RONCHI, Rocco. Gilles Deleuze: Credere nel reale. Feltrinelli: Milano, 2015. Resenha de: GATTI, Giorgio Majer. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, 147-155, n.1, 2016.
Deleuze sempre rejeitou ter seguidores diretos e constituir uma escola. Nenhum pensamento oficial, nenhum círculo estreito, nenhuma diretiva, nenhuma busca de ortodoxia: “somente” um convite a entrar no laboratório filosófico sem qualquer seleção de entrada (algo que o mundo universitário jamais lhe perdoou). Adentrando então no laboratório filosófico dos conceitos – sujando as mãos, e aprendendo assim os truques do ofício – percebe-se que para cada um deles é designada pelo menos uma assinatura; isso, porém, não deve ser entendido com uma espécie de copyright filosófico, algo como um direito autoral: significa antes que cada conceito é ligado a uma experiência histórica concreta, que pode sempre ser recolhida e relançada, uma vez que a assinatura não é índice de uma propriedade, mas de uma passagem, ou de uma inauguração, ambas quase sempre conflituosas. Essa é a potência de Deleuze, bem como a fragilidade na qual ele quis inscrever seu trabalho e sua herança (a qual sentia bem pouco como sua); mas uma herança não menos exposta aos riscos da escolástica do que aquela de tantos filósofos que desejaram fazer escola desde o início de seu percurso. Deleuze é, para nós, um fantasma que nos relembra continuamente a função do humor em filosofia: o que é o Abecedário se não um retorno fantasmático, pensado para ser humoristicamente póstumo?
Esse Deleuze ativo e fantasmático pode ser apreendido no livro que Rocco Ronchi lhe dedicou, inclusive por meio de alguns aspectos insólitos, que se tratará de receber em seu caráter de preensões, para retomar a inspiração whiteheadiana que percorre todo o texto. Encontramo-nos diante de uma alternativa entre a retomada da prática que Deleuze nos legou e a descrição dessa própria prática. Pode-se dizer que é uma tarefa árdua, em parte porque a alternativa, que de início se mostra não pertinente, resulta, no final das contas, compulsória e asfixiante. A tentativa de Ronchi é a de relançar a prática filosófica de Deleuze, de maneira não ortodoxa, digamos, e isto tanto do ponto de vista terminológico quanto histórico-conceitual; resulta daí a separação de núcleos teóricos importantes, os quais são postos em movimento e retrabalhados: já um tal esforço deveria ser forte motivo de interesse para o leitor, e nos impulsionar para além das litanias da (in)fidelidade.
Ora, já nas primeiras linhas do texto Ronchi insere uma afirmação programática que não deve passar despercebida: “O que me propus a fazer foi escrever uma capítulo de história da filosofia contemporânea” (2015: 9). Não se trata, portanto, de uma introdução à filosofia de Deleuze, tampouco uma interpretação em chave hermenêutica; notese que o intento preciso de Ronchi deve ser acompanhado, caso se queira testar o alcance da operação que realiza, e caso se queira averiguar qual tipo de continuidade ele entrevê entre sua própria operação e o modus operandi característico de Deleuze, notório por seu um historiador da filosofia bastante teorético. Nesse sentido, cabe mencionar o importante conjunto de trabalhos fruto da linha de pesquisa que Ronchi delinou nos últimos anos, dentre os quais Bergson, una sintesi (2011), Come fare. Per una resistenza filosofica (2012), isso sem esquecer volumes que organizou, como Durata reale e flusso di coscienza. Lettere e alti scritti 1902-1939 (a correspondência entre Bergson e William James, publicada em 2014), e a tradução comentada de A transcendência do ego, de Sartre (2011). Lido dentro da teia relacional composta por tais trabalhos, o livro de Ronchi pode ter seu alcance específico mas bem compreendido, o qual quer justamente fugir da pretensão de fornecer o retrato exclusivo de um filósofo a partir de uma suposta identidade histórica cristalizada.
Dentro dessa perspectiva, toda a série de pontos delineados por Ronchi ao longo do livro faz emergir diversos aspectos problemáticos da filosofia deleuzeana. O tema da história da filosofia é apresentado em sua ligação essencial com o objeto de estudo: “De fato, foi Deleuze – mas não apenas ele – que nos ensinou que a história da filosofia não é uma narrativa linear. Não pode sê-lo, porque de outra forma nada restaria da filosofia.” (2015: 9) Esta afirmação coloca em relevo a tentativa de alcançar aquela indeterminação entre a voz de quem escreve e a do filósofo que é tomado como objeto de estudo, algo que Deleuze definira, na esteira de Bakhtin e Pasolini, discurso indireto livre. A emergência desse tema, longe de ser somente um modo de dar continuidade a uma herança, é também o índice de um conflito, nunca efetivamente abafado, entre filósofos teoréticos e historiadores da filosofia, ou, antes, entre filosofia e história da filosofia.
Desde o início, Ronchi desvela – sem se desviar do foco da coleção à qual o livro pertence (Eredi), dirigida pelo psicanalista Massimo Recalcati – o intento preciso de não se defrontar com a filosofia de Deleuze tomada como um corpo morto, ou como una experiência já conclusa, que se trataria então de reconstruir retrospectivamente “com filologia acríbia”. Este é o sentido mais geral que Ronchi atribui à própria prática filosófica, acerca da qual, alguns anos antes, mencionava a “hipótese de uma história teorética da filosofia, que segue percursos diversos daqueles da historiografia filosófica”, demarcando ainda o contraste de fundo com as abordagens historiográficas, mais especificamente historicistas: a história historiográfica da filosofia permaneceria alheia ao ato filosófico, restringindo-se ao fato. Tal premissa orienta todo o texto de Ronchi sobre Deleuze, que além de ter o não desprezível valor de estar explicitada, conduz seu autor por um terreno cheio de riscos, colocando em relevo uma coragem teórica. Um mérito preliminar da perspectiva adotada, para além do grau de condivisão que ela possa suscitar, está na ideia de abordar a filosofia de Deleuze em suas características peculiares, isto é, buscando atravessar os estratos interpretativos de gêneros diversos que ainda ofuscam a recepção deste filósofo (Derrida e Foucault tiveram maior sorte nesse sentido).
Deleuze é então apresentado como o filósofo que, mais do que qualquer outro na segunda metade do século XX, acreditou, ainda que ingenuamente, na possibilidade da filosofia. A partir daí, não é apenas a historiografia filosófica a ser colocada em discussão; Ronchi recorre a uma generalização de cuja insuficiência ele é plenamente consciente, mas a qual utiliza declaradamente com finalidade introdutória, qual seja, a que reconhece em duas linhagens de pensamento, que remontam respectivamente a Heidegger e a Wittgenstein, dois programas de pesquisa filosófica que, mesmo em sua diversidade, encontram-se comprometidos com a temática da descontinuação do filosófico. Ora, o autor coloca-se logo em guarda contra críticas: não se trata de contrapor Deleuze a Heidegger ou Wittgenstein de modo ingênuo ou desavisado, mas de delinear, dentro do amplo espectro dos herdeiros de cada um deles, a descontinuação do especulativo em filosofia (tomemos como referência, por exemplo, o ensaio heideggeriano O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, ou a agenda filosófica do linguistic turn, que em grande medida via na segunda filosofia wittgensteiniana seu momento de fundação, conquanto injustificada seja reduzi-la a tal corrente). Note-se também que essa hipótese de Ronchi parece muito próxima da que Quentin Meillassoux defende no seu livro Após a finitude, ao que voltaremos mais abaixo.
Mas como Deleuze teria acreditado na possibilidade da filosofia? Antes de tudo construindo uma ideia diversa de história da filosofia (uma ideia que pode ser definida como problemática – como enfatiza Ronchi, retomando algumas belas e negligenciadas páginas de Diferença e repetição – ou como menor); uma ideia que coloca em relevo justamente a própria possibilidade da filosofia, a partir da influência particulamente decisiva do ensinamento de Martial Gueroult, o “monumental” historiador da filosofia que tanto insistiu na necessária identificação do filosófico com sua instauração. Nessa passagem, Ronchi apreende com lucidez um importante e ainda pouco conhecido eixo do pensamento deleuzeano, o qual, no entanto, ele tende a propor sem ressaltar as diferenças decisivas que separam o professor do aluno, e que podem ser sintetizadas incialmente pelo contraste entre a absoluta recusa de qualquer impulso “criativo” do historiador da filosofia, por um lado, e o desarranjo sistemático dessa recusa, por outro — uma diferença em cuja gênese certamente desempenhou um papel importante Ferdinand Alquié, com sua oposição teórica quase especular a Gueroult.
Deleuze retoma então a concepção estruturalista de Gueroult, reconhecendo seu caráter pioneirístico com respeito ao estruturalismo desenvolvido a partir da matriz linguística, mas não mantém a já menciona “censura” com relação à zona de indeterminação que acomuna o histórico e seu objeto, zona na qual Deleuze encontra a possibilidade de construir e retomar conceitos, no contexto de um movimento mais geral de repensar a temporalidade. Se o “filosófico” deve ser instaurado, conforme a dianoemática gueroultiana, a solução de Deleuze ao problema é justamente o discurso indireto livre, como Ronchi destaca com precisão. Deve-se, porém, levar em conta o fato de que a filosofia da história da filosofia de Gueroult, em seus aspectos mais fundamentais2 , abre-se à contingência pela apropriação deleuzeana, sobretudo a partir do final dos anos 1960. Neste sentido parece que Ronchi reconhece que contingência possa ser exclusivamente uma forma do limite e da negação em sentido antropológico, e não o lugar da virtualidade de todo devir. Mas não foi justamente Deleuze, em um cerrado confronto com a genealogia de Nietzsche, bem como com a de Foucault, (e se deveria também acrescentar aí a filosofia de Canguilhem) a conceber uma relação ativa, e não de mútua exclusão, entre história e vida criativa? O devir na contingência não é justamente o resultado dessa relação? E o próprio sentido da operação deleuzeana não é justamente aquele de problematizar a coexistência entre filosofia teorética e história da filosofia buscando na contingência algo que pode “fugir” à história? Nos escritos de Deleuze parece não haver efetiva contraposição entre história e devir, tampouco uma relação de pura exterioridade entre eles; antes, encontramos precisamente a remissão à relação entre vida criadora e história, isto é, a relação entre o evento que irrompe, perfurando a continuidade linear do tempo, e a temporalidade reificada do atual. Se é verdade que Deleuze tende a conotar negativamente a história, é igualmente verdadeiro que tal postura não corresponde a uma interrupção da dimensão histórica da filosofia, mas a uma ideia da história como “marcador temporal do Poder” (DELEUZE; BENE, 2002: 95), além de corresponder a uma crítica da história entendida como interioridade no conceito (é por isso que Hegel e Heidegger apareciam como historicistas a seus olhos). Ronchi apreende perfeitamente o aspecto produtivo do pensamento de Deleuze enquanto historiador da filosofia, por exemplo ao afirmar que “o historiador não narra a filosofia mas reativa a cada vez sua dimensão problemática e agonística” (2015: 11), muito embora pareça insistir em uma espécie de separação estrita, em nossa opinião não rastreável na filosofia deleuzeana, entre evento (natureza naturante) e contingência (natureza naturada), na qual não é nada simples abarcar o devir transcendental do empirismo. A crítica de Deleuze é entendida por Ronchi como uma prática que abole a si mesma; há uma espécie de identificação problemática entre crítica e finitude (e, portanto, contingência) que deixa algumas perguntas importantes em aberto. Deleuze, seguindo Nietzsche, havia demonstrado como Kant não estivera em condições de levar a crítica até as últimas consequências, algo que certamente leva a um desarranjo radical do nexo entre a crítica e a esfera do transcendental; mas uma tal crítica da crítica equivale a uma espécie de autodemolição operada pela própria crítica? Ronchi parece dar a entender que sim (e nisto talvez esteja mais próximo de Badiou que de Deleuze), enquanto nos parece que, ao radicalizar e revirar a crítica kantiana, Deleuze mostre uma passagem de sentido obrigatório em direção a um princípio de razão contingente, a qual desemboca em uma crítica entendida como tensão imanente, filha monstruosa e indesejada do kantismo (de onde se pode dar sentido ao grande e inequívoco interesse de Deleuze pelos póskantianos, em particular Salomon Maimon).
A referência a Giovanni Gentile que Ronchi propõe, a confirmar a leitura que apresentamos, é audaz e traz consigo o problema da tematização de uma história menor da filosofia, para além da aparente fragilidade da associação entre “o ato de pensar engendrado em sua genitalidade” (DELEUZE, 1997: 217)3 e o conceito gentiliano de ato: seguindo-a no plano propriamente teórico, não parece ponto pacífico que a teoria do ato puro de Gentile possa coexistir alinhado com o arcabouço deleuzeano, algo que Ronchi mesmo explicita ao escrever que “não é preciso dotar esse pensamento de um ‘Si’, como fará Gentile com seu ‘Eu’.” (2015: 11) Contudo, se Ronchi bem sabe que se expõe a uma avalanche de críticas com tal aproximação – as quais, cremos, necessitariam de um aprofundamento que foge ao escopo desta resenha4 –, por outro lado, aquilo que ele destaca do gesto de Deleuze permanece como algo central: a linha menor do pensamento filosófico não se dá o objetivo de narrar de maneira irenista a história da filosofia, trata-se sim de concebê-la como um campo de batalhas “do qual não se conhece antecipadamente o desfecho” (2015: 10), como também acreditava Althusser. É sobre essa base que Ronchi trabalha, buscando delinear as feições de um Deleuze filósofo do absoluto, no sentido etimológico de “ab-solto de seus pressupostos empíricos, da doxa e, em última análise, do preliminar referimento à experiência humana assumida como a única experiência possível” (2015: 10). Orbitamos ainda o supracitado ensaio de Meillassoux, texto que suscitou muitos debates internacionalmente, e que trouxe ao foco da atenção o problema do correlacionismo, tratado por Ronchi como passagem útil para a crítica da finitude e da contingência em filosofia, isto é, para a crítica da exceção humana e da relação entre o humano e o mundo. É a partir dessa diretriz que o livro se divide em cinco sessões: Ética, Método, Ontologia, Cinema, Psicanálise.
A centralidade do maio de ’68 aparece desde o início, colocado como evento paradigmático da ruptura com a representação e com o fundamento transcendente da experiência. A relação entre crença e realidade, presente no cerne da filosofia de Deleuze já desde Empirismo e subjetividade, é colocada na perspectiva da imanência; a representação seria uma normalização e uma despontencialização da experiência, uma sua redução a termo relativo”, escudo contra toda absolutização imanente da própria experiência: “A experiência como tal, para a metafísica, não pode ser absolutizada, o real não pode bastar, o devir, para poder ser possível, precisa de uma sustentação no eterno, no imóvel, no transcendente, enfim, na Lei” (2015: 14). Crer no real significa, para Ronchi, não renunciar à absolutização da experiência, e consequentemente à natureza especulativa da filosofia. A experiência imanente vai lado a lado com a univocidade do real, concebida por Deleuze como a igualdade ontológica de todos os entes, uma igualdade que tem o caráter da infinitude, e que Ronchi aproxima recorrentemente ao neoplatonismo, em particular àquele do Renascimento, de autores como Giordano Bruno e Nicolau de Cusa. Ora, Deleuze sempre estabeleceu precisos referenciais em sua história da univocidade do ser, e portanto da imanência: enquanto em Diferença e repetição o precursor designado era Duns Scoto, em Espinosa e o problema da expressão Deleuze mostrava o alcance histórico-filosófico do neoplatonismo internamente a uma pequena história da imanência, amplamente ignorada por muitos estudiosos em seu caráter complementar às teses desenvolvidas em Diferença e repetição. Em parte, esse interesse pelo neoplatonismo explica-se até mesmo em aspectos bastante concretos: o diretor da grand thèse de Deleuze foi Maurice de Gandillac, autor de La philosophie de Nicolas de Cues, estudioso da tradição neoplatônica cristã, que escreveu numerosos ensaios sobre esses temas. Também Jean Wahl, outro professor que teve grande importância para Deleuze, já havia falado difusamente sobre a relação entre transcendência e imanência na segunda parte de seu Traité de métaphysique.
Dessa forma, o Deleuze que Ronchi retrata é um filósofo da experiência pura que levou a sério as análises foucaultianas sobre filosofia moderna como antropologia transcendental: a finitude como fundamento da compreensão do ser, o homem como ente que goza de um primado ontológico. Como Ronchi justificadamente destaca, o movimento crítico de Foucault certamente estava voltado para a fenomenologia, mesmo em sua versão heideggeriana. Deleuze condividia com Foucualt essa orientação, e havia sido desde o início mais “livre” na construção de uma linha de fuga5 ; a sua primeira e já significativa tomada de posição remonta à resenha de Logique e existence, de Jean Hyppolite, livro fundamental para toda uma geração de filósofos franceses, no qual o autor “implantava” o pensamento ontológico do Heidegger da Carta sobre o humanismo na lógica hegeliana, através de um confronto não secundário com Bergson. Deste célebre livro de Hyppolite, Deleuze criticava fundamentalmente o resíduo antropológico e a concepção dialética da diferença. A propósito desse importante tema, Ronchi fala do dogma antropológico dos modernos, e elenca as teses constitutivas dessa antropologia da qual Deleuze se distanciará: 1) a finitude, enquanto limite negativo estrutural; 2) o par desejo-falta, enquanto imposição da Lei, a qual transcende a experiência; 3) a semelhança com o Deus dos monoteísmos, na “miserável transcendência do morrer” (2015: 25), enquanto imitação da transcendência do Princípio; 4) o débito, na medida em que o homem recebe o ser “de um Outro que o possui, ao contrário, de modo eminente” (2015: 25). Junto com Guattari, Deleuze teria buscado uma via de escape às armadilhas dessa antropologia analógica, construindo uma filosofia da experiência pura que, para Ronchi, é uma clara aproximação às filosofias da natureza, em particular à filosofia do processo de Whitehead6 . O anti-Édipo, através de sua crítica radical da negação e do uso negativo da síntese disjuntiva, não faria outra coisa que dissolver a antropologia analógica ainda presente na psicanálise, assim como Diferença e repetição e Lógica do sentido faziam o mesmo com respeito à tradição filosófica dominante. Assim, Ronchi sustenta que aquele de Deleuze é “o programa de uma nova filosofia da natureza que finalmente se desvincula do homem como unidade de medida, isto é, que não parte daquele ente para o qual se dá apenas negação” (2015: 33). Ora, percebe-se como não estava tanto em jogo, naqueles textos publicados entre os anos 1960 e 1970, uma suposta recaída no fundo indiferenciado para o qual Hegel apontava o dedo (gesto que Žižek procura atualizar), o ponto de apoio imprescindível para todos os que renegam ou renegaram o maio de 1968. Porém, pode-se perguntar, ao emancipar-se do limite humano, da falta e de transcendência da Lei, o que restará se não a noite escura da indistinção? A resposta que Deleuze e Guattari buscaram deixar clara era: a experiência pura é a experiência do real que escapa à alternativa entre simbólico e imaginário, experiência esta que viria “antes da relação sujeitoobjeto, antes da representação, antes da intencionalidade” (2015: 36). É aqui que a filosofia da natureza de Deleuze se hibrida com o último Lacan, segundo Ronchi: o Real lacaniano não possui uma consciência como suporte, e não possui qualquer dogma antropológico que o funde. Curiosamente, estamos justamente diante do que William James defendia nos seus Ensaios de empirismo radical a propósito da experiência pura. Eis aí, enfim, o peculiar alinhamento no qual Ronchi coloca Deleuze, caracterizando-o como o filósofo que pensou o real “absolto da relação” (2015: 37), reeditando uma filosofia do absoluto.
Há um mérito no esforço de Ronchi em trazer à tona os diversos elos de possível conjunção do pensamento de Deleuze, algo particularmente profícuo no capítulo dedicado ao cinema. A função estratégica do texto sartreano A transcendência do ego é um bom exemplo, uma vez que o mesmo inadvertidamente descortinava a hipótese de um campo transcendental impessoal, constituindo uma antecipação de algo caro a Deleuze: “Eis que se desenha sobre o fundo dessa consciência desprovida de um eu o vulto atordoado e estúpido da natureza naturante!” (2015: 104) Mas aqui também Ronchi mostra com habilidade um outro lado da construção deleuzeana: destituindo os últimos resíduos de intencionalidade da consciência fenomenológica, Deleuze serviu-se das pesquisas de uma outra figura importante, a saber Raymond Ruyer. Desse pouco conhecido filósofo da biologia, Deleuze retoma sobretudo a ideia, definida por Ronchi como whiteheadiana, de que “toda entidade atual – o que equivale a dizer todo ser realmente existente – é um processo capaz de autossobrevoar-se a uma velocidade infinita” (2015: 105). Trata-se sempre da imanência, de uma consciência desprovida de ego e que acomuna todos os entes, ou melhor, de uma consciência que não é de algo, como em Husserl, mas que é algo, tal como em Bergson. Eis que emerge novamente o Deleuze filósofo da imagem em si e da reviravolta do transcendental, kantiano e, em seguida, fenomenológico; um filósofo para o qual, no cinema, tem-se “um conjunto de imagens que existem em si mesmas, um imenso espetáculo sem espectador, uma memória sem lembrança ou uma consciência sem testemunho” (2015: 110).
Ronchi está particularmente interessado, em sua leitura de Deleuze, à natureza em seu aspecto naturante, a qual, como já mencionado, ele prefere aproximar à categoria whiteheadiana de processo, em vez daquela, considerada ainda excessivamente metafísica, de devir. Deslocando o eixo do finito ao infinito, Deleuze teria não só declarado o seu profundo espinosismo, teria mostrado que também para a filosofia poderia valer o que viria a ser reconhecido como real pela ciência (tal como afirmariam mais tarde Prigogine e Stengers )7: o ser humano não goza mais de privilégios ontológicos, não é mais o fundamento do pensar. Se é verdade, enfim, que a obra de Deleuze não foi uma filosofia do limite e sim do evento, anti-historicista, pioneira de um pensamento inumano, não é menos verdade que a contingência e a crítica assumem aí um papel central, conquanto sejam concebidas em um modo próprio, a contrapelo de como certa tradição as pensou. Caso contrário não se consegue apreender a força de uma afirmação como esta, escrita junto com Guattari: “[…] há, de fato, uma razão da filosofia, mas é uma razão sintética, e contingente – um encontro, uma conjunção. Ela não é insuficiente por si mesma, mas contingente em si mesma” (DELEUZE; GUATTARI, 1996: 86)8 . Aqui fica bem caracterizado o ponto que nos separa da leitura de Ronchi, embora o assunto exija ulteriores desenvolvimentos. O empirismo transcendental é o nome que Deleuze escolhe para liberar-se da dimensão ordinária da doxa; é a potência dos corpos e de suas composições, o desfazer-se do organismos (o corpo sem órgãos). Outro ponto crítico do livro parece ser, em consonância com as leituras italianas, a escassa consideração do papel desempenhado pela figura de Félix Guattari. Pois, em geral, os estudiosos tendem a distinguir em facetas reconhecíveis o filósofo (Deleuze) e o teórico inclassificável (Guattari, misto de psicanalista, ativista político, teórico, etc), quase como quem quer evitar o confronto direto com esse estranho par, e com as complexas perspectivas filosóficas aí inauguradas (neste ponto a influência de Žižek parece totalmente negativa). Enfim, a ideia de um Deleuze filósofo da natureza é acompanhada pela ideia de um Deleuze “reformista”9 , ambas convergindo de maneira bastante conciliadora com um recorte do último Lacan — mais um problema levantado por Ronchi e digno de atenção particular, tendo em vista as relações entre filosofia e psicanálise. Não à toa, mesmo aqui se reencontra a problemática dimensão política, posto que o livro passa ao largo do confronto com Marx, através Althusser, presente tanto em várias das sessões de O anti-Édipo, quanto em muitos outros textos. Nesse sentido a filosofia da natureza circunscrita por Ronchi parece sustentar-se toda sobre uma ideia de materialismo especulativo que ratifica o fim da crítica e que parece distanciar Deleuze e Guattari e alguns de seus melhores e mais revolucionários matizes filosóficos. Ainda assim, a perspectiva delineada por Ronchi oferece diversos elementos para uma discussão ampliada, com o intento preciso de extirpar de uma certa ingenuidade compartilhada por diversos leitores “desejantes” e pouco pacientes, que são atraídos mais pelos jargões que pelos conceitos.
Notas
1 giorgiomajer.gatti@gmail.com
2 a estrutura das primeiras monografias de deleuze deve muito à arquitetura dos sistemas filosóficos que a obra de gueroult nos legou.
3 em português, cf: diferença e repetição. 2a. ed. são paulo: graal, 2006, p. 162.
4 cf., pelo menos, r. ronchi, n=1. l’empirismo integrale di gentile e bergson, https:// www.academia.edu/12315367/n_1._lempirismo_integrale_di_gentile_e_bergson.
5 “o pensamento de deleuze é profundamente pluralista. ele fez seus estudos ao mesmo tempo que eu, e 5 ele preparava uma tese sobre hume. eu fazia sobre hegel. eu estava do outro lado pois, nessa época, eu era comunista, enquanto ele já era pluralista. e acho que isso sempre o ajudou. seu tema fundamental: como se pode fazer uma filosofia que seja uma filosofia não-humanista, não militar, uma filosofia do plural, uma filosofia da diferença, uma filosofia do empírico, no sentido mais ou menos metafísico da palavra.” in m. foucault, dits et écrits, n. 139, maggio 1973, ora in g. deleuze, che cos’è lo strutturalismo?, se, milano 2004: 71-72. em português, cf: m. foucault, a verdade e as formas jurídicas. rio de janeiro: nau, 2002: 132.
6 a centralidade de whitehead é um outro aspecto pouco enfrentado pelos estudiosos de deleuze, tema 6 pelo qual ronchi tem uma sensibilidade particular, ao menos em parte decorrente da influência de carlo sini. a presença de whitehead na filosofia de deleuze tende a ser bastante difusa, mas poderíamos destacar aqui, em particular, o capítulo vi de a dobra, leibniz e o barroco.
7 cf. prigogine y., stengers i., la nouvelle alliance. métamorphose de la science, gallimard, paris 1981; tr. it. di p. d. napolitani, la nuova alleanza. metamorfosi della scienza, einaudi, torino 1999.
8 em português cf: o que é a filosofia? são paulo: editora 34, p. 122.
9 se é verdade que o imediatismo político capta os humores adolescentes (embora se deva lembrar que 9 isso jamais foi concretamente proposto pelos dois autores), o “reformismo”, com a sua específica história e conotação política, não nos parece ser conciliável com a perspectiva filosófica daqueles que elaboraram o conceito de “máquina de guerra”, para dar apenas um esemplo. o aspecto político de ruptura e subversão inscrito na filosofia de deleuze e guattari aparece-nos enfraquecido nessa leitura de ronchi.
Referências
DELEUZE, G. BENE,C. Superpositions, Les Éditions de Minuit, Paris 1979; tr. it. Sovrapposizioni, Quodlibet, Macerata 2002.
DELEUZE, G. Différence et répétition, PUF, Paris 1968; tr. it. di G. Guglielmi riv. da G. Antonello e A. M. Morazzoni, Differenza e ripetizione, Cortina, Milano 1997. Diferença e repetição. 2a. ed. São Paulo: Graal, 2006.
DELEUZE G., GUATTARI F., Qu’est que la philosophie?, Les Éditions de Minuit, Paris 1991; tr. it. di A. De Lorenzis, Che cos’è la filosofia?, Einaudi, Torino 1996, p. 86. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34
Giorgio Majer Gatti – Dottore magistrale in Filosofia Università di Milano 1
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