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Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil | Marcelo Badaró Mattos

O ano é 2020. O cenário é assombroso. A pandemia provocada pela disseminação do Coronavírus, vírus causador da COVID-19, fez do Brasil seu epicentro, deixando a população atônita perante o crescente quantitativo de mortes e a ausência de medidas de contenção do avanço da doença. É nesse contexto que Marcelo Badaró de Mattos, professor titular do Departamento de História do Brasil, da Universidade Federal Fluminense, finaliza seu livro intitulado Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil, lançado pela Usina Editorial. Discute o processo que levou Jair Messias Bolsonaro à presidência da República Federativa do Brasil, em 2018, bem como os primeiros anos de seu governo, empreendendo uma análise crítica da situação política do país. Parte do fascismo histórico a fim de compreender a ideologia propagada pelo seu governo. À época do seu lançamento, mais de 30 mil mortes II eram contabilizadas no país, ao mesmo tempo em que o Presidente Jair Bolsonaro classificava a doença como uma gripezinha e afirmava eu não sou coveiro, frases constantemente declaradas por Bolsonaro ao ser questionado quanto a medidas mais efetivas em combate à disseminação da Covid-19.

O autor reuniu elementos históricos para compreender o fenômeno do bolsonarismo no tempo presente, tendo como fontes de pesquisa: bases de dados, institutos de pesquisa, fontes jornalísticas, livros e artigos acadêmicos. Brinda o leitor com poemas de William Blake e Bertolt Brecht, que contribuem com a reflexão sobre o tema a ser analisado. O livro, formado por três capítulos, conclusão e epílogo, conta com a apresentação de Roberto Leher, que o considera um magistral estudo que contribui com o pensar sobre os perigosos nexos entre neofascismo e autocracia burguesa.

No primeiro capítulo, denominado Fascismos, na intenção de evitar o uso do termo de forma superficial, Mattos selecionou pontos importantes para o debate que será empreendido ao longo do livro: recupera análises dos dirigentes revolucionários desenvolvidas no interior do movimento do comunismo internacional a respeito do fascismo histórico, expondo-os em ordem cronológica inversa. Inicialmente, apresenta os escritos de Leon Trotsky sobre a ascensão do nazismo na Alemanha, nos anos 1930, como resultado da combinação entre crise social profunda e ausência de um partido revolucionário para representar as massas, o que levou a pequena burguesia a se juntar ao fascismo, pois os fascistas canalizaram para si os ressentimentos dessa classe social. Assim, a pequena-burguesia, em oposição ao sistema de governo em crise e hostil à revolução proletária, se dirige à contrarrevolução burguesa, tratando-se não somente de uma crise econômica, como também, no entendimento de Trotsky, de uma crise de dominação de classe. Mesmo com o apoio da burguesia, vale ressaltar que, uma vez no poder, o nazismo e o fascismo governaram para o grande capital imperialista e não para a burguesia.

Em seguida, apresenta trechos dos textos de Clara Zetkin sobre o fascismo italiano, identificando pontos comuns com os escritos de Trotsky, como o apoio da pequena e média burguesia e o terrorismo como uma característica do fascismo. Zetkin alertou que o fascismo de Mussolini foi encarado como um fenômeno militar, sendo desconsiderado o seu caráter ideológico, e anunciou a urgente tarefa de defender os trabalhadores por meio de uma política de frente única.

Por último, Mattos discorre sobre os alertas gramscianos quanto à possibilidade de uma ditadura fascista, no início dos anos 1920, enfatizando a identificação do fascismo com uma base social e com os costumes do povo, além de propostas de soluções violentas.

O autor recorre a diversas tradições historiográficas para resgatar explicações sobre o fascismo histórico, destacando análises de autores como Robert Paxton, Fernando Rosas, Renzo de Felice, Angelo Tasca, Émile Gentile, dentre outros. Vale destacar a existência de outros fascismos que não foram enfatizados no livro, como os ocorridos na Espanha e em Portugal. Também debate o caráter da extrema-direita global, questionando o uso das categorias fascismo ou seus derivados, como neofascismos, para análise dos governos ultradireitistas. Ressalta, ainda, que não vivemos mais a época dos fascismos, embora também lhe custem caro as advertências de Polantzas quanto à possibilidade de seu ressurgimento, para quem é preciso evitar esquematismos apressados, pois existem formas híbridas nos regimes políticos.

Em concordância com Michel Löwy quanto ao termo neofascismo, Mattos considera a presença de traços fascistas, mas entende que não se trata de uma repetição do passado. Recorre, também, a autores como Traverso, que utiliza o termo “pós-fascismo”, pretendendo captar o fenômeno em transição; Lazaratto, para quem o novo fascismo está relacionado ao programa do capitalismo neoliberal, que se usa da violência contrarrevolucionária, mesmo sem ameaça de comunismo; Loff, que alerta sobre a transição para o autoritarismo; e Armando Boito Júnior, que, em sua visão, o regime vigente no Brasil é uma democracia burguesa deteriorada e em crise.

No capítulo II, A autocracia burguesa no Brasil, o autor discute as bases históricas da democracia brasileira, tendo como base a análise de Florestan Fernandes a respeito da revolução burguesa e de Gramsci sobre Estado e formas de dominação. A intenção do autor neste capítulo é compreender o que levou o desenvolvimento do neofascismo à brasileira, destacando o Golpe de 1964 e os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) como parte do seu chão histórico. Importante destacar que o desenvolvimento capitalista no país não foi associado à democracia, pois o Estado tornou-se autocrático, com isso, qualquer manifestação de trabalhadores era considerada uma ameaça à dominação burguesa, agindo sob o caráter permanentemente contrarrevolucionário.

O autor baseia-se na análise de Rui Mauro Marini, que, ao contribuir com o desenvolvimento da teoria marxista da dependência, explica que a extração de mais-valor pelo capitalismo brasileiro é uma forma de compensar as desvantagens relativas da burguesia (trocas desiguais) diante de países capitalistas imperialistas, sendo, então, necessário superexplorar o trabalhador com baixos salários. Com base nas referidas análises, Mattos entende o regime que surgiu com o Golpe de 1964, a ditadura militar, como uma peripécia da autocracia burguesa brasileira, revelando a heterogeneidade das faces do Estado autocrático brasileiro: democrática – restrita, autoritária e fascista.

Mattos também recorre à noção de hegemonia de Gramsci, construção de consenso combinado à força, associada pelo autor italiano em suas análises sobre o fascismo. Nesse sentido, aponta que consenso e coerção sempre estiveram juntos na ditadura e na pós-ditadura brasileiras – episódios frequentes no governo Bolsonaro.

Ainda no mesmo capítulo, analisa o governo do Partido dos Trabalhadores, destacando o “transformismo”, categoria usada por Gramsci para explicar a aproximação de políticos de partidos democráticos à classe política conservadora e moderada, opondo-se à massa trabalhadora, fenômeno vivenciado por partidos construídos por trabalhadores no Brasil. Pois, para o autor, o PT abre mão da mobilização popular como uma estratégia e passou a agradar o capital, a atender ao agronegócio, tendo os sindicatos como seu braço de apoio.

É no terceiro capítulo, intitulado Bolsonaro e bolsonarismo: as dimensões neofascistas e autocráticas do governo, que o autor traz o cerne da discussão: compreender o fenômeno bolsonarista no Brasil. Perpassa pela vida política de Bolsonaro, destacando a sua frequente incitação à violência, discurso que o levou à política como vereador do Rio de Janeiro, como um personagem folclórico. Embora classificado pela imprensa internacional como ultradireitista, radical de direita e/ou neofascista, Mattos afirma que “a eleição de um [político com característica] neofacista não significa, de imediato, a instalação de um regime político fascista no Brasil.” III.

Bolsonaro se apropriou das ferramentas tecnológicas e das redes sociais para conversar com seus apoiadores, fundamentando-se no discurso olavista de anti-marxismo cultural. O movimento bolsonarista defende a exploração de riquezas naturais brasileiras por grandes empresas multinacionais; o patriotismo exacerbado no slogan Brasil acima de tudo, considerado pelo autor como nacionalismo subordinado ao imperialismo, característica observada por Gramsci no nazi-fascismo; a ideologia de gênero, em que pese o conservadorismo religioso, ao mesmo tempo que o bolsonarismo se manifesta contra qualquer tipo de ação educativa sexual, de forma velada, nega aqueles indivíduos diferentes do padrão heterossexual; o movimento Escola Sem Partido, doutrinação ideológica que, em 2010, se associou ao combate da “ideologia de gênero” junto à bancada evangélica no Congresso; campanha em favor da compra, posse e porte de armas para o combate à violência; o conservadorismo do marido exemplar, cristão e casado com mulher evangélica associado ao seu discurso anticorrupção, dentre outras bandeiras. Em face de todas essas características, torna-se, então, o mito que salvará o Brasil.

Mattos ressalta que o bolsonarismo trata-se de um grupo heterogêneo, sendo composto pelos seguintes núcleos: de militares, ideológico – olavistas e fundamentalistas evangélicos – e de economistas ultraliberais. Recapitula a cena das manifestações de 2015/2016 que tinham como pauta, principalmente, o combate à corrupção, o impeachment da então presidenta Dilma e o apoio à Lava Jato, coordenadas pelas organizações Movimento Brasil Livre, Vem pra rua e Revoltados On Line.

Com base nos dados do Datafolha, Mattos comparou o perfil dos participantes das manifestações de 2015/2016 com o das eleições de 2018 e, em seguida, com o perfil dos apoiadores de Bolsonaro em 2019 e 2020. Verificou que se trata do mesmo perfil: pessoas pertencentes a setores intermediários – pequena burguesia e assalariados médios – em sua maioria, formada de pessoas brancas, homens com mais de 35 anos, alta escolaridade, predominância no sul e sudeste e que contou com o peso do voto dos evangélicos. Ao destrinchar os dados, conclui que a base social de apoio do governo Bolsonaro está localizada nos setores intermediários e significativa expressão de trabalhadores mais pobres.

O autor relaciona a crise econômica ao crescimento das mobilizações da direita. Para ele, a pequena burguesia e assalariados médios, que constituem o núcleo central da base social bolsonarista, sentem os impactos da crise e já preveem uma ameaça do proletariado. Os cidadãos de bem sentem-se ameaçados, afinal, o pobre passou a ter acesso a alguns serviços e produtos antes monopolizados por uma classe. E a adesão dos setores pauperizados da classe trabalhadora ao grupo de apoiadores de Bolsonaro? Mattos, em diálogo com Pinheiro-Machado, explica essa adesão como fruto da crise econômica de 2014 que diminuiu o poder de consumo da classe trabalhadora, causando-lhes uma crise, denominada no livro de auto-valor. Com a extrema-direita já se organizando, o grupo de seus eleitores foi ganhando adeptos com a insatisfação também desses setores com o reforço do cenário: as constantes críticas da mídia ao PT, as promessas de conforto de igrejas evangélicas e um candidato revolucionário via whatsApp.

Para o autor, um dos componentes essenciais do neofascismo é a utilização das redes virtuais pela extrema-direita, embora em campanhas como a de Obama, por exemplo, as redes sociais já estivessem presentes. As campanhas virtuais, além da disseminação de fake news e de ataques, permitem, estrategicamente, uma comunicação direta com o público. Com base nisso, o autor estabelece um vínculo entre os movimentos de massa, compostos principalmente por setores médios e que justificaram o Golpe de 2016, e a base eleitoral de Bolsonaro – combinação entre os discursos de anticorrupção, antipetismo, conservadorismo moral e religioso, misoginia, homofobia, militarismo, liberalismo econômico e violência.

Mattos afirma que, embora Bolsonaro não tenha precisado de um partido fascista clássico, apesar da mobilização via redes sociais e do apoio das Forças Armadas e de policiais, contou com um partido pequeno para se eleger. Entretanto, ao criar um partido neofascista orgânico bolsonarista – Aliança pelo Brasil – esbarrou na dificuldade de reunir em um único partido o movimento bolsonarista. Explica o autor que esse é o limite do neofascismo no quadro político brasileiro.

No epílogo, o autor apresenta suas considerações sobre a escrita do livro em meio à pandemia, inclusive, seu sonho de que finalizaria o livro com a queda do governo Bolsonaro, o que não aconteceu durante a escrita do livro, mas sim nas eleições de 2022.

A leitura do livro em questão é provocativa porque conduz o leitor a momentos históricos distintos e não lineares. Além disso, é uma leitura importante não somente para estudantes e docentes da área de História, pois dialoga com outras áreas do saber.

Por fim, o livro possibilita ao leitor a apreensão de novas formas e conteúdo do fascismo do século XXI, considerando a categoria neofascismo. A autocracia burguesa recorre ao neofascismo para garantir a contrarrevolução preventiva. Foi o que aconteceu historicamente, sendo repaginado na sociedade contemporânea. A conjuntura atual incomoda a burguesia brasileira – e, aqui, acrescenta-se o fato de que Luís Inácio Lula da Silva é o presidente eleito que assumirá o Brasil em 2023 – com isso, preventivamente, com receio de perder o seu poder, a burguesia age por meio da ampliação de aparelhos divulgadores do consenso, aliado ao uso da violência do Estado, como a tentativa de deslegitimar as eleições de 2022 e a manifestação por intervenção militar. Portanto, mesmo considerando as limitações dessa resenha, é possível concluir que Mattos alumiou o obscuro caminho traçado até a conjuntura atual, contribuindo para refletirmos sobre a que, afinal, corresponde o governo Bolsonaro.


Notas

II De acordo com o Painel Coronavírus, site do Ministério da Saúde que divulga os dados sobre a doença, até o momento foram notificados 684.000 óbitos por covid-19 no Brasil. C.f. https://covid.saude.gov.br

III MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. 1ª ed. Usina editorial: São Paulo, 2020, p. 168.


Referência

MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. 1ª ed. Usina editorial: São Paulo, 2020, 285 p.


Resenhista

Michele Morgane de Melo Mattos – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Técnica em assuntos educacionais da Universidade Federal de Sergipe.


Referências desta Resenha

MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina editorial, 2020. Resenha de: MATTOS, Michele Morgane de Melo. Afinal, a que corresponde o Governo Bolsonaro? Cadernos do Tempo Presente. São Cristóvão, v. 13, n. 02, p. 90-94, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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