Governadores Gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVIII) / Francisco C. Cosentino

Há um aspecto da carreira profissional de Cosentino que merece ser destacado logo àpartida: desde 1974 dedica-se à atividade docente, há mais de vinte anos ao ensino superior. Este dado não é irrelevante, pois nos ajuda a entender porque o autor deste livro, cujas qualidades trataremos de explicitar, não ganhou até agora a visibilidade que acreditamos merecer. Sua opção pessoal, como ele mesmo denomina, parece ter determinado que produzisse relativamente pouco em termos quantitativos, o que não deixamos de lamentar, já que seu texto não esconde sua habilidade para a investigação histórica. Para além deste livro que agora mencionamos, Cosentino contribuiu com um artigo na tão reverenciada e citada coletânea de textos intitulada Modos de Governar, publicada em 2005, e, um ano depois, com um artigo na Revista Cronos. Ao menos é o que podemos saber sobre sua obra, citada nas referências bibliográficas deste livro, uma vez que os instrumentos virtuais de busca, que usualmente fazemos uso para desvendar a trajetória das pessoas, não contribuem para sabermos algo mais.

Este livro, lançado em julho de 2009, é a sua tese de doutorado apresentada na Universidade Federal Fluminense, sob a orientação da professora Dra. Maria de Fátima Gouvêa que, infelizmente, não pode ver publicada a pesquisa de um orientando que incorpora, e dialoga constantemente, com sua perspectiva historiográfica. O objeto de investigação em causa, tal como o título anuncia, é o ofício dos governadores gerais do Estado do Brasil e suas respectivas trajetórias administrativas e sociais, dando assim continuidade, e também aprofundamento, às investigações de seus textos anteriores. Cosentino dedicou-se a analisar cinco dos governadores gerais nomeados ao longo dos séculos XVI-XVII: Tomé de Sousa, Francisco Giraldes (que não chegou a ocupar o cargo), Gaspar de Sousa, Diogo de Mendonça Furtado e Roque da Costa Barreto; três dos quais durante o período filipino.

Conforme anuncia em sua introdução, o livro está dividido em três partes. Na primeira, aborda a monarquia portuguesa no período em questão, enfatizando, sobretudo, sua natureza corporativista, jurisdicional e polissinodal. Aspectos essenciais são tratados de forma sintética e com tal clareza que por vezes somos levados a pensar que não se tratam de assuntos complexos. Preocupado em evidenciar a historicidade dos conceitos, dialoga principalmente com o que há de mais recente na historiografia luso-brasileira, mostrando o atual estado da investigação acadêmica sem deixar de mencionar, e muitas vezes criticar, interpretações anteriores sobre conceitos como absolutismo, Estado moderno e soberania. O debate historiográfico ganha destaque nestas primeiras páginas, embora deixe de lado aquele que dividiu a historiografia brasileira no que se refere à pertinência do emprego do conceito e da idéia de Antigo Regime para se analisar a realidade americana. Se assim o faz, estamos certos que não é por receio de se posicionar. Acreditamos que apenas poupou o leitor de ler mais uma vez sobre uma polêmica que, dada à dimensão que ganhou, não só na academia como nos meios midiáticos, é mais do que conhecida. Orientado por quem foi, não esconde sua filiação ao que podemos chamar “Escola do Rio de Janeiro”, que tem nos trabalhos de António Manuel Hespanha uma de suas principais referências. Cosentino analisa a América portuguesa não como um reflexo da realidade européia. Busca suas especificidades tendo, no entanto, o modelo social e político europeu como eixo analítico. Mais um ponto a seu favor.

Ainda nesta primeira parte, aplica-se a descrever o contexto que convencionamos denominar de União Ibérica, analisando a integração do Reino português ao de Castela e a repercussão deste modo castelhano de se fazer política na monarquia portuguesa após a Restauração. A nosso ver, merece referência especial o belíssimo capítulo sobre a natureza e os poderes dos governadores gerais do Estado do Brasil, não só porque aqui se evidencia a tese central do livro: “a natureza superior e régia do poder” dos mesmos, (p.101) tão clara, por exemplo, nas cerimônias de posse e nos regimentos destes governadores. O que nos entusiasmou, especialmente, foi sua preocupação com a história administrativa, discorrendo sobre pontos, como a teoria dos ofícios, que raramente merece atenção da historiografia atual, como bem notou Hespanha ainda na década de 80 ao se referir às lacunas que naquela época, mas também nesta, existem no que se refere à historia institucional.

No entanto, a partir da página 102, quando tem início a segunda parte intitulada “Carreiras e trajetórias sociais de governadores gerais do Estado do Brasil (séculos XVI e XVII)”, nosso acentuado entusiasmo foi atenuado. É certo que não desconsideramos a relevância em se fazer referência às inúmeras mercês régias conquistadas por estes cinco governadores gerais para comprovar a importância social destes indivíduos e a superioridade do cargo, provido apenas a fidalgos. Porém, a enumeração detalhada das mercês conquistadas, assim como o excesso de citações documentais e bibliográficas no corpo do texto ou em notas de rodapé, torna a leitura cansativa. Talvez, devemos dizer, esta é a parte menos original deste trabalho, e não estamos certos de que embora ajude a reforçar a importância da economia das mercês na monarquia portuguesa é a principal contribuição de sua pesquisa, como diz no último parágrafo do livro. Isto porque ultimamente proliferam estudos na área de história social que recorrem ao método da prosopografia reconstituindo  trajetórias individuais, com base em  documentação similar.

Ainda nesta segunda parte, o autor acaba por realizar uma versão comentada de seu próprio texto. Cada termo historicamente datado é referido em nota de rodapé a verbetes do dicionário de Bluteau, publicado somente no século XVIII, quando sabemos que Cosentino dedica-se à análise dos dois séculos precedentes. Estranha opção de quem, no inicio do livro, revelou suas preocupações teóricas com o uso dos conceitos na acepção dada à época. As afirmativas que apresenta no corpo do texto, mesmo quando corroboradas por transcrições de trechos da historiografia, ganham novas e longas citações bibliográficas nas notas de rodapé. Se este recurso revela um comportamento acadêmico virtuoso de não tomar para si ideias já anteriormente defendidas, bastaria citar as obras, sem necessidade de abusar das recopilações de textos que normalmente pouco acrescentam ao que encontramos na leitura de Cosentino.

Mas o livro volta a ganhar grande interesse na terceira parte, dedicada à atuação do oficio dos governadores gerais, analisada, sobretudo, a partir dos regimentos que deveriam nortear suas condutas. Aqui vemos comprovada outra ideia anunciada anteriormente: a de que os documentos normativos estavam também em consonância com as circunstâncias da época e que a monarquia, não obstante pretendesse garantir uma governação continuada, expressa através do cargo de governador geral, estava atenta à realidade americana. Por esta razão é que a estes agentes régios delegou a atribuição crescente de resolver problemas próprios de cada período, os quais poderiam ameaçar o sucesso da administração portuguesa na América. No entanto, seria preciso saber em que medida estes governadores administraram em conformidade com os regimentos especialmente produzidos para que agissem como era esperado. Seria preciso alargar o horizonte de pesquisa e analisar também a prática governativa para entender quais foram, de fato, os espaços de atuação que encontraram ou mesmo se obstáculos diversos, como o conflito de jurisdições, impossibilitaram o sucesso de seus governos. Cosentino dedica a este ponto poucas páginas, mas esta deficiência é de seu conhecimento, e não esconde as limitações que seu trabalho apresenta, ao menos neste aspecto.

De qualquer forma, os interessados em conhecer a história administrativa da América portuguesa nos séculos XVI-XVII encontram neste livro uma enorme contribuição, com informações ricas, cuidadosamente trabalhadas, às vezes, como dissemos, exaustivamente. Mas não podemos ver nisso um ponto desfavorável. Fiel a sua atividade docente, Cosentino produz uma obra que parece ser dedicada aos alunos de graduação em História, que estão começando a entender não só o contexto destes dois séculos, mas também como é pensar como historiador. E neste sentido, a franqueza intelectual do autor auxilia-os imensamente, pois a cada página acompanhamos o percurso que orientou o autor na produção deste livro, que tem uma hipótese claramente anunciada, e consistentemente comprovada quanto “à posição protagônica desempenhada por esses servidores maiores da monarquia portuguesa nessa parte da América portuguesa”, o Estado do Brasil (p.334).

Enfim, uma ótima opção a outros professores que desejam apresentar aos seus alunos um texto agradável e extremamente importante, em diversos pontos. Mas uma ótima leitura também para os acadêmicos, pois as contribuições desta obra não se limitam à forma de expor e comprovar sua tese, mas a tese em si, que contraria a interpretação de que o papel dos governadores gerais praticamente se resumia a uma dimensão simbólica. Eles não eram apenas fidalgos que encontravam nas terras americanas uma possibilidade servir ao Rei para assim aumentarem a importância de suas casas. Como mostra Cosentino, acabaram também por contribuir para a administração dos domínios da América, e com protagonismo.

Roberta Giannubilo Stumpf – Centro de História de Além-Mar. Universidade Nova de Lisboa.


COSENTINO, Francisco Carlos. Governadores Gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVIII). Ofícios, regimentos, governação e trajetórias. São Paulo/ Belo Horizonte: ANNABLUME/ FAPEMIG, 2009, 366p. Resenha de: STUMPF, Roberta Giannubilo. História histórias. Brasília, v.1, n.1, p.227-230, 2013. Acessar publicação original. [IF]

Itamar Freitas

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