Global History | Jürgen Osterhammel e Pierre-Yves Saunier
É de comum acordo entre os historiadores e as historiadoras que nossa disciplina tem sua história e que nossas perguntas para as fontes variam com o contexto, as sociedades e suas culturas. Desde a institucionalização da disciplina, com as escolas metódicas do século XIX, até as várias renovações historiográficas dos anos 70 a 90, cada epistemologia trouxe contribuições que enriquecem nosso campo. A partir disso, buscamos analisar o artigo Global History, de Jürgen Osterhammel junto ao comentário de Pierre-Yves Saunier, publicados no livro Debating New Approches to History.
Nesta coletânea, editada por Peter Burke e Marek Tamm, cada artigo contém um debate dentro de si, entre o seu ou a sua autora e um comentarista, ambos especialistas da corrente apresentada no artigo, em que o autor ou autora tem a oportunidade de responder as questões do comentarista. Com isso, historiadores e historiadoras apresentam uma série de perspectivas epistemológicas e novas visões da história que surgiram no final do século XX e início do século XXI, com cada capítulo trazendo uma síntese dessas novas perspectivas historiográficas que vêm tensionando e modificando nossa forma de entender e de se fazer história. A partir desse objetivo, os capítulos Environmental History, Posthumanist History e History of Things questionam a agência exclusivamente humana dentro da história e colocam a humanidade numa perspectiva relacional com aquilo que sempre a rodeou, como seus objetos, animais e o próprio ambiente. Já History of Emotions e Neurohistory questionam a própria condição do humano enquanto agente, uma vez que somos afetados por uma centena de químicos que percorrem nossos corpos e somos compostos por uma série de outros seres orgânicos. Por sua vez, History of Visual Culture, Digital History e History of Knowledge tensionam como a maneira de interagir com as fontes ou como percebemos o que é uma fonte vêm se modificando tanto pelos meios digitais quanto pelas imagens. Além disso, o capítulo sobre History of Memory coloca em debate como o tempo e seus estratos são percebidos por nós a partir de nossas memórias e de formas individuais e coletivas de se entender o tempo. Por fim, a coletânea conta com capítulos que revisitam temas caros para a história, como a Postcolonial History, a Gender History e a Global History.
Com isso em mente, os autores de Global History buscam apresentar e explicar uma dessas contribuições epistemológicas, a história global. Para cumprir sua proposta, o autor alemão e seu comentarista canadense abordam desde as origens e os debates sobre a possibilidade de uma história (ou histórias) com uma perspectiva globalizante até os problemas metodológicos que esse campo de estudo enfrenta para sua consolidação. Tais problemas se localizam nas tentativas de superar tanto as barreiras artificiais de uma história nacional quanto no desafio de se libertar de interpretações eurocêntricas de historiografias que reivindicam o global.
Seguindo esse raciocínio, Osterhammel nos mostra no início do artigo como perspectivas globais foram ganhando espaço após a queda do bloco soviético e uma suposta integralização do globo por meio dos diversos meios de comunicação. Tal contexto propiciou tanto uma demanda pública sobre narrativas extensivas e globais quanto uma euforia acadêmica em diversos campos das humanidades sobre uma globalidade que emergia nos anos 90. Entretanto, precisamos questionar esse ânimo da globalidade, pois é evidente que as relações de poder do Atlântico Norte perpetuam desigualdades na construção de saberes, seja na produção epistêmica ou por fatores político-históricos. Dessa forma, reconhecer que as explorações de uma história global tenham seu estopim apenas nessa perspectiva de globalização2 é, até mesmo, contraproducente na criação de um espaço historiográfico amplo e inclusivo para diversos passados3.
Pensando nisso, o historiador alemão logo em seguida demonstra que a busca de narrativas de caráter mundial ou universal não é uma exclusividade do fim do século XX. Presentes desde a antiguidade, narrativas como as de Políbio buscavam narrar suas histórias desde o início dos tempos até o presente em que eles viviam. Contudo, pensar que isso é uma exclusividade do passado greco-romano é uma falácia, visto que, na China Han, Sino Quian produziu uma história que se estende por dois mil anos com o intuito de legitimar o imperialismo chinês4. Porém, em ambos os casos, os historiadores antigos pecam ao crer que seus conceitos político-morais têm aplicabilidades universais5, demonstrando o não reconhecimento do Outro.
É sabendo desses predecessores que Osterhammel nos apresenta três troncos interpretativos dentro do campo da história global. Na primeira visão, a história global é colocada como uma continuadora na tradição das histórias universais, tendo sua genealogia traçada desde a antiguidade até os ideais e produções iluministas de histórias universais, como as tópicas para uma história universal em Schlözer. Nesse aspecto, os mesmos problemas encontrados em interpretações universalistas da antiguidade se fazem presentes nesse modelo. Já a segunda visão se coloca em um período mais curto, enxergando a história global como o pináculo das interpretações historiográficas do pós-guerra. Tal interpretação é criticada por realizar um auto-historicismo de se colocar como a etapa final de uma evolução histórica. Além disso, essa história global antagoniza e busca deslegitimar as produções históricas que se atentam apenas para o local e não reconhece que a história global só pode existir em simbiose com o regional.
Por fim, a terceira interpretação não se vê num pedestal diante de outras ou traça uma tradição longeva, mas surge na euforia dos estudos sociais e das teorias sobre globalidade dos anos 90, mesmo que problemáticos como descritos acima. Tal perspectiva não significa que essa história global é uma história da globalização, mas se vê tributária dessas ideias, alicerçadas em autores como Manuel Castells, Arjun Appadurai e Anthony Giddens. Contudo, essa vertente se afasta das teorias sobre globalização uma vez que ela desenvolveu um arcabouço linguístico e interpretativo próprio à história. Apesar de Osterhammel mostrar inclinação para este último modelo, ele demonstra que essa história global também possui falhas em não reconhecer as contribuições das histórias social e cultural, assim como em deslegitimar os modelos próximos ao universalismo que podem auxiliar no campo, se também questionadas suas falhas. No entanto, não basta reconhecer apenas esses erros na disputa interpretativa, como o autor aponta, é preciso problematizar também o metrocentrismo epistêmico o qual favorece bibliografias concentradas nas comunidades euro-estadunidenses6, caso a história se pretenda de fato global.
Terminada essa explicação, o autor alemão explicita as diferenças entre a história global e outros campos que também trabalham com grandes escalas, tanto da filosofia quanto da historiografia. Começando com a já citada história universal, essa visão se aproxima de ideias filosóficas e teleológicas, entendendo a história como uma narrativa extensa e unificada da humanidade, a qual culmina em um objetivo civilizacional. Diferente desse modelo, a história mundial se propõe a olhar as diferenças e interações entre grandes civilizações, rejeitando uma perspectiva única de humanidade. Mas, nessa interpretação, a globalidade é vista como a superação de certos desafios, em que cada civilização acha respostas variadas à sua sociedade. Diferente de ambas, a história transnacional trabalha como as interações entre diversos cruzamentos de ideias e agentes sócio-históricos que fogem das fronteiras artificiais constituídas pelas nações. Assim, a história transnacional busca superar o nacionalismo metodológico fazendo uma história emaranhada das nações e não uma história nacional.
Após a explanação desses diferentes modelos que lidam com interpretações de escala, Osterhammel define, de uma forma propositiva, sua compreensão do que é a história global. Para o autor, a história global compreende as diversas conexões entre sociedades, suas interativas (des)integralizações e como essa variada conectividade tem um aspecto transformativo, não limitado a visões preconcebidas de nações. Nesse sentido, a história global nos permite questionar a presunçosa excepcionalidade de nações perante outras e demonstrar como elas estão em constante convergência. Ademais, a temporalidade aplicada na história global não é restrita a trabalhar em escalas ou continuidades extensivas, mas opera e é operacionalizada a partir das perguntas que o historiador ou a historiadora propõe. Dessa forma, por meio das perguntas exclusivas dessa ferramenta heurística7, podemos trazer respostas de como o Japão na restauração Meiji, os EUA saindo da guerra civil e a França derrotada pelos prussianos apresentam fortes similaridades na construção de suas historiografias, enviesadas tanto pelo nacionalismo quanto pelo imperialismo8. Ou seja, a história global não busca ser a história do mundo todo ou o suprassumo da historiografia,9 mas ser um modelo operacionalizado por diversos campos da história, trazendo reinterpretações de temas já consolidados e aflorando interpretações inéditas.
A partir disso, vamos aos questionamentos que o historiador canadense faz ao historiador alemão em seu comentário. Saunier nos evidencia três desafios principais para o campo: (I) como a história global pode sustentar-se após a guinada conservadora e o descrédito dado a ela por outros historiadores que colocam a história nacional como a mais importante? (II) Qual seria o local das desconexões entre sociedades para essa perspectiva? (III) Quanto a história global se pode beneficiar com a digitalização de fontes e os contatos proporcionados pela esfera digital?
Em resposta a esse comentário, Osterhammel afirma que o maior desafio da história global é criar uma base teórico-metodológica para que esse campo de estudo seja convidativo para historiadores e historiadoras, uma vez que os departamentos acabam colocando tal campo em uma perspectiva secundária. Contudo, divergindo do autor alemão, notamos que a história global ganha cada vez mais espaço nos departamentos de história. Por exemplo, o artigo Em busca das origens da história global de Sanjay Subrahmanyam (2017), que utilizamos em nossa resenha, foi escrito e proferido como discurso em 2013 na aula inaugural do renomado Collège de France. Ou seja, tal evento é um indicativo de que a história global vem assumindo um papel considerável no tabuleiro historiográfico. Quanto aos ultranacionalismos crescentes, a história global tem a obrigação de combate-los, porém só pode fazer isso reconhecendo suas falhas e denunciando narrativas triunfalistas. Nesse sentido, mirar nas desintegrações globais e nas desconexões que ocorrem entre sociedades e no nosso presente momento10 é uma forma de a história global reconhecer suas falhas interpretativas e sobreviver em um mundo que não vislumbra uma integração global sem reconhecer seus problemas geopolíticos. Entretanto, para que ela cumpra esse objetivo, a história global deve utilizar-se das integrações imateriais que a digitalização documental pode oferecer, mesmo que o autor alemão seja receoso quanto a explorar esse campo recente, visto que historiadores mais velhos têm dificuldades em utilizar das tecnologias que trazem os arquivos até nós.
Mesmo com as questões interessantes que Saunier lança para Osterhammel, tomemos o espaço de fazer mais uma. Se a história busca ser global, como ela deve produzir uma epistemologia contra-hegemônica11 para que permita aos subalternos do mundo falarem12? Respondendo nossa indagação, a história global necessita elaborar uma epistemologia que não esteja sufocada pela geopolítica do poder na historiografia. Tanto Osterhammel quanto Saunier remetem ao fato de que a produção da história global tem uma concentração nas comunidades anglófonas. Ora, se a história global busca esclarecer conexões e desconexões, ela deve também demonstrar as assimetrias (des)conectivas na produção epistemológica da história para que não montemos um cânone de uma historiografia capturada pelos centros dominantes da produção historiográfica. Ou seja, pela própria proposta desse modelo interpretativo, temos a possibilidade de construir uma escrita da história que combata as conectividades maléficas que desprezam epistemologias subalternas.
No entanto, devemos agir com cautela para não fabricar novos centros de poder na historiografia. Nesse sentido, a história global deve ter cuidado com saberes subalternos que buscam combater o centrismo euro-estadunidense, porém o fazem construindo narrativas de excepcionalidade perante outras sociedades. Por exemplo, o sinocentrismo epistêmico que aponta como as tradições confucionistas não foram afetadas pela aculturação da modernidade ocidental e sobrevivem inalteradas na China atual. Desse modo, tais perspectivas subalternas voltam com ideias que acabam por modelar novas fronteiras, alicerçadas em metanarrativas essencialistas, as quais a história global visa justamente tensionar e demonstrar o emaranhado caminho de conexões presentes entre as sociedades13. Contudo, isso não significa que tais epistemologias essencialistas estão fora do escopo da história global, pois, tais tentativas de reivindicar uma excepcionalidade demonstram o concerto complexo de desconexões e desintegrações nas interações dos agentes históricos.
Assim, quisemos mostrar que a história global nos oferece novas possibilidades teórico-metodológicas que ainda se fazem em construção, além de caminhos interessantes para a superação do nacionalismo metodológico. Por meio desse caminho interpretativo, temas que ora foram consolidados pela historiografia podem ganhar um novo olhar que permite mostrar que as sociedades estão em constante conexão e, ao mesmo tempo, desconexão. Porém, não basta renovar os caminhos da historiografia se a história ousa ostentar o título de global. Afinal, não devemos apenas adicionar produções periféricas nas reflexões da história global como se fosse uma narrativa compensatória. Devemos criar uma epistemologia emancipatória14, na qual os saberes das periferias do globo são essenciais para a constituição da operação historiográfica global. Mas, para que isso ocorra, os Outros precisam ter voz
Notas
2 MORELI, Alexandre. Vida (e morte?) da história global. Estudos Históricos, v. 30, n. 60, Rio de Janeiro, jan/abr. 2017, p. 5-10.
3 CONRAD, Sebastian. O que é a história global?. Lisboa: Edições 70, 2019, p. 15.
4 SUBRAHMANYAM, Sanjay. Em busca das origens da história global: aula inaugural proferida no Collège de France em 28 de novembro de 2013. Estudos Históricos, v. 30, n. 60, Rio de Janeiro, jan/abr. 2017, p. 219-240.
5 MARINCOLA, John. Historiography. In: Andrew Erskine (Ed.). A companion to ancient history. Nova Jersey: Wiley-Blackwell, 2009, p. 11-22.
6 CONNELL, 2011 apud PEREIRA, Ana Carolina Barbosa. Precisamos falar sobre o lugar epistêmico na Teoria da História. Tempo e Argumento, v. 10, n. 24, Florianópolis, abr/jun. 2018, p. 88-114.
7 CONRAD, Sebastian. O que é a história global?. Lisboa: Edições 70, 2019, p. 22
8 HILL, 2008, apud CONRAD, Sebastian. O que é a história global?. Lisboa: Edições 70, 2019, p. 21-22
9 SUBRAMANYAM, Sanjay. Em busca das origens da história global: aula inaugural proferida no Collège de France em 28 de novembro de 2013. Estudos Históricos, v. 30, n. 60, Rio de Janeiro, jan/abr. 2017, p. 219-240.
10 ALDEMAN, J. What is global history now?. Aeon, [S.I], 02 mar. de 2017. Disponível em: https://aeon.co/essays/is-global-history-still-possible-or-has-it-had-its-moment Acesso em: 08 ago. de 2020.
11 PEREIRA, Ana Carolina Barbosa. Precisamos falar sobre o lugar epistêmico na Teoria da História. Tempo e Argumento, v. 10, n. 24, Florianópolis, abr/jun. 2018, p. 88-114.
12 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
13 CONRAD, Sebastian. O que é a história global?. Lisboa: Edições 70, 2019, passim.
14 CONRAD, Sebastian. O que é a história global?. Lisboa: Edições 70, 2019, p. 208-209.
Referências
ALDEMAN, J. What is global history now?. Aeon, [S.I], 02 mar. de 2017. Disponível em: https://aeon.co/essays/is-global-history-still-possible-or-has-ithad-its-moment Acesso em: 08 ago. De 2020.
CONRAD, Sebastian. O que é a história global?. Lisboa: Edições 70, 2019.
MARINCOLA, John. Historiography. In: Andrew Erskine (Ed.). A companion to ancient history. Nova Jersey: Wiley-Blackwell, 2009, p. 11-22.
MORELI, Alexandre. Vida (e morte?) da história global. Estudos Históricos, v. 30, n. 60, Rio de Janeiro, jan/abr. 2017, p. 5-10.
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SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Em busca das origens da história global: aula inaugural proferida no Collège de France em 28 de novembro de 2013. Estudos Históricos. v. 30, n. 60, Rio de Janeiro, jan/abr. 2017, p. 219-240.
BURKE, Peter; TAMM, Marek (Ed.). Debating new approches to History. Londres: Bloomsbury Academic, 2018.
Resenhista
Rafael de Azevedo – Graduando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: rafaeloa.franzin@outlook.com http://lattes.cnpq.br/7001558615830454
Referências desta Resenha
OSTERHAMMEL, Jürgen; SAUNIER, Pierre-Yves. Global History. In: BURKE, Peter; TAMM, Marek(Ed.). Debating new approches to History. Londres: Bloomsbury Academic, 2018, p. 21-40. Resenha de: AZEVEDO, Rafael de. Os desafios para uma história global. Revista Hydra. São Paulo, v.5, n.9, p. 372- 380, abr. 2021. Acessar publicação original [DR]