Lançado em 2018, pela Editora Appris, o livro Gritam os muros: pichações e ditadura civil-militar no Brasil, do historiador Thiago Nunes Soares, se propõe a apresentar as pichações produzidas nesse período como um dos instrumentos de resistência utilizados pelos militantes das esquerdas no país. Temática ainda pouco discutida dentro da militância nos anos de chumbo, as pichações surgiram como um canal de mobilização e arregimentação política, sendo uma das formas de atuação da esquerda jovem do país na luta pela democracia e direito ao voto. A obra de Soares (2018) traz uma importante contribuição às historiografias local e nacional sobre o tema e o período.
O autor utilizou uma vasta documentação para desenvolver sua análise. Trabalhou com dossiês dos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS- PE), com periódicos, tanto da grande imprensa quanto dos veículos alternativos, além de entrevistas de história oral. Nesse sentido, as memórias foram analisadas como um mosaico para a composição da sua pesquisa, cruzando-as com outras fontes, problematizando-as e levando em consideração as suas especificidades. Assim, foi possível tecer um panorama elucidativo acerca das experiências políticas dos autores e autoras de pichações e dos embates em torno das lutas em prol das liberdades democráticas. Dessa forma, Soares (2018) analisa vestígios produzidos de forma clandestina nos muros da cidade, de 1979 a 1985, em um momento em que os seus autores eram alvo de intensa vigilância e repressão policial.
Há um discurso jurídico, político e policial que desqualifica a prática, já que se insere em um período de censura e de cerceamento da liberdade de expressão. O objetivo do autor é refletir historicamente sobre as pichações na cidade do Recife nas décadas de 1970 e 1980, revelando as tensões múltiplas, conflitos e embates políticos. Foram destaque as seguintes campanhas: as lutas pela aprovação da Lei da Anistia, em 1979, as disputas políticas e eleitorais de 1982 e a mobilização da sociedade para reivindicar o direito de escolher diretamente o presidente da República – episódio que ficou conhecido como a campanha das Diretas Já (1983-1984). Soares (2018) tanto propõe quanto responde os seguintes questionamentos: como se pichava durante esse período? O que era registrado nos muros da cidade? Quais eram os principais autores dessas atividades? Como as pichações foram vigiadas, censuradas e reprimidas pela polícia militar? Para tanto, o autor realizou uma análise sobre as pichações de cunho político produzidas, em sua maioria, por pessoas vinculadas a algum partido político e/ou organização social. O livro é resultado da dissertação de mestrado do historiador e é fundamentado em sólido trabalho documental, trazendo uma metodologia baseada na operação historiográfica de Michel de Certeau (1982), em que o autor relata todo o processo de seleção, agrupamento e transformação da documentação. Além disso, percebemos como os diversos tipos de fontes utilizadas se relacionam com a historiografia para compor a narrativa do trabalho. Inclusive, detalhando os arquivos, os acervos, contextualizando e problematizando o discurso das imagens, fontes orais e outros documentos. No âmbito da mesma temática, destaca-se o livro de Elizabet Remígio intitulado As brigadas muralistas e as campanhas de Arraes: arte e política na década de 1980, publicado pela Editora Cepe, em 2017. A obra é uma importante referência, pois a partir da análise de entrevistas, fotografias e jornais, historicizou como as pichações e as pinturas murais realizadas por artistas pernambucanos foram um relevante instrumento de propaganda política e eleitoral durante os anos de 1980, na cidade do Recife.
Segundo Soares (2018), durante a ditadura civil-militar brasileira, a pichação foi considerada uma ameaça à segurança nacional pelos órgãos policiais, porque essas intervenções nos muros da cidade serviram como meio de comunicação para disseminar ideias contrárias à ditadura civil-militar. Por esta razão, vários militantes que utilizaram a pichação em suas lutas de resistência foram presos e torturados, conforme o autor relata ao longo do livro. No primeiro capítulo de Gritam os muros: pichações e ditadura civil-militar no Brasil, percebemos que as pichações não foram utilizadas exclusivamente para combater o regime ditatorial, mas também para denunciar e pedir justiça em alguns casos de homicídio contra mulheres e para denunciar o descaso do governo em relação a certos setores da sociedade. Além disso, essas intervenções urbanas denunciavam a prisão de militantes, torturas, desaparecimentos, e reivindicavam o respeito aos direitos humanos, civis e sociais. O segundo capítulo mostra como as pichações foram utilizadas como uma opção estratégica, elemento de disputa e ferramenta na propaganda político-eleitoral entre os que concorriam à prefeitura da cidade do Recife – principalmente devido à visibilidade e ao baixo custo quando comparadas aos outdoors. Entretanto, essa atividade foi proibida por lei, o que gerou muitas discussões no cenário político entre os candidatos, a população e o Estado – principalmente o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nesse contexto, três meses antes das eleições de novembro de 1982, entraram em cena as Brigadas Artísticas, que também representavam um instrumento de propaganda político-eleitoral.
Nesse caso, as pichações ganharam conotação artística e eram produzidas mediante autorização dos proprietários dos imóveis. O Partido Social Democrático (PSD) criou a Brigada Lula Cardoso Ayres, enquanto o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) fundou a Brigada Portinari, demonstrando um claro entrosamento entre arte, política e linguagem eleitoral. A Brigada Lula Cardoso Ayres chegou a pintar mais de trinta painéis, espalhados por bairros do Recife e em mais outras doze cidades do estado. Os murais, agora coloridos, traziam propagandas político-eleitorais, mas ao mesmo tempo utilizavam uma linguagem artística refinada. O Partido dos Trabalhadores (PT) também se valeu das pichações em Pernambuco, demonstrando tensões entre os diversos partidos durante o período eleitoral. A luta pelas eleições diretas para a presidência do Brasil – o maior movimento cívico-popular da história republicana do Brasil – também foi mote de pichações. Gustavo Krause, então prefeito do Recife na época, inaugurou na cidade, em 1980, o “mural da crítica”, espaço reservado para concentrar e disciplinar as pichações e grafites. Dezessete murais foram pintados pela cidade e somavam uma área de 200 m², onde qualquer pessoa poderia deixar sua mensagem. No entanto, o objetivo da gestão municipal era normatizar e controlar as pichações, como se isso fosse realmente possível. No terceiro e último capítulo, o livro aborda como as pichações foram apresentadas como um problema social, sendo alvos da atuação do DOPS-PE, da legislação e das polícias. As intervenções nos muros da cidade eram proibidas legalmente e, por isso, combatidas, sendo consideradas subversivas. No entanto, os aparatos legal e coercitivo do Estado não foram suficientes para calar tantas vozes. A obra Gritam os muros: pichações e ditadura civil-militar no Brasil, cumpre bem a sua proposta: problematizar o uso de pichações durante a ditadura civil-militar brasileira – com destaque para Pernambuco –, desmistificando os discursos negativos acerca dessa prática de resistência social e analisando as memórias em torno da realização dessas escritas urbanas.
Resenhista
Greyce Falcão do Nascimento – Formada em História pela Universidade de Pernambuco (UPE), Especialista em História do Século XX pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Mestre em História pela UFPE, Doutoranda em História pela UFPE, Jornalista pelo Centro Universitário Maurício de Nassau (Uninassau). Professora da rede estadual de ensino do estado de Pernambuco. E-mail: greycefalcao@hotmail.com.
Referências desta resenha
SOARES, Thiago Nunes. Gritam os muros: pichações e ditadura civil-militar no Brasil. Curitiba: Appris, 2018. 217p. Resenha de: NASCIMENTO, Greyce Falcão. Escrita e resistência: as pichações no Brasil ditatorial História Oral, v. 22, n. 1, p. 436-439, jan./jun. 2019.
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