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Golpe midiático-civil-militar | Juremir Machado da Silva

O ano de 2014 foi marcado por uma efeméride: os cinquenta anos do golpe que depôs o presidente João Goulart. O simbolismo da data foi responsável por uma série de eventos e publicações que debateram e refletiram a história recente do Brasil. Paralelamente aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, criada para apurar crimes contra os Direitos Humanos no Brasil, em um lapso temporal que perpassava a Ditadura Militar, muitos outros foram produzidos para refletir o período. Entre as obras que vieram à lume está “1964: Golpe midiático-civil-militar”, de Juremir Machado da Silva, que, em menos de um ano, está na sua quinta edição.

Formado em jornalismo e história pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e com mestrado e doutorado em sociologia da cultura pela Universidade René Descartes, em Paris, Juremir Machado da Silva tem uma produção de caráter interdisciplinar e alguns trabalhos caracteristicamente na área da História, como “Jango, vida e morte no exílio”, publicado em 2013. Em sua mais recente pesquisa o autor se propõe analisar o papel da mídia, mais particularmente o papel da imprensa, no contexto do 31 de março de 1964. Trata-se de uma obra que, ao analisar a atuação da mídia no golpe militar, abre uma seara de oportunidades para que novos estudos possam se debruçar sobre o tema.

O livro “1964: Golpe midiático-civil-militar” está divido em13 capítulo que, em geral, não são muito longos. Na primeira seção, a fim de justificar a relevância da obra o autor escreve que “passado meio século de tantos enganos, releituras e novas narrativas, chegou a hora da exumação dos restos mortais da imprensa em 1964”.1 Tal “exumação”, foi feita, basicamente, a partir de duas fontes: os livros de Alberto Dines “Os idos de março e a queda em abril ”, lançado em 1964 e “O golpe de 1964: a imprensa disse não”, organizado por Thereza Cesário Alvim, em 1979. A intensão da pesquisa é fazer um “trabalho de ‘desencobrimento’, de desconstrução narrativa, de revelação da ambiguidade de certos discursos e de desvelamento: fazer vir à tona o que se esconde sob a poeira das frases do passado”.2 Ao analisar “as origens do golpe” o autor afirma que a imprensa, sem diferenciar de que veículos ou articulistas está a falar, teria agido como “intelectual orgânico”, fazendo alusão ao conceito de Antônio Gramsci. Para corroborar o emprego de tal conceito, escreve: “imprensa” agiu como “comissário” daqueles que buscavam derrubar o governo João Goulart. Dessa maneira, com o objetivo de atuar para construir uma espécie de consenso perante a sociedade brasileira acerca do “perigo” que representava as tentativas de reformas defendidas por Jango, as narrativas produzidas pela imprensa alertavam, de muitas formas, que a permanência do presidente à frente do cargo levaria o Brasil para o caminho do comunismo.

Recorrendo a fatos como a atuação do Ipes – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais e do Ibad – Instituto Brasileiro de Ação Democrática – nas eleições de 1962, do que chamou de “adesão voluntária dos grandes jornais”, como Folha de São Paulo, O Globo, Correio da Manhã, O Dia, Jornal do Brasil e Tribuna da Imprensa, e de movimentos como as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, o objetivo do texto é afirmar que “o golpe foi construído em rede Nacional”. Contudo, tal afirmação é feita a partir de pontos que não foram devidamente dimensionados e problematizados de modo a produzir uma reflexão que leve o leitor para além do factual.

Na sequência, o autor faz uma brevíssima contextualização do período em que João Goulart governou o país. Com base em pesquisas realizadas pelo IBGE, retiradas do trabalho de Cássio Moreira que evidenciavam as desigualdades existentes no Brasil, e em textos de sua própria lavra, que dão conta da alta popularidade que gozava Jango à época do golpe, Juremir Machado da Silva afirma que “a mídia conseguiu produzir a falsa ideia de que Jango estava isolado e sem apoio popular”.3 Ao chegar ao ponto central de sua obra, ou seja, a análise sobre o papel da imprensa nos acontecimentos que culminaram com a chegada dos militares ao poder, o autor amplia a definição já clássica de autores como René Armand Dreifuss4 de que o golpe foi “civil e militar” e afirma que o mesmo foi “midiático-civil-militar”. Segundo Juremir Machado da Silva, “sem trabalho da imprensa não haveria legitimidade para a derrubada do presidente João Goulart”.5 Nesse sentido, a construção da legitimidade para o golpe, junto a larga parcela da sociedade brasileira, teria sido forjada em artigos e editoriais de veículos da grande imprensa brasileira, entre os quais estavam o Correio da Manhã, a Folha de São Paulo, Tribuna da Imprensa, Jornal do Brasil, Estado de Minas, Correio Brasiliense, O Globo e em revistas como O Cruzeiro.

A pavimentação do golpe teria sido feita, sobretudo, por intelectuais que atuavam junto aos jornais. Tomando a mídia impressa como uma categoria genérica, Juremir Machado da Silva, citando o trabalho de Alzira Abreu, escreve que: O contexto político da época era de grande exaltação contra o comunismo e contra a Revolução Cubana. O mundo vivia o confronto entre países ocidentais capitalistas e comunistas, o que muito contribuiu para exacerbar as posições ideológicas em conflito dentro do Brasil. O anticomunismo foi usado para difundir o medo junto à classe média e para identificar, nas reformas de base, a passagem do regime capitalista para o comunista. Os jornais, com maior ou menor ênfase, participaram da pregação anticomunista.6 Na sequência, o autor se volta para a obra Os idos de março e a queda em abril , organizada por Alberto Dines e publicada em 1964, que contém textos do próprio Dines e dos jornalistas Antonio Callado, Araújo Neto, Carlos Castelo Branco, Cláudio Mello e Souza, Eurilo Duarte, Pedro Gomes e Wilson Figueiredo.

A análise realizada não leva em conta instrumentais básico da História e, em alguns momentos, se aproxima de um julgamento. Nesse sentido, desconsiderando que os “homens” são sujeitos de seu tempo, e sem problematizar a complexa teia que, como afirma Michel de Certeau7, explica as posições de fala do sujeito relacionando-as ao lugar de onde tais falas são enunciadas, Juremir Machado da Silva procede sua interpretação sobre a atuação dos jornalistas que, segundo ele, contribuíram para legitimar o golpe de Estado perpetrado contra o presidente João Goulart, em 31 de março de 1964.

Recorrendo a longos trechos de matérias publicadas por Alberto Dines e a uma adjetivação incomum às análises historiográficas, tais como “serviçal do poder econômico”, o autor avalia a atuação do jornalista às vésperas do 31 de março e afirma que as matérias veiculas por Dines no Jornal do Brasil serviam para “deturpar” as medidas propostas por João Goulart nas chamadas Reformas de Base e, ainda, o acusa por ter saudado os militares quando o golpe se tornou realidade.

Em seguida, usando o trocadilho “Callado falou demais” tece considerações sobre o trabalho de Antonio Callado na imprensa, no contexto do golpe. Ao se reportar às matérias produzidas pelo jornalista, Juremir afirma que tudo que este fez foi desqualificar João Goulart, tanchando-o como ‘fantoche’, ‘coitado’, ‘bêbado’ sem contar as referências, feitas de modo depreciativo, à deficiência física que Jango possuía na perna esquerda.

Em tom de ressentimento, aponta a ausência, por parte de Callado, em conseguir compreender a profundidade e a amplitude das reformas propostas por João Goulart.

De forma áspera, Antônio Callado é qualificado como “‘um intelectual orgânico’ do udenismo sem consciência do estilo pusilânime que adotou e praticou até compreender que tinha aberto as portas do inferno aos brasileiros para salvá-los do pretenso diabo”.

8 Para tentar reafirmar o apoio da imprensa ao golpe, o autor de “Golpe midiáticocivil- militar” analisa a obra O golpe de 1964: a imprensa disse não, coletânea organizada por Thereza Cesário Alvim e publicada em 1979. Ao contrário do argumento que o livro se propõe sustentar, ou seja, que a imprensa negou o golpe, Juremir afirma em sua pesquisa que ‘a imprensa disse sim três vezes’ ao movimento de levou à queda de Jango.

Para tanto, investiga-se as posturas adotadas pelos jornalistas/intelectuais Carlos Heitor Cony, Antonio Callado, Carlos Drummond de Andrade, Alceu Amoroso Lima, Edmundo Moniz, José Carlos Oliveira e Márcio Moreira Alves. A intensão do autor é demonstrar que, em comum, todos vão se mostrando, passado o alívio da queda de Jango, contrários ao regime.

Ao referir-se a ‘conversão’ de Cony à condição de crítico ferrenho da ditadura, citando artigos clássicos saídos da pena mordaz do jornalista no pós-golpe, Juremir Machado da Silva tem a intensão de ressaltar que, tanto Cony, como os demais jornalistas/ intelectuais mencionados nesta parte de sua obra, disseram sim ao golpe e, em seguida, converteram-se em críticos da ditadura. Ainda no que diz respeito a Carlos Heitor Cony a análise não atribui o devido peso à postura política e intelectual dessa personagem que, trata-se, na verdade, de um intelectual liberal que manteve uma postura independente, tanto das vertentes ideológicas ligadas ao pensamento de esquerda como da extrema direita, e que pagou o preço por suas escolhas, como escreve Beatriz Kushnir no artigo “Depor as armas – a travessia de Cony, e a censura no Partidão”. 9 Quanto a ‘conversão’ dos demais jornalistas/intelectuais, falta à obra descer as profundezas do contexto e se perguntar: o que está por trás de tamanha mudança? Por que o Correio da Manhã, jornal da grande imprensa, porta-voz do golpe, se transforma tão rapidamente em bastião de oposição à ditadura? E, como se comportaram os jornalistas que, juntamente com Alberto Dines, escreveram Os idos de março e a queda em abril? Essas perguntas não foram devidamente respondidas pelo autor, embora exista uma considerável historiografia que analise a imprensa no período da ditadura militar.

À título de conclusão para o tópico que trata da adesão da imprensa, o autor escreve com ares de inquisidor: As narrativas reunidas por Thereza Cesário Alvim mais confundem do que esclarecessem. Contribuem, sem dúvida, para a glorificação daqueles que disseram sim ao golpe e não, depois de um rápido arrependimento, à ditadura, mas se esqueceram de assumir a responsabilidade pelo monstro que ajudaram a criar e jamais pediram desculpas à nação pelo estrago que produziram.10 “1964. Golpe midiático-civil-militar” também aborda en passant a adesão ao golpe de jornais como Folha de São Paulo, O Estado de S. Paulo e o Globo, trazendo as justificativas que os proprietários desses veículos da grande imprensa apresentam para suas posições de apoio ao movimento que culminou com a queda de João Goulart e com a Ditadura propriamente dita. A obra apresenta ainda algumas das manifestações de “mea-culpa” dos jornais, feitas no curso da história. Dentre elas, chama atenção retração de O Globo, publicada em 31 de agosto de 2013, em que, falando em nome das Organizações Globo, o jornal reconhece o apoio ao golpe e lamenta as consequências do ato. Ao que parece, as questões apontadas por Juremir acerca desses jornais, antes e durante a ditadura, poderiam ser objeto de análises independentes, à exemplo de trabalhos como o de Maria Aparecida de Aquino “Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação e da resistência O Estado de São Paulo e Movimento”.11 Para finalizar, Juremir Machado da Silva afirma que “a participação da mídia no golpe de 1964 é uma das maiores pizzas da história brasileira”. Fazendo uma analogia com o futebol, ele escreve que a mídia “merecia uma taça mais importante que a Jules Rimet, a taça do tricampeonato no México, o tri da ditadura, roubada e derretida”.12 Mais uma vez, ao invés de analisar e apontar os porquês envolvidos na questão, o autor cobra da imprensa o fato dela nunca ter pedido desculpas à sociedade brasileira.

Subestimando o percurso do que tem sido o fazer jornalístico ao longo do tempo, nos termos da análise de autores como Marialva Barbosa,13 e os bastidores do próprio tempo em que jornalistas/intelectuais se engajaram contra o governo João Goulart, Juremir os acusa de traidores da pátria, de faltarem ao compromisso com a liberdade e por serem excessivamente conservadores.

Em que pese os excessos de julgamento cometidos ao longo de sua análise, ressaltamos que o livro de Juremir Machado da Silva “1964. Golpe midiático-civil-militar” abre aos historiadores um leque de perspectivas de estudos que podem aprofundar as questões que o autor levanta, relacionadas às diversas problemáticas que envolvem a participação dos segmentos da mídia no golpe de 1964.

Notas

1. SILVA, Juremir Machado da. 1964. Golpe midiático-civil-militar. 5. ed. Porto Alegre: Sulina, 2014, p.9.

2. Idem.

3. Ibidem, p. 31.

4. DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981.

5. SILVA, Juremir Machado da. 1964, Op. cit., p. 32.

6. ABREU, Alzira Alves, citada por SILVA, Juremir Machado da. 1964, Op. cit., p. 44-45.

7. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

8. SILVA, Juremir Machado da. 1964. Op. cit., p. 75.

9. KUSHNIR, Beatriz. Depor as armas. A travessia de Cony e a censura no Partidão. In: REIS, Daniel Aarão. (Org.). Intelectuais: História e Política. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000, p. 219-246.

10. SILVA, Juremir Machado da. 1964, Op. cit., p. 117.

11. AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação e da resistência O Estado de São Paulo e Movimento. Bauru (SP): Edusc, 1999.

12. SILVA, Juremir Machado da. 1964, Op. cit., p. 141.

13. BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa. Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.


Resenhista

Gilmara Yoshihara Franco – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Rua Brasflorest, 5800, Casa 7, Condomínio Tiradentes, Jd. Tropical. Rolim de Moura – RO – Brasil. CEP: 76940-000 E-mail: gilmara.franco@unir.br.


Referências desta resenha

SILVA, Juremir Machado da. 1964. Golpe midiático-civil-militar. 5. ed. Porto Alegre: Sulina, 2014. Resenha de: FRANCO, Gilmara Yoshihara. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 9, n. 1, jan.-jun., 2016.

Itamar Freitas

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