Gold, Festivals, and Music in Southeast Brazil: Sounding Portugueseness | Barbara Alge

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Barbara Alge | Imagem: Goethe Universität

O livro da etnomusicóloga Barbara Alge, Gold, Festivals, and Music in Southeast Brazil: Sounding Portugueseness, baseia-se numa etnografia da Festa de Nossa Senhora de Nazaré, padroeira do pequeno vilarejo de Morro Vermelho, um distrito de Caeté, Minas Gerais, e antigo centro de mineração que remonta ao início do século XVIII. Por meio de seu relato, a autora aborda diversos temas relacionados a debates contemporâneos na etnomusicologia e ciências sociais de modo geral, tais como: conceitos de raça e relações raciais; colonialidade e pós-colonialidade; patrimonialização; processos civilizatórios entre outros. Estas discussões têm, como pano de fundo, uma festa popular católica celebrada, em Morro Vermelho, supostamente a mais de 300 anos.

Desde quando Francisco Curt Lange fez suas primeiras investidas nas cidades históricas de Minas, a música colonial mineira tem sido investigada por diversos pesquisadores, como Paulo Castagna, José Maria Neves, Maurício Monteiro, Maurício Dottori entre outros. No entanto, talvez por sensibilidades musicais análogas às de Mário Andrade quando se deparou com os corais e orquestras das cidades históricas, a performance contemporânea de repertórios sacros ainda preservados por músicos locais foi, de modo geral, ignorada, com raras exceções (ver, por exemplo, LARA MELO, 2001; NEVES, 1987; REILY, 2006; 2011). É verdade que muitas destas corporações musicais envolvem participantes sem ou com pouco treinamento musical formal, evidenciando particularidades nas afinações e técnicas performativas. Mas, como este livro revela, estas performances apontam para valores estéticos e para a forma como estes valores estão implicados nas relações de classe e raça locais, relações estas implementadas e enraizadas, junto com o projeto civilizatório da colonização.

A autora define a Festa de Nossa Senhora de Nazaré como uma festa portuguesa. Com certeza, a festa apresenta características que remetem a um legado português, mas o que a autora quer dizer com a sua afirmação não se insere nos discursos referentes à formação da brasilidade, para a qual teria havido uma contribuição portuguesa, junto com a africana e indígena, mas antes que, entre certos setores da elite de Morro Vermelho, há lideranças culturais que enfatizam as relações da festa com Portugal; ou seja, há, entre estas figuras, aqueles que buscam construir uma “marca” (brand) para a festa predominantemente branca – e civilizatória, um branding que se estende também para o próprio vilarejo. Narrativas locais afirmam que a Guerra dos Emboabas começou em Morro Vermelho, levando à vitória dos portugueses sobre os paulistas, vitória essa celebrada na vila, opondo-se às visões de que essas lutas pelo domínio das minas teriam sido as primeiras investidas nacionais contra a Metrópole por parte de uma pequena tropa heroica num embate com um poderoso reinado.

Deste modo, a festa da padroeira celebra o projeto civilizatório possibilitado por essa vitória, de modo que portuguesidade, para a autora, é menos uma caracterização étnica que um valor. Com efeito, ela argumenta que, em Morro Vermelho, portuguesidade equivale a civilidade. E é importante salientar que a festa está inserida numa das principais instituições de dominação portuguesa na colônia: a Igreja. E, reforçando o poder eclesiástico, a festa em si, a autora afirma, preserva laços estreitos com Portugal, particularmente com a cidade de Nazaré, cuja padroeira também é Nossa Senhora de Nazaré. Presume-se que a festa tenha sido institucionalizada originalmente por reinóis do norte de Portugal, e, no forro da Matriz, há uma representação do milagre em que a santa salva um cavaleiro prestes a cair ao mar com seu cavalo do alto de uma ribanceira nos entornos de Nazaré, evento, em torno do qual, a devoção à santa se fundamenta. A narrativa e sua representação num espaço comunitário são emblemas constantemente reafirmando os elos entre Morro Vermelho e a cidade portuguesa.

Esta festa, como as festas no período colonial de modo geral, tornou-se foco de manifestações artísticas, rituais e práticas coletivas voltados para o processo civilizatório. Sem dúvida, as riquezas do ouro presentes nas regiões mineradoras possibilitaram as extravagâncias “barrocas” na produção das festas, enquanto suas características complexas contribuíram para a sustentação de discursos civilizatórios. Uma orientação barroca continua presente na produção da festa, que se inicia com uma novena, para a qual há cantos ainda entoados em latim por um coral ad hoc que se forma a cada ano; o final da novena é marcado por uma cavalgada de Caeté a Morro Vermelho liderada pela bandeira da santa; no dia seguinte a principal atração é a cavalhada, envolvendo uma encenação da luta entre cristãos e mouros; e no suposto aniversário da santa, há uma grande procissão. Todos estes eventos de rua são entrecruzados por missas, algumas envolvendo o coral e a banda com repertórios “antigos”. Mas música é um elemento presente ao longo da festa, podendo ser ouvida o tempo todo acompanhando os mascarados que perambulam pelas ruas arrecadando esmolas para a festa, nos bares e barracas da festa e dos sons de carros.

A produção da festa mobiliza vastos setores da população local que, por isto mesmo sentem um grande orgulho e compromisso em relação a ela. A identidade local, enfim, está sustentada sobre a memória de um passado glorioso. Mas, como argumenta a autora, este passado é hoje mobilizado a serviço de interesses atuais, particularmente para dar visibilidade à localidade para investimentos variados e na promoção do turismo. Assim, alguns aspectos da festa e da história social da localidade foram selecionados para construir uma identidade própria para Morro Vermelho, distinguindo-a de outras localidades históricas mineiras. Os principais patrocinadores da festa e a maior parte dos membros da comissão da festa pertencem às elites locais, sendo estes os principais articuladores dos discursos de patrimonialização, ou heritigization, termos empregados pela autora.

Entre as manifestações a serem destacadas para patrimonialização e branding do lugarejo é a cavalhada, uma dramatização paradigmática do projeto civilizatório da empreitada colonizadora. Em Morro Vermelho, os personagens da cavalhada são protagonizados por membros das elites locais em belos cavalos treinados, envolvendo diversas exibições dos animais num drama em que os mouros pagãos se submetem à ordem do cristianismo1. Este espetáculo é particularmente concorrido, atraindo muitos turistas. Já a procissão, que também é concorrida, é compreendida como uma grande manifestação da fé local.

A autora nos alerta para o fato de que as narrativas sendo construídas para a patrimonialização da cidade e da festa não são necessariamente de conhecimento de toda a população, embora hoje já haja cartilhas nas escolas contendo as narrativas hegemônicas. Os relatos coletados mostram que muitos habitantes da cidade não assimilaram boa partes das narrativas “portuguesas” sendo disseminadas por alguns intelectuais locais. Ela mostra também como há contra-narrativas para estas narrativas hegemônicas, particularmente entre os patrocinadores da outra festa da cidade, a Festa de Nossa Senhora do Rosário. Boa parte dos organizadores desta festa são negros e fazem parte das classes menos favorecidas, morando nas periferias do lugarejo. Sua festa envolve o aluá, um festejo comunitário com cantigas acompanhadas por tambores, uma cavalhada mirim e procissão. Diferentemente da festa da padroeira, este festejo recebe pouco investimento do estado e de patrocinadores, atraindo, também, um público bem menor.

Uma temática que ficou um pouco marginalizada no texto é a discussão do repertório musical da festa enquanto música, notadamente aquele repertório sacro que o coral canta em latim. Esta limitação se dá, sem dúvida, pela relutância da população local em compartilhar as partituras, mas entre os exemplos das performances no material complementar também não foram disponibilizados muitos exemplos. A informação providenciada sugere que possa haver em Morro Vermelho repertórios novos ou, mais provavelmente, simplificações e variações de repertórios já conhecidos. Um estudo mais pormenorizado poderá, talvez, nos trazer novos subsídios para a compreensão dos processos locais de reciclagem de repertórios valorizados.

Enfim, no seu todo, trata-se de um texto que levanta várias temáticas até então pouco exploradas em relação ao legado colonial mineiro, particularmente em relação às festas das irmandades poderosas. Voltando-se para os discursos civilizatórios do legado português, desvenda a construção local de discursos para o branding do universo artístico-cultural popular que se voltam para os colonizadores. Até que ponto esta portuguesidade pode ser encontrada em outas cidades históricas mineiras – e para além delas – e quais as suas implicações? Estas são talvez as principais questões susitadas por este texto e que deverão no mobilizar em nossas pesquisas nestas localidades.

Nota

1 No material complementar, a autora disponibiliza uma filmagem de uma cavalhada na festa na qual a exibição equestre pode ser apreciada.

Referências

LARA MELO, Edésio de. A música da Semana Santa em quatro cidades da região dos Campos das Vertentes/MG. Tese de Mestrado, UNIRIO, 2001.

NEVES, José Maria. A Orquestra Ribeiro Bastos e a vida musical em São João del-Rei. Tese de Livre Docência. 1987.

REILY, Suzel Ana. “Remembering the Baroque Era: Historical Consciousness, Local Identity and the Holy Week Celebrations in a Former Mining Town in Brazil”. Ethnomusicology Forum 15, no. 1, 39–62, 2006.

REILY, Suzel Ana “A experiência barroca e a identidade local na Semana Santa de Campanha, Minas Gerais”. Per Musi, Belo Horizonte, n.24, p.43-53, 2011.


Resenhista

Suzel Ana Reily – Professora Titular de Etnomusicologia do Departamento de Música do Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas. Completou o doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo em 1990. E-mail: sreily@unicamp.br  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3352-9379


Referências desta Resenha

ALGE, Barbara. Gold, Festivals, and Music in Southeast Brazil: Sounding Portugueseness. Londres e Nova Iorque: Routledge, 2022. Resenha de: REILY, Suzel Ana. Festa da Padroeira, Patrimonialização e Portuguesidade em Minas Gerais. LaborHistórico. Rio de Janeiro, v. 8, n.1, p. 343-346, jan./abr. 2022. Acessar publicação original [DR]

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