Não sei se para os leitores da revista é assim, mas, para este editor, ler jornal todo dia tem se tornado um hábito cada vez mais sinistro: entre um gole e outro de café, absorvo os relatos de crimes, corrupções e hipocrisias misturados ao farfalhar de celebridades efêmeras e enfadonhas; a xícara às vezes queda suspensa no ar enquanto fito atônito as cenas de desastres arrepiantes. E quando adentro o dia ensolarado e o céu azul anil de Santa Teresa, para tomar o rumo do trabalho, o faço com as pupilas contraídas por este banho maravilhoso de luz e o coração oprimido por saber quão frágil é o sentimento de ‘normalidade’ com que encaramos o dia-a-dia.
Ele pode ser espatifado, quando menos se espera, por eventos que repercutem dramaticamente em nossas vidas pessoais ou no destino das coletividades. Foi o que aconteceu em fins de 1918, quando a epidemia de influenza varreu o continente europeu, acrescentando mais cadáveres à carnificina da Primeira Guerra Mundial, para em seguida matar milhares de pessoas em outros continentes.
Nesta edição de História, Ciências, Saúde — Manguinhos, o leitor encontrará três artigos dedicados ao impacto dessa pandemia no Brasil, mais especificamente na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Considerando a pouca atenção que foi dada à ‘espanhola’ em nossa historiografia, em comparação com outros temas, não exagero ao dizer que estes artigos representam contribuição substancial ao conhecimento de uma questão que permanece muito atual.
Não pensem que estou a apregoar isso para vender o nosso ‘peixe’. Imagino que não tenham passado despercebidas a vocês, leitores, as notícias que vêm se insinuando com preocupante freqüência ao lado daquelas que tratam de guerras e crimes, tsunamis e terremotos: “OMS diz que pandemia de gripe é iminente” — lê-se na edição de O Globo de 24 de fevereiro do corrente ano (p. 32); dia antes (1.2.2005, p. 28), éramos alertados para o fato de que o “vírus da Ásia é duas vezes mais letal que o da varíola”. O jornal atribuía a cientistas da Tailândia, dos Estados Unidos e da Organização Mundial de Saúde a advertência de que “precisamos adotar medidas preventivas enquanto a tempestade está se formando”.
À época em que preparávamos a presente edição de Manguinhos, o noticiário da imprensa era tomado pelas notícias sobre a crise da saúde no Rio de Janeiro, e entre um gole e outro de café desciam com dificuldade os relatos das infâmias perpetradas por todos aqueles que não hesitam em sacrificar vidas humanas a suas mesquinhas ambições políticas.
Vocês conseguem imaginar como repercutiria hoje, amanhã ou depois em nossa cidade uma outra ‘espanhola’? Será parecida com ela a ameaça que paira sobre nossas cabeças? Que precauções têm tomado as autoridade federais, estaduais e municipais, nos intervalos entre suas maníacas aparições na mídia? Torcem por mais uma crise que dê manchetes e derrube o adversário?
Tomados por estas inquietações, fomos procurar não um medalhão boquirroto, mas um destes abnegados quadros que, em silêncio, põem o melhor de seus cérebros e sentimentos a serviço das pessoas. Além de ser esclarecedora, a conversa com a virologista Marilda Mendonça Siqueira, do Laboratório de Vírus Respiratórios e Sarampo da Fundação Oswaldo Cruz, nos coloca no bom caminho: a necessidade de conhecermos melhor o passado, de refletirmos mais sobre o presente e de agirmos sobre ele com consciência, e a confortadora certeza de que há gente boa, decente, à sombra deste sinistro estardalhaço que nos obrigam a sorver cotidianamente.
Jaime Larry Benchimol
Editor
BENCHIMOL, Jaime Larry. Carta do Editor. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.12, n.1, jan./abr. 2005. Acessar publicação original [DR].
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