas no campo eram variadas, tais como: boletins, doação de materiais, escrita da primeira carta de suas vidas e a alfabetização. Desse modo, a escrita íntima em diários e/ou correspondências durante o período de reclusão e exílio consistiu em um exercício fundamental para a construção da história e memória desse grupo, onde a recepção ou envio de uma correspondência tornou-se um dos maiores acontecimentos que tinham dentro dos centros de internamento.
As práticas de censura foram transgredidas através do uso de mensagens ocultas e/ou criptografadas – onde somente o remetente e o destinatário entendiam –, consistindo em uma parcela aparentemente invisível nesse intercâmbio de palavras. O trabalho desenvolvido pelos correios e voluntários, como os serviços prestados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, serviram de mediadores de notícias, sendo que a escrita epistolar foi um dos elementos fundamentais para manter a unidade familiar, merecendo destaque as orientações dos homens e pais de como as mulheres e filhos deveriam conduzir a vida na ausência da figura masculina. Nessa perspectiva, a autora destaca a prática da escrita como parte da vida cotidiana da gente comum, sobretudo, em momentos de crise. Em relação aos campos franceses, também são descritas as cinco formas oferecidas pelo governo para os espanhóis saírem desses lugares e reemigrar: primeiro, a repatriação; segundo, a emigração a outro país; terceiro, obtenção de um contrato de trabalho fora dos campos, situação que apresentava menores possibilidades; quarto, o alistamento na Legião Estrangeira, para lutar na II Guerra Mundial; e, por fim, integrar as companhias de trabalhadores que começaram a surgir diante da necessidade de mão de obra.
Finalizando o primeiro capítulo, a autora destaca o continente americano como o grande receptor dos exilados espanhóis, sobretudo, em países como México, República Dominicana, Porto Rico, Cuba, Chile e Argentina. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o reconhecimento do governo de Franco na Espanha, o exílio, supostamente temporário, passou a ser permanente, modificando a realidade de milhares de exilados e forçando-os a incorporarem uma nova ou, uma segunda pátria.
O segundo capítulo inicia com o complexo universo peticionário do exílio, sendo que as cartas possibilitaram aos exilados comunicar-se com diferentes organismos de ajuda espanhóis e internacionais, como as instituições dependentes do governo republicano, as delegações de ajuda de partidos políticos e sindicatos, os consulados/ embaixadas e as organizações assistenciais. O auxílio promovido pelo governo republicano era diferenciado, assim como as verbas destinadas aos partidos e sindicatos para imigração ao México, sendo que a orientação política e filiação aos partidos e sindicatos influenciou de forma decisiva a seleção de refugiados.
O fundo selecionado para análise compreende o período de 24 de fevereiro de 1937 até 20 de dezembro de 1938, sendo que a busca por familiares desaparecidos consistiu no principal mote da escritura. Representando a diversidade em relação ao nível de alfabetização dos refugiados, assim como uma sociedade hierarquizada, era recorrente o uso de manuais epistolares como suporte para a escrita das cartas, com conselhos para a redação de súplicas e petições. Essa prática, segundo a autora, configurou o “ato de aprender a pedir”, ou seja, o uso de uma estratégia escriturária que os exilados aprenderam em manuais e, incorporaram como recurso de apelo, diante da distância e do isolamento ao qual se encontravam.
Adentrando no universo dessas escritas, é possível observar, também, a relação desigual entre o remetente e o destinatário, sendo um desafio ainda maior para o/a escritor/a que não estava familiarizado com as letras e necessitava dirigir-se a uma autoridade. Desse modo, ao analisar a estrutura da súplica, conclui-se que quanto mais inexperiente o/a escritor/a, mais seguiam o modelo dos manuais. Outra questão assinalada a partir da análise deste material consiste na burocratização do sistema de assistência, sendo visível com base no preenchimento fichas, documentos e a elaboração de censos, considerados imprescindíveis para a localização de pessoas desaparecidas que estavam sendo buscadas pelos seus familiares. Ainda, é possível identificar as recomendações quanto ao suporte material, como a variedade de folhas, cor e tamanho3.
No âmbito internacional, se contava com as organizações de auxílio de caráter humanitário – sem vinculação com o governo – e, também, as embaixadas e os consulados dos países que decidiram ajudar a causa republicana, com especial destaque para a embaixada mexicana, em Paris. Com base nas fichas de identificação, o quesito relacionado à profissão dos refugiados também foi um critério fundamental para o processo seletivo, como por exemplo, o México, que dava preferência para a recepção de trabalhadores rurais em detrimento de outras profissões.
Nessa conjuntura, o ato de escrever e suplicar era visualizado como a única forma de obter ajuda para a saída dos campos e emigração para outros lugares, sendo uma espécie de chama que alimentava o espírito dos refugiados na espera pela possibilidade de mudança. Segundo a autora, a comunidade epistolar esteve unida pela necessidade e pela distância, tendo em vista que a perda territorial significou a necessidade de manter a ligação entre o Estado e o indivíduo, um programa político que teria que lutar para, de alguma maneira, manter seus cidadãos, sobretudo, através da escrita.
No quarto capítulo é apresentado a estrutura do Sindicato Unión General de Trabajadores (UGT) e suas bifurcações internas, permitindo que as petições chegassem à uma França debilitada. O maior número desses registros era para que a UGT intermediasse, junto com a SERE e a organização política/sindical ao qual o exilado pertencia, o processo de imigração, sendo que o auxílio aos refugiados estava destinado tanto àqueles que estavam nos campos, como aos que tentavam sair da Espanha. A emigração esteve vinculada para além das questões geográficas, pois era considerada um ato com critérios essencialmente políticos. Assim, a luta antifascista não terminava nos campos franceses, nem ao cruzar o Atlântico, persistia no ideário dos refugiados o reestabelecimento do governo republicano e o retorno para a casa.
Analisando as cartas dirigidas aos sindicatos e partidos é possível a identificação de pedidos para a remediação de problemas cotidianos e/ou uma solução definitiva para a sua situação, ou seja, a emigração. Já, no caso das escritas de autobiografias, serviam para conhecimento sobre a participação dos refugiados junto ao Partido Republicano, assim como a sua relação com o sindicato, sendo perceptíveis nos relatos de vida as capacidades gráficas e linguísticas diferenciadas. Considerando a análise discursiva da história de vida como argumento principal, a autora assinala a construção de um perfil de militante ativo, como membros de uma mesma comunidade em luta por um objeto comum. É recorrente a presença da narrativa de sofrimento e de esforços, mesmo nas escritas que apresentam uma escassa competência alfabética, sendo que o desejo principal consistia em estabelecer conexões entre o remetente e o receptor das cartas. Desse modo, podemos visualizar com base nessas escritas, a formação de uma trama discursiva em torno da recompensa pela afiliação política, assim expressas pelas lutas e os sacrifícios que entrelaçam entre as histórias de vida e as petições.
No quinto e último capítulo são abordadas as solicitações feitas ao Comité Técnico de Ayuda a los Republicanos Españoles (CTARE), destacando o protagonismo do México na acolhida de milhares de espanhóis. A organização de uma vida em uma segunda pátria esteve a cargo do presidente Cárdenas e atrelada ao ato de solidariedade com a chegada dos refugiados, oferecendo uma estrutura com refeitórios e albergues a cargo do CTARE. O aprofundamento analítico da súplica através dos procedimentos administrativos e a sua conservação apresenta uma constatação consistente, na perspectiva de que a palavra foi a melhor arma de luta para os exilados, ou seja, a súplica compreendida como um “documento vivo” (CASTRO, 2017, p. 157).
Adentrando nas questões relacionadas aos rastros de leituras ou marcas dos processos administrativos, são identificados três tipos: primeiro, os selos de registro, de seção ou de outras instituições; segundo, os sublinhados, que apesar de desconhecimento de autoria – se dos próprios autores ou dos funcionários do CTARE – assinalam os dados mais relevantes da petição, como o nome e o motivo; e, terceiro, as anotações escritas com breves comentários colocadas de maneira aleatória do escrito, sendo muitos na margem superior ou inferior, direita ou esquerda. Esses vestígios nos permitem compreender que a estrutura do arquivo da CTRA esteve além do registro burocrático, indo ao encontro de mecanismos de controle do passado, presente e futuro dos refugiados. Era do interesse desse organismo conhecer a identidade dos refugiados, com base nos dados pessoais de atuação durante a guerra, contingente familiar e a emigração. O citado comitê, delegado do SERE, desempenhou um papel paternalista e de controle através das fichas elaboradas, que constituíram o arquivo como parte da memória do exílio espanhol.
Com base nas cartas do exílio espanhol, os testemunhos apresentam as experiências de distanciamento, os problemas e as necessidades pelos quais os refugiados conviveram diariamente, assim como as inquietações e as histórias de vida que culminaram em uma comunidade articulada por meio da prática de escrita. Aproximando-se das reflexões do historiador Marc Bloch (2006) e do filósofo Paul Ricouer (2003), de que somente é possível conhecer o passado valendo-se daquilo que foi conservado e, da importância de sua transformação como documento para uso dos historiadores, a autora conduz o leitor por um depósito documental multifacetado do exílio espanhol no México.
Cada súplica individual transfigura-se em uma representação coletiva que as autoridades republicanas do exílio conservaram do passado e, projetaram sobre o futuro deste grupo. Trazendo esta pesquisa para outros contextos, é um significativo contributo, por exemplo, para pensarmos a escrita epistolar de outros grupos de exilados e prisioneiros, assim como a história dos manuais, os suportes materiais, os espaços de aprendizagens através da escrita de boletins e jornais. Por fim, através de sua perspectiva interdisciplinar, entre a História e a Literatura Epistolar, a autora nos conduz por uma análise baseada na cultura escrita e na história social, dando visibilidade aos sujeitos que externalizaram as suas angústias pessoais e familiares permeadas pelas questões de caráter político.
Notas
1 A tese ganhou o Primeiro Prêmio Nacional de tese doutoral sobre movimentos migratórios no mundo contemporâneo, concedido conjuntamente pela Direción General de Migraciones del Ministerio de Empleo y Seguridad e o Centro de Estudios de Migraciones y Exilios de la Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED).
2 O decreto-lei 10/1969, de 31 de março, declara a prescrição de todos os delitos cometidos antes de 01 de abril de 1939. Em seu primeiro artigo, coloca que: “Esta prescripción, por ministerio de la Ley, no requiere ser judicialmente declarada y, en consecuencia, surtirá efecto respecto de toda clase de delitos, cualesquiera que sean sus autores, su gravedad o sus consecuencias, con independencia de su calificación y penas presuntas, y sin tener en cuenta las reglas que los Códigos vigentes establecen sobre cómputo, interrupción y reanudación de los plazos de prescripción del delito”. Disponível em: https://www.boe.es/diario_boe/txt.php?id=BOE-A-1969-392. Acesso em: 19 abr. 2019.
3 A autora elabora uma lista com 20 manuais epistolares, entre 1849 e 1948, anexado ao final do terceiro capítulo (p.101).
Referências
BLOCH, Marc. Apología para la historia o el oficio del historiador. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 2006.
CASTRO, Guadalupe Adámez. Gritos de Papel: las cartas de súplicas del exílio español (1936-1945). Comares História: Granada, 2017. https://doi.org/10.5209/chco.60339
RICOUER, Paul. La memoria, la historia, el olvido. Madrid: Editorial Trotta, 2003.
Resenhista
Tatiane de Freitas Ermel – Pesquisadora Assistente na Universidad Complutense de Madrid, Espanha. Doutora em Educação pela Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil. Pesquisadora na área de História da Educação, especialmente as temáticas: espaços educativos; arquitetura escolar e circulação internacional das ideias pedagógicas. https://orcid.org/0000-0003-2002-5101 E-mail: tatiane.ermel@gmail.com
Referências desta Resenha
CASTRO, Guardalupe Adámez. Gritos de papel: las cartas de súplica del exilio español (1936-1945). Comares: Granada, 2017. Resenha de: ERMEL, Tatiane de Freitas. Universo peticionário do exílio espanhol: as cartas de súplicas na perspectiva da História Social e da Cultura Escrita. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 45, n. 2, p. 174-177, maio/ago. 2019. Acessar publicação original [DR]