Os estudos de gênero têm impulsionado pesquisas de múltiplas áreas. Um meio de compreender os sentidos e as relações complexas entre diversas formas de interação humana, gênero se refere, conforme postulado por Joan Scott, às construções históricas, marcadas pela cultura e pelas relações de poder que fundamentam uma hierarquia e uma assimetria social entre homens e mulheres. Percepções, gestos, sentimentos, pensamentos, hábitos e as maneiras de perceber a si e aos demais oferecem suporte para uma compreensão acurada acerca das relações de gênero. Nesse sentido, ganha relevância a aproximação dos estudos de gênero e a cultura visual, uma vez que as imagens desempenham um papel primordial na contemporaneidade por tocar os imaginários sociais e contribuir para a construção das visões de mundo dos indivíduos. As reflexões que possibilitam, permitem problematizar a constituição e distribuição de poder e prestígio nas sociedades.
O Dossiê que ora apresentamos, mostra a convergência de interesses e preocupações de um conjunto de investigadoras (es), advindos de diferentes campos disciplinares, na tentativa de contemplar uma pluralidade de abordagens tendo como foco gênero, mulheres e imagem. Por isso, agradecemos a generosa colaboração de todas (os).
Esperamos que os resultados das inúmeras perspectivas abertas – criativas e instigantes -, contribuam para desconstruir os papéis, os lugares ocupados, como também por focalizar as funções das mulheres e dos homens ao longo da história e possa favorecer a continuidade dos debates e suas repercussões nas práticas sociais.
Abrimos este dossiê apresentando o diligente ensaio de Ana Cristina Teodoro da Silva, Gênero como sertão, veredas em construção – filme, minissérie e livro. Em seu texto encontraremos reflexões acerca de papéis de gênero atribuídos a homens e mulheres e suas relações, presentes no livro Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, publicado em 1956, e nas produções adaptadas desta obra, quais sejam, a minissérie Grande Sertão: Veredas, produzida pela Rede Globo, exibida em 1985 e o filme Grande Sertão, dirigido pelos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, de 1965. Em sua viagem pelas três narrativas, problematiza semelhanças, diferenças e ressignificações pertinentes às diferentes linguagens e a como cada período e cada mídia puderam configurar a rica trama rosiana.
Lançando mão do movimento de trazer o gênero ao contexto da imagem, em Poéticas de gênero e a transexualidade das fotografias bordadas, Marcela Vasco empreende uma aproximação entre os estudos da transexualidade e a antropologia da imagem. A transexualidade é entendida ao longo de todo o trabalho não como uma performance teatral onde o gênero é encenado, mas como transformações físicas, sexuais, sociais e políticas. Ao trabalhar com imagens tornando mais claro trajetórias de vida e de transição dos(as) interlocutores(as) e também a maneira como a fotografia era interpretada por eles(as), a autora recorre ao uso do bordado como método etnográfico, visando uma abordagem mais particular tanto da transexualidade quanto da imagem, e discute as potencialidades dos “encontros, contornos e emaranhados das linhas que as ligam”.
No artigo de Amaral Palevi Gómez Arévalo, Identidades en disputa: producciones audiovisuales LGBTI en El Salvador, encontraremos análises de produções audiovisuais salvadorenhas que tematizam as representações de identidades lésbicas, gays, bisexuais, trans e intersexuais. O autor preocupase em refletir sobre “los procesos de violencia que se instauran sobre determinados cuerpos por ejercer una sexualidad, identidad y expresión de género diferentes a las que ordena la norma heterossexual”. Para isso trouxe análises de documentários que narram a vida de pessoas que vivem em El Salvador assim como alguns curtas produzidos por diversos canais e organizações que abordam realidades LGBTI. Entre as narrativas e linguagens que analisa também estão as campanhas publicitárias de conscientização e fim da discriminação, e os áudios, como canções, “radio-conto” e publicidades divulgadas por este meio. Trata-se de trabalho que nos permite conhecer e refletir sobre as realidades desses indivíduos, as manifestações de discriminação das pessoas salvadorenhas e as respectivas formas de enfrentar tais questões.
Scripts juvenis delineados em imagens digitais: consumo, relações de gênero e sociabilidades, de Ana Carolina Sampaio Zdradek e Dinah Quesada Beck, nos contempla com debate que se insere no campo dos Estudos Culturais e de Gênero. Recorrendo ao movimento metodológico da etnografia e entendendo a linguagem como processo central nas cenas publicitárias da campanha “Fanta – Leva na boa”, o estudo coloca em tensionamento o modo como se movimentam normas, definições e compreensões a partir da construção de identidades descolada e alto astral produzidas. Resgatando os desdobramentos teórico-conceituais com relação aos scripts de gênero e sexualidade, as autoras analisam a representação de juventude e as sociabilidades que a comunicação digital proporciona na história do presente, ressaltando que a participação ativa de jovens nas redes sociais se mostrou a principal estratégia para efetivação do consumo e, nesse cenário, diferentes roteiros foram construídos para vivências jovens, os quais acionam efeitos de sentido sobre comunicação digital, gênero e relações sociais.
Priscila Miraz de Freitas Grecco, analisa a presença de fotógrafas amadoras brasileiras, durante as décadas de 1940 e 1950. Seu artigo, A presença feminina em fotoclubes no século XX: apontamentos preliminares, historiciza a participação das mulheres nos fotoclubes, especialmente no Foto Cine Clube Bandeirante, atuante na cidade de São Paulo desde 1939, e analisa a produção das mulheres fotoclubistas, suas trajetórias, as condições de produção de projetos pessoais das amadoras e profissionais que buscaram o fotoclube para pensar e produzir a fotografia. Nesse contexto, a autora nota as dificuldades para o desenvolvimento da pesquisa com as mulheres nos fotoclube, assinalando que a escassez de documentação sobre quem eram essas mulheres contribui para pouco sabermos sobre como era ser sócia de um clube de fotografia nos anos de 1940/1950 no Brasil. Suas análises reiteram a necessidade de trazer à tona a participação das fotógrafas nesse ambiente que se manteve por muito tempo majoritariamente masculino e de romper um silêncio que se relaciona muito mais com as questões de gênero, refletindo no comportamento social restritivo para as mulheres na sociedade como um todo, do que com qualquer questão que envolva o fazer fotográfico.
A relação mulher/fotografia também é o tema que nos apresenta Maria Cristina Pereira em O Revivalismo medieval pelas lentes do gênero: as fotografias de Julia Margaret Cameron para a obra The Idylls of the King e outros poemas de Alfred Tennyson. A partir das fotografias de Cameron, produzidas no século XIX, para compor o livro de poemas de Alfred Tennyson, e também de ilustrações feitas para outras obras desse mesmo poeta, a autora nos mostra em suas análises o pioneirismo de uma mulher na arte da fotografia, com uma estética “pouco convencional” ao apresentar imagens “fora de foco”, assim como a predominância de mulheres para retratar o período medieval como tema das suas produções. Destacando a peculiaridade das fotografias de Cameron, o estudo traz comparações com aquelas produzidas pelo ilustrador francês Gustave Doré, seu contemporâneo.
Também tendo como referencial teórico os Estudos Culturais e de Gênero, o artigo de Luciana Rodrigues de Oliveira e de Joanalira Corpes Magalhães Esse é o Show da Luna: investigando gênero, ensino de ciências e pedagogias culturais, traz como objeto de análise o desenho animado. Ao investigarem as potencialidades pedagógicas do desenho analisado e as falas das crianças participantes acerca do artefato cultural O Show da Luna, as autoras discutem e problematizam os entendimentos sobre o que é ciência, sobre o ser cientista e mulheres na ciência que as crianças têm. No bojo dessa discussão, uma das questões fundamentais debatida é a possibilidade de abordar gênero e ciência desde a Educação Infantil, respondendo às crianças e aos questionamentos presentes em seu cotidiano.
Trazendo questões bastante contemporâneas e efervescentes no campo da política, em Impeachment, perversão e misoginia são apresentadas considerações acerca das representações veiculadas pelas Revistas Veja e Isto É, nos anos de 2015 e 2016, por meio de textos e imagens, referentes ao processo de impeachment de Dilma Roussef, presidente da República do Brasil naquele momento. Muriel Emídio Pessoa Amaral e José Miguel Arias Neto partem do princípio de que a forma como algumas mensagens sobre a presidente foi veiculada configurou-se em montagens perversas, sendo que tais narrativas políticas contribuíram para a midiatização do ódio e da misoginia. Para empreender tais reflexões trabalharam com a definição de discurso de Michel Foucault, de gênero com Joan Scott e o conceito de perversão de Daniel Sibony.
Desejamos boa leitura a todos/as!
Edméia Ribeiro – Doutora em História. Pesquisadora na área de História da América, mulheres e gênero. Docente do Curso de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: edmeialondrina@uel.br
Maria Cristina Cavaleiro – Doutora em Educação. Pesquisadora na área de educação, gênero e diversidade sexual. Docente adjunta do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) / Campus Cornélio Procópio. E-mail: mariacristina@uenp.edu.br
RIBEIRO, Edméia; CAVALEIRO, Maria Cristina. Apresentação. Domínios da imagem, v. 11, n. 20, jan/jun, 2017. Acessar publicação original [DR]
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