Josué de Castro não nasceu geógrafo nem o “profeta da fome” como alguns gostam de chamar. Assim como a maioria dos autores e autoras, ele foi se construindo a partir de sua formação como médico. Nascido em 1908, no Recife, ele e sua família desprenderam um grande esforço para que entrasse em medicina, aos 15 anos, com documentos falsificados. Aos 21, Josué de Castro estava formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e voltou à sua terra natal para clinicar. A princípio estava interessado em psiquiatria e psicologia, escrevendo artigos nos jornais sobre Freud e assuntos diversos, como cinema e literatura. Mas acabou montando um consultório especializado em endocrinologia, como dirá ele, para engordar e emagrecer senhoras.
Em 1932, defendeu a tese O problema fisiológico da alimentação no Brasil para se tornar professor de fisiologia da Faculdade de Medicina do Recife. Foi por meio dessa área do conhecimento médico que Josué de Castro entrou no tema da alimentação. A princípio esse trabalho tratava de metabolismo basal e nada tinha a ver com a nutrição social, abordagem que estava nascendo para fora do laboratório. Foi Pedro Escudero, nutricionista argentino, que o convocou para olhar a alimentação dos trabalhadores para além das paredes. Foi então que Josué de Castro fez a pesquisa As condições de vida das classes operárias do Recife. Lançado em 1935, não foi o primeiro inquérito alimentar brasileiro, mas teve um componente fundamental. O recorte em bairros proletários, dado por Josué, conseguiu mostrar claramente a deficiência, em muitos sentidos, da alimentação dessa classe e a íntima ligação entre acesso ao alimento e renda na população urbana crescente no Brasil. Foi aqui que ele se questionou sobre uma fome coletiva, que é produzida no cotidiano e que mata, lentamente, as populações afetadas, não por inanição, mas por doenças associadas.
Portanto, foi na nascente nutrição que o autor formou uma parte importante das suas bases metodológicas. Mas outra parte considerável veio da geografia. Josué de Castro entrou em contato com essa ciência quando participou da fundação da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais no Recife, na qual assumiu a cadeira de Geografia e foi vice-diretor. Mas, pouco tempo depois, entre 1934 e 1935, mudou-se para o Rio de Janeiro e lá ensinou por um tempo antropologia física na Universidade do Distrito Federal. Foi apenas em 1938 que voltou à disciplina que o consagraria meio a contragosto. Com o fechamento da Universidade pelo então presidente Getúlio Vargas em 1937, ele perde o cargo e volta com a fundação da Universidade do Brasil lecionando geografia humana como professor adjunto, posição hierárquica que não o agrada.
A partir da ideia de áreas formada no pensamento geográfico da época, principalmente de autores como Vidal de La Blache, que Castro vai propondo a divisão do espaço pelos elementos naturais e culturais que formam uma totalidade interpretativa e não hierarquizada. “Vai propondo” porque ele, paulatinamente, vai inserindo essa abordagem em seu trabalho e desenvolvendo as bases do que será o livro Geografia da Fome. A ideia tinha surgido antes, em A alimentação brasileira à luz da Geografia Humana, lançado em 1937.
Mas foi em Geografia da fome que ele desenvolveu de forma mais acabada o princípio norteador e divisor dos capítulos, a proposta de que o Brasil era dividido por áreas de fome, lugares onde pelo menos metade da população apresentava sinais de subnutrição claros. É preciso considerar que o livro foi publicado em 1946, um ano após o término da Segunda Guerra Mundial. A fome, que foi imensa nesse período, virou tema de primeira importância como na Conferência de Alimentação de Hot Springs, em 1943, na fundação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), e na ajuda que os EUA iriam dar para países europeus e, mais tarde, latino-americanos.
De forma muito objetiva, Josué de Castro estava dizendo em Geografia da Fome: essa fome avassaladora, seja a dos campos de concentração ou dos países atingidos pela batalha, não é mais importante que a subnutrição e má nutrição que vemos na maioria do planeta, na maioria dos corpos do mundo. O que vocês chamam de subnutrição, podemos chamar de fome endêmica. Portanto, a fome não é causada apenas por fatores pontuais ou externos, como guerras ou crises climáticas, ela é produzida socialmente e politicamente pelas decisões humanas de não permitir que uma parcela significativa da população acesse os alimentos necessários para a reprodução cotidiana da vida. Uma ideia de fome mais expandida para além do conceito de inanição.
As áreas de fome seriam de dois tipos. Área de fome epidêmica, no caso o sertão nordestino, onde há crises quando há seca, com a saída do curso regular das coisas. Nesse momento, haveria uma crise aguda de fome, intensa, mas momentânea. Nos momentos de chuva, a população teria mais acesso ao alimento. Diferentemente das áreas endêmicas de fome, como o nordeste açucareiro e a região amazônica, onde a fome é perene, causada por relações sociais que a produz. Aqui, a população tem acesso ao alimento, mas sempre de forma insuficiente. Por fim, temos mais duas áreas, chamadas de áreas de subnutrição, por apresentarem índices menores do problema, que seriam o centro-oeste e o extremo sul.
As bases metodológicas da nutrição nas quais se baseou o autor para suas análises, assim como das pesquisas que utilizou para montar as áreas de fome brasileiras, foram construídas no centro do mundo capitalista, principalmente Inglaterra, França e Estados Unidos, portanto, eurocêntricas. Essa transplantação para uma realidade específica, no caso o Brasil, mostra no livro Geografia da Fome os seus limites, principalmente quando ele examina a área amazônica. O ponto central da investigação sobre o consumo alimentar para essas pesquisas nascentes era a aquisição de alimentos, principalmente comercializados e via monetária. Mas, como hoje sabemos, a maior parte da população amazônica, composta por povos tradicionais, não acessava alimentos dessa forma. Josué de Castro deu pouca atenção à alimentação desses povos, inclusive interpretando-a como economia destrutiva, que “vivia da simples coleta dos frutos nativos, da caça e da pesca” (Castro, 2022, p. 50). Imperava a concepção de que era preciso dominar e submeter a natureza aos interesses da sociedade. Tendo essa ideia como telos, os modos de vida que não se formavam baseados nessa premissa eram vistos como atrasados. Apesar de citar brevemente as populações indígenas, desenvolve muito pouco seus hábitos alimentares, os considera primitivos e inábeis para lidar com as carências específicas e desconsidera uma gama grande de alimentos nativos colhidos na floresta e saberes produzidos pelas diversas etnias. Quando olha para a fome do local, o autor usa principalmente fontes que tratam das populações migrantes, formada, em sua maioria, de nordestinos que iam à região amazônica para o ciclo da borracha, como quando fala do surto de beribéri. Claro, entrando em contato com uma floresta que não tinham o menor domínio, passavam a depender exclusivamente dos alimentos transportados com muita dificuldade para essa região ou de pequenas áreas de agricultura, e muitos pereceram de fome. Em alguns momentos, o autor se vale de estudos que olharam a população urbana e que, portanto, já haviam entrado no circuito no qual a maior parte do acesso ao alimento se dava pela comercialização e, assim, estava diretamente ligada à exploração do trabalho e à renda. Mas essa não era a maioria. Ainda seguindo essa linha, sabemos, a partir dessa e de outras obras, que os alimentos mais valorizados nessa época e corroborados por Josué de Castro eram o leite de vaca e seus derivados, carne bovina e ovos, também a partir de padrões europeus de alimentação. Se esse é o objetivo, “a floresta é um obstáculo para a criação de gado” (Castro, 2022, p. 55).
Isso não tira, contudo, a importância que tem o livro para pensar o Brasil. É preciso localizar o estudo no momento em que ele foi feito, quando a ideia de desenvolvido era hegemônica e tinha como modelo os países europeus. Era preciso levar os subdesenvolvidos até lá. O elemento fundamental dessa publicação é a chamada para olhar as bases estruturais e históricas da fome, utilizando esse conceito a partir de uma definição mais ampla, como vai dizer em tantos outros momentos, um fenômeno biológico de causas sociais. Esse será o princípio norteador de todo seu esforço de vida e a lente pela qual precisamos olhar o fenômeno.
Geografia da fome consagrou o autor. A obra teve uma imensa repercussão e não foi por acaso. Além da habilidade de Josué de Castro de tecer relações sociais e promover seu trabalho, não podemos esquecer outros fatores que contribuíram para o seu sucesso para além da qualidade do livro. O primeiro era que a fome estava na ordem do dia, como já colocado. Em segundo, com a industrialização e a necessidade de corpos bem alimentados para o trabalho, a nutrição virou também uma ferramenta para pensar os países que queriam entrar na modernidade. Sua repercussão foi imensa, nacional e internacional e, com isso, ele se tornou o portador da temática.
A versão que temos em mãos, lançada pela editora Todavia em 2022, foi revista em um segundo momento do autor. Em uma carta trocada com o editor da Brasiliense, Caio Graccho Prado, em 1960, Josué de Castro mandou os originais da 7ª edição e disse que o livro havia sido ampliado e que tinha muitos dados revisados. “Chegara o momento de rever e atualizar este livro de forma a que ele não fosse apenas um retrato histórico da fome no Brasil, mas um retrato atual da atuação de fome no nosso país” (Castro, 1960). Aqui tem a inserção do subtítulo: “o dilema brasileiro: o pão ou o aço”, que vemos na capa da edição lançada esse ano, inclusive para atrair leitores que possuíam antigas edições não atualizadas, segundo o próprio autor.
Apesar da base metodológica não ter mudado e poucos dados terem sido revistos, Josué de Castro estava mergulhado em outro debate a partir das chaves desenvolvimento e subdesenvolvimento. Mesmo que, de alguma forma, essa premissa já estivesse colocada, os dois termos ganharam mais espaço nas propostas do autor e a ideia de se caminhar rumo ao desenvolvimento se tornou sua grande empreitada a partir desse momento, inclusive passando a falar que a fome era um problema biológico causado pelo subdesenvolvimento. Essa mudança foi inserida na edição desse momento, principalmente nas conclusões gerais.
Era o fim do governo de Juscelino Kubitscheck, de quem Castro era próximo. Como deputado federal por Pernambuco pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o autor apoiava o presidente e queria compor seu ministério, mas tinha divergências quanto a forma de levar o país à modernidade. A aposta deste governo era a industrialização, e Castro, assim como outros atores políticos, chamavam a atenção para o fato de que, sem olhar para o campo, não haveria como obter sucesso nessa empreitada. Era preciso rever a estrutura rural, promovendo a reforma agrária, dando melhores condições de vida ao trabalhador do campo, modernizando a produção e aumentando, assim, a disponibilidade de alimentos e matéria prima para as cidades e a indústria. “Apresenta-se deste modo a reforma agrária como uma necessidade histórica nesta hora de transformação social que atravessamos: como um imperativo nacional” (Castro, 2022, p. 309). O tema, naquele momento, tinha amplo apoio popular e era visto por muitos como a forma de se evitar a revolução comunista. Quando se tornou incontornável, chegando a ganhar adesão de mais de 70% em algumas capitais, segundo pesquisa realizada pelo Ibope (Lavareda, 1991, p. 87) no começo dos anos 1960, grupos de latifundiários passaram a tentar pautar o que seria a tal reforma agrária, como mostra uma manchete do jornal Correio Paulistano: “Principia o patronato agrícola a aceitar a ideia da Reforma Agrária” (Anônimo, 1956). Estava posto o dilema do qual Castro apontou no subtítulo: alimento ou industrialização.
Quando João Goulart assumiu a presidência, em 1962, Castro se tornou embaixador do Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU) e passou a morar em Genebra. Com o golpe militar, em 1964, ele estava na Europa e por lá ficou, constando na primeira lista dos que tiveram os direitos cassados. Um ponto fundamental para constar nessa lista foi a defesa da reforma agrária. Com o golpe, a ideia foi calada e nunca chegamos a implementar a reforma agrária de fato, apesar de termos os dispositivos legais para fazê-la. E a fome, que foi seu tema não apenas de pesquisa, mas de atuação pública e política, permaneceu no Brasil.
Reeditar esse livro tão fundamental para entender o país aconteceu em um momento muito oportuno, como lembrou Silvio Almeida no seu prefácio acrescentado a essa nova edição. Apesar dos significativos avanços vistos após a implantação do Programa Fome Zero em 2003 pelo Partido dos Trabalhadores (PT), a fome voltou com força total nos últimos anos. Se usarmos a proposta de interpretação mostrada por Josué de Castro em Geografia da Fome, passamos a entender que a pandemia provocada pela COVID-19 foi uma catalisadora de uma soma de fatores que aumentaram os índices de fome. As desigualdades estruturais da nossa sociedade, de raça, classe e gênero, que produzem a fome no mundo capitalista, onde tudo é mercadoria, se somaram a elementos conjunturais e decisões políticas que intensificaram esse fenômeno. Podemos citar a extinção ou o enfraquecimento de políticas públicas que promovem segurança alimentar, como a Política de Aquisição de Alimentos (PAA); a piora significativa do acesso à renda e poder de compra da população, com o aumento do desemprego e a alta da inflação, principalmente do preço dos alimentos. Chegamos em 2022 com mais da metade do Brasil com dificuldade para colocar comida na mesa e dessa, 33 milhões sem nada para comer, em situação grave de fome (Rede PENSSAN, 2022).
Mas Josué de Castro nos ensinou mais do que o que está em Geografia da Fome. Ensinou que “o saber só tem sentido não para saber, mas para servir. Daí a necessidade, a meu ver, de que o homem de ciência, o intelectual, se identifique com a realidade social brasileira para servir às coletividades brasileiras” (Castro, s.d.). Ele não apenas disse, como dedicou sua vida à luta contra a fome. Nesse sentido, Silvio Almeida e Milton Santos são grandes nomes para prefaciar e apresentar essa publicação, dois homens que atuam, no caso de Milton Santos atuou, na sociedade para além dos muros universitários. Precisamos aprender com eles, também, como ser parte da mudança desse cenário.
Referências
ANÔNIMO. Principia o patronato agrícola a aceitar a ideia da Reforma Agrária. Correio Paulistano, p. 11. Rio de Janeiro: Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, 1956.
CASTRO, J. Geografia da Fome. São Paulo: Todavia, 2022.
CASTRO, J. Carta enviada em 29 de agosto a Caio Graccho Prado. Acervo Josué de Castro, pasta 115. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1960.
CASTRO, J. Discurso no grêmio Politécnico da Faculdade Politécnica de São Paulo. Acervo Josué de Castro, pasta 56. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, s.d.
LAVAREDA, A. A democracia nas urnas. Rio de Janeiro: Rio Fundo; Iuperj, 1991.
REDE PENSSAN. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil [livro eletrônico]. São Paulo, 2022.
Resenhista
Adriana Salay Leme – Universidade de São Paulo. E-mail: adrianasalay@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-3608-5766
Referências desta Resenha
CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. São Paulo: Todavia, 2022. Resenha de: LEME, Adriana Salay. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 15, n. 2, p.643- 647, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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