O aforismo 248 do livro A Gaia Ciência de Friedrich Nietzsche traz esta indagação: “De que vale um livro que não nos transporte para além dos livros?”. Partindo desse critério, o recente trabalho Genética – escolhas que nossos avós não faziam1 da consagrada cientista brasileira Mayana Zatz possui um enorme valor. Afinal, desde as primeiras páginas dele nos sentimos impelidos a buscar novas informações (em livros, claro, mas não apenas…) e a travar diálogos com amigos, professores e familiares a respeito das inusitadas situações e dos difíceis casos relatados pela geneticista. Nas suas pouco mais de duzentas páginas o estudo de Zatz tanto coloca o leitor instruído frente a dilemas éticos inquietantes quanto obriga o apreciador leigo a pensar os rápidos e irreversíveis achados atuais das ciências biomédicas.
Genética começa com duas curtas e elogiosas apresentações as quais, em síntese, situam as imbricações entre a ciência e as questões que envolvem o Direito e decisões éticas. Ambos os textos indicam como a jurisprudência brasileira encontra-se atrasada em relação aos avanços e implicações contemporâneas das biociências. Os treze capítulos da obra se desenvolvem sem tecnicismos desnecessários e, com acerto, a autora dispensa desviantes notas de rodapé ou pilhas de referências para consulta. As partes do volume podem ser lidas separadamente sem grandes prejuízos (embora ocasionalmente umas remetam às outras) e um instrutivo glossário de termos técnicos foi adicionado ao final do livro, com vistas a eliminar dúvidas conceituais pontuais. Vale destacar, por fim, a inclusão de uma resumida lista bibliográfica e de sites na internet, ferramentas de investigação preciosas que ajudam o leitor a aprofundar e refinar seus conhecimentos.
O clima do livro de Zatz envolve os dilemas éticos, promessas, fantasias e dados factuais suscitados pelo crescente conhecimento da genética humana e suas aplicações nas práticas de diagnóstico e tratamento médico. Contudo, um dos traços mais relevantes deste volume consiste no fato de que tais discussões procedem da experiência da autora junto ao CEGH, grupo de pesquisadores brasileiros dedicados ao projeto de mapeamento do Genoma Humano. Com efeito, isto dá à objetividade factual do escrito um tom de confidência e de auto-promoção que, de resto, realiza uma das principais e mais difíceis tarefas daquele centro de investigação: a divulgação científica.
Podemos destacar ao menos três grandes temáticas perpassando o Genética…, a saber: (1) história e curiosidades das pesquisas gênicas, (2) jurisdição e bioética e (3) uma forte crítica ao reducionismo biológico (concepção segundo a qual seria possível explicar e prever os traços do comportamento humano estritamente a partir de informações colhidas no DNA dos indivíduos). Com relação à primeira, aprendemos sobre a história do avanço da genética em nossos tempos, da participação do Brasil nesse contexto, e relembramos de casos de repercussão nacional e mundial que tiveram a genética por protagonista. O segundo aspecto de relevância do livro relaciona-se à jurisdição que envolve os estudos sobre os genes. A autora discute a regulamentação brasileira acerca das regras de pesquisa e adverte para o descompasso existente entre a normatização legal e a prática científica. O trabalho em revista salienta que outros países estão muito mais avançados nas reflexões bioéticas concernentes às questões de hereditariedade ou predisposição a doenças (págs. 54, 96, 121). E, por mais que a realização das pesquisas no Brasil seja rigorosamente submetida à apreciação das agências nacionais de controle, os trabalhos ainda são fortemente influenciados por princípios de natureza religiosa (págs. 136, 182). Isto nos conduz imediatamente às controversas situações – reais e hipotéticas – que atravessam o Genética e que conferem à leitura dele um prazer peculiar. A cada episódio investigado nos questionamos, por exemplo, sobre o valor, limite e fundamentação do controverso princípio de confidencialidade entre médico, equipe, paciente e familiares. Ainda que, na prática, haja suporte normativo para a condução profissional relativa aos dilemas de informação, a geneticista sublinha resultados graves derivados de notícias inesperadas ou de descobertas “acidentais”. Este ponto se torna ainda mais complicado quando desvendamos que, embora bastante recorrentes na rotina médica, inexiste consenso quanto à permissividade da interferência profissional nas decisões do paciente.
O terceiro traço (e talvez o mais impactante teoricamente) que convém destacar espelha a posição da cientista frente ao receio que, desde os primórdios, ronda a área da Genética: reduzir as riquezas da vida e das experiência humanas às leis naturais que governam o comportamento genético. Primeiro, Zatz é clara ao afirmar que o estado atual da ciência é repleto de lacunas e incertezas, ou seja, não há nada em curso que permita afirmar a infalibilidade das “leis genéticas”. Sobretudo porque, como ela mesma reforça, os achados nesta área são tão dinâmicos que muitos dos conhecimentos corroborados atualmente podem ser refutados, havendo muita investigação a ser realizada (págs. 104, 109, 117, 136). No mais, ao longo de todo livro a autora busca afastar o dogmático fantasma do “determinismo genético”. Assim, ela assegura que o reconhecimento de possíveis predisposições hereditárias não significa, de maneira alguma, a confirmação irretorquível de um diagnóstico. Trata-se de insistir que, não obstante a vida apresentar uma dimensão biológica como substrato, o ser humano é um organismo que está em constante interação com os ambientes cultural e geográfico (págs. 106, 165). Isto tudo tem ao menos duas instrutivas consequências imediatas: de um lado, vale como uma dose de serenidade às alarmantes e publicitárias promessas que, desde sua origem nos anos 1990, gravitaram em torno de algumas concepções do Projeto Genoma como uma proposta de definição estritamente biologicista do Humano; por outro, contribui para elevar a qualidade dos debates a respeito de tópicos como a clonagem terapêutica.
Descrever em detalhes os impasses e dilemas éticos trazidos pela escrita elegante de Zatz poderia tirar algo do gosto que a leitura de Genética proporciona. Este é um movimento que o leitor precisa cumprir por si. Claro que podemos indicar lacunas ou deslizes no livro. Assim, a conclusão poderia ser mais profícua – não apenas no sentido de oferecer uma espécie de síntese do percurso trilhado, mas especialmente em propor um diálogo frontal com pensadores da Bioética. O fato é que Zatz condensa em alguns capítulos temas tão diversos e complexos quanto: clonagem, engenharia genética, bioética, aconselhamento genético, história da medicina contemporânea, testes de dopping esportivo e paternidade, eugenia e mercado de testes para predisposições genéticas. Este esforço é, por si e dentro do escopo da proposta, louvável. E, mais valioso, ela fecha o trabalho com a enfática afirmação de que “a ciência avançou depressa demais e não houve tempo para que uma discussão ética acompanhasse a sua evolução […] São assuntos que nos dizem respeito agora e no futuro e que não podem ficar restritos aos meios académicos”.2 Se ela está certa, como parece ser o caso, então convém estreitar a distância que separa os avanços científicos de nossas expectativas culturais. Do contrário, conforme o próprio Genética sublinha, não teremos garantias de que, às escondidas, não tenhamos cientistas realizando pesquisas contrarias às normas éticas – e então, se for o caso, não teremos ferramentas jurídicas para avaliar a legalidade de tais investigações.
Notas
1. ZATZ, Mayana. Genética: escolhas que nossos avós não faziam. São Paulo: Editora Globo, 2011.
2. ZATZ, Mayana. Genética: escolhas que nossos avós não faziam. São Paulo: Editora Globo, 2011, p.188.
Resenhista
Luiz Henrique de Lacerda Abrahão – Professor do Instituto Federal de Minas Gerais – IFMG. Campus Ouro Preto. Doutorando em Filosofia – UFMG. E-mail: luizpaideia@hotmail.com
Referências desta resenha
ZATZ, Mayana. Genética: escolhas que nossos avós não faziam. São Paulo: Editora Globo, 2011. Resenha de: ABRAHÃO, Luiz Henrique de Lacerda. História da Ciência, Bioética e Genética: dilemas e debates contemporâneos. Temporalidades. Belo Horizonte, v.3, n.2, p.226-229, ago./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]
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