“É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar”
Michel Foucault
Não é demais insistir sobre a importância que os estudos do gênero e da sexualidade adquiriram nas últimas décadas, no Brasil e no mundo, nem é demais destacar que o sucesso dos instigantes trabalhos desenvolvidos nas universidades e em diferentes centros de pesquisa e educação respondem, sem dúvida alguma, a necessidades crescentes suscitadas pelas profundas transformações nos modos de vida, na produção das subjetividades, nas formas da sociabilidade e no imaginário cultural, na contemporaneidade.
Em nosso país, em especial, essas mudanças podem ser facilmente constatadas na maneira pela qual as mulheres se autonomizaram em grande parte, conquistaram o espaço público, questionaram a arraigada “ideologia da domesticidade” e o confinamento na esfera familiar e privada, o que também se evidencia na maneira como têm alcançado importantes postos de direção em várias frentes, demostrando enorme capacidade criativa e de gestão. Essas transformações também podem ser percebidas nas próprias definições da masculinidade construídas pelos jovens – e não apenas por eles -, que trazem novos modos de existir masculinamente e reinventam a cultura masculina, e ainda, na visibilidade que os grupos gays, lésbicos, transgêneros, entre outros, com suas demandas e inquietações têm adquirido ao longo das últimas décadas, em sua luta para desfazer oposições binárias que cristalizam identidades sexuais e normatizam o comportamento de todos e todas, enfim, em sua luta para viver sem terem de renunciar a si mesmos.
Que já não somos os mesmos e as mesmas é fácil de perceber, especialmente num país onde a sexualidade e o corpo tiveram centralidade na construção da identidade nacional, desde os inícios da colonização, como bem mostrou o antropólogo Richard Parker, em seu livro Corpos, Prazeres e Paixões. Cultura sexual no Brasil contemporâneo, publicado em 1993.
Desde o final da década de sessenta, quando a revolução sexual e a progressiva ascensão do feminismo, em plano internacional, tiveram como efeito a pergunta pela realidade das mulheres e, por conseguinte, pelo seu passado, pelas narrativas e pelos mitos que lhes foram transmitidos sobre seus corpos, sexualidade e desejo, até a entrada da categoria do gênero, no início da década de noventa, uma intensa produção intelectual reconfigurou o cenário dos temas, das teorias e das interpretações pesquisados nas academias, com o respaldo fundamental da Filosofia da Diferença, em especial, com os aportes de filósofos como Foucault, Deleuze, Derrida, entre outros nomes consagrados e da própria epistemologia feminista, já então bastante desenvolvida nos Estados Unidos e na Inglaterra.
No Brasil, em meio à modernização e ao desenvolvimento socioeconômico acelerados, em que pesem o aprofundamento das desigualdades sociais e o fechamento político, abandonavam-se as identidades sexuais tradicionalmente vividas por décadas a fio, (pós)modernizavam-se os comportamentos, as aparências e a moda nas grandes cidades. Nesse contexto, outras explicações e novas interpretações eram buscadas, assim como se fazia urgente o contato com passados perdidos que ajudassem a diagnosticar o presente e a entender como havíamos chegado a ser o que então éramos, querendo ou não. O cotidiano entrava na mira da crítica e a vida era colocada em ponto de interrogação.
A crítica das identidades sexuais colocou-se como uma questão da maior importância nesse momento de desdobramentos da crítica do sujeito e da morte do Homem, demandando inúmeras pesquisas históricas, sociológicas, antropológicas, linguísticas e literárias, mostrando, ainda, a importância da inter | multi | transdisciplinaridade para o avanço do pensamento, já que a rígida demarcação das disciplinas, como se constatava, resultava não da evolução do conhecimento em relação a épocas anteriores, mas de relações modernas de saber-poder, deixando de nos ajudar a pensar e a nos entendermos, na atualidade.
Da história das mulheres à história da sexualidade, do corpo, da família, das crianças e da vida privada, a ampliação do campo temático de pesquisa foi muito rápida ou mesmo simultânea, colocando novos desafios teóricos e a exigência de outros conceitos e procedimentos teórico-metodológicos para a produção do conhecimento. Daí a agilidade com que novas problematizações e operadores foram incorporados, a exemplo da crítica foucaultiana da teoria do reflexo e da noção de discurso como transparência da realidade, ou então sua analítica do poder – entre disciplinas, biopoder, biopolítica, governamentalidade e poder pastoral – que afetaram profundamente e renovaram radicalmente as formas do pensamento contemporâneo.
A crítica do sujeito, da filosofia da representação, do pensamento fundado em oposições binárias, vale dizer, hierárquicas e excludentes, revelou que um novo mundo ou novos mundos só seriam possíveis a partir de outras formas de interpretação, que possibilitassem olhar de outro modo para o diferente, desestigmatizando-o, libertando-o da colonização discursiva e restituindo-o ao seu devido lugar. Definir orientais, negros, ciganos ou indígenas como bárbaros, perceber as mulheres como figuras excessivamente sexualizadas, entre ninfomaníacas e histéricas, ou então, produzir outros “perversos sexuais”, como os homossexuais e as lésbicas apenas provou a violência preconceituosa constitutiva de um modo de pensar que se tornara hegemônico desde o século XIX.
Ora, essas discussões incidiram fundamentalmente sobre a dimensão do poder e do controle exercido sobre os corpos dos indivíduos e das coletividades, subvertendo as definições de suas identidades, evidenciando que a noção de identidade, como bem explicou Foucault, nasce e conecta-se com a sexualidade desde aquele século, em que emergem as cidades grandes e modernas e o fenômeno da multidão com os pânicos referentes. Falar da identidade de um indivíduo, nesse sentido, significava definir e impor sua identidade sexual. Não significava revelar a verdade secreta do indivíduo, como afirmava o discurso hegemônico, mas implicava em sua localização num espaço já definido e demarcado, no qual teria poucas chances de movimento e expansão. Que os avanços nos processos de identificação tenham vindo com os estudos da polícia e da criminologia não é de se espantar.
Assim sendo, na partilha entre hetero | homossexuais evidenciou-se a dimensão do poder, como ato de dominação que atingia toda a humanidade, sem respeitar diferenças de classe, etnia, geração ou outras quaisquer. Todos | as deveriam existir e conduzirem-se a partir dessa ordem normativa expressa nas práticas discursivas construídas pela ciência moderna, especialmente a Medicina, legitimadas pelo Direito e reforçadas pela religião. A dominação assim praticada era naturalizada até mesmo no pensamento crítico de esquerda, para o qual a mudança econômica justificava tudo o mais.
Esses estudos desenvolveram-se intensamente nas décadas seguintes e um novo aporte enriqueceu a área dos estudos da sexualidade com a Queer Theory, introduzida no Brasil, no final dos anos noventa. Embora o movimento homossexual já tivesse produzido vários trabalhos discutindo as questões das “minorias”, desde os anos setenta, foi ao longo da década seguinte que nomes como Peter Fry, Edward McRae, Nestor Perlongher e Luiz Mott despontaram com força, impulsionando o campo. E como observa o sociólogo Richard Miskolci, no texto “Gender and Sexuality Studies in Brazil”, apresentado no Departament of Women’s Studies da Universidade de Michigan em 2008, tendo passado o pânico causado pela epidemia da AIDS, as pesquisas sobre as questões LGBT demandaram a teoria queer, com seu forte questionamento da heterossexualidade normativa e o desejo de dissolução das identidades normativas.
Desde então, têm sido inúmeras as produções e as publicações de artigos e livros no país, a exemplo da coleção Annablume Queer (Editora Annablume), dirigida por Miskolci, também coordenador do Quereres – Núcleo de Pesquisas em Diferenças, Gênero e Sexualidade na UFSCAR. Destaco, ainda, sua pioneira leitura queer da História do Brasil, publicada no livro O Desejo da Nação. Masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX (Annablume, 2012). Neste trabalho, Miskolci explora, em narrativas literárias bastante famosas, as formas pelas quais o desejo heterossexual é imposto pedagogicamente no governo das condutas e no adestramento dos corpos masculinos, desde cedo.
É, portanto, nesse quadro de referências conceituais e temáticas que se encontra o Dossiê Gênero e Sexualidade, publicado nesse novo número da revista Temporalidades, publicação discente do Programa de Pós-graduação em História da UFMG. Atesta a intensa mutação subjetiva, social, política e intelectual de que estou tratando, comprovando que os estudos de gênero e sexualidade, assim como os chamados “estudos queer” ainda têm muito a contribuir, sobretudo no sentido político de desfazer estigmas, ampliar questionamentos, reforçar denúncias, trazer à tona passados silenciados e incitar à produção de modos mais humanizados de vida, ou seja, modos capazes de perceber o outro e respeitá-lo em sua positividade.
Os dezesseis textos aqui reunidos, escritos por alunos | as de pós-graduação, assim como por graduandos de várias universidades do país, para além da entrevista bastante especial com a professora e pesquisadora Sarug Dagir Ribeiro, da UFOP, revelam-se não apenas bem construídos e atualizados, mas também desafiadores dos regimes de verdade instituídos que definem lugares demarcados e cristalizados por identidades sexuais e definições de gênero impostas a todos | as.
As mulheres aparecem não apenas na figura da vitimização, do sofrimento e da dor que marcam sua história, como mostram os textos que analisam a medicalização do corpo feminino ao lado da criminalização de suas práticas ou das intervenções cirúrgicas em seu corpo. Surgem também como figuras da rebeldia, a exemplo da imagem andrógina da “melindrosa” dos anos vinte e como ativistas capazes de questionar o racismo e o sexismo vigentes e de produzir intensas rupturas, a exemplo das combativas ativistas que construíram o feminismo negro, como a intelectual Lélia Gonzalez, demarcando as especificidades da condição das mulheres negras, num mundo dominado pelos brancos.
Vale lembrar que os homens também aparecem nos textos apresentados, que mostram a historicidade dos modos de sujeição aos códigos morais que, nas escolas, ou em outras instituições, impõem a heterossexualidade como maneira natural e correta de existir. Ao mesmo tempo, a invenção normativa e estigmatizadora do homossexual como figura da anormalidade e da monstruosidade aparece em registros regionais, mostrando que o fenômeno ultrapassou fronteiras geográficas e temporais para muito além do que poderíamos imaginar.
Um dos traços marcantes nesses trabalhos é a maneira como as discussões de gênero e da sexualidade se entrelaçam com a dimensão do poder e da política e o fazem de diferentes modos. É de se notar como desnudam as relações de poder e expõem as formas de estigmatização e exclusão nos processos históricos que analisam, mostrando que o capitalismo se consolidou e se mantêm não apenas com a exploração do trabalho e a acumulação do capital, mas também e sobretudo com a construção de um imaginário social e cultural que naturaliza as diferenças sexuais e as desigualdades sociais e instaura um olhar preconceituoso e excludente, de modo a garantir o governo de muitos por outros poucos. Assim, nesse universo restrito, bem mapeado e amplamente controlado, não há lugar para o diferente, para a expressão de espaços heterotópicos da subjetividade, valendo-me da expressão criada por Foucault, em seu texto “Outros espaços”.
A violência e a exclusão são as marcas principais na relação com a diferença que as leituras de gênero e queer aqui apresentadas põem a nu, afirmando a dimensão política desses processos de exclusão dos corpos diferentes pelos discursos e práticas da Medicina, desde o século XIX, que os estigmatizam como irracionais, logo, necessitando ser conduzidos e governados pelos racionais, brancos, heterossexuais, proprietários.
Mas gênero e política também se entrecruzam na maneira como é problematizada a atuação do partido político, no caso o PCB, em relação às mulheres e ao feminismo, ou ainda na recepção do público conservador às novelas televisivas que, no período ditatorial, questionavam modos rígidos e tradicionais de convivência, de organização familiar e de sociabilidade. De modo geral, vale observar que os autores | as também têm o cuidado de não afirmarem um único ponto de vista, como uma verdade acabada e definitiva, pois problematizam as questões que levantam e matizam os aspectos que podem ser percebidos como negativos e os positivos.
Esses artigos denunciam o poder em sua dimensão molecular ou fazem a crítica do partido político e da instituição psiquiátrica, como no Hospital do Juquery de São Paulo, mostrando de maneira abrangente as contribuições para a mobilização e luta femininas, no primeiro caso, a violência constitutiva das práticas médicas sempre vistas na perspectiva da cura e do conhecimento objetivo, no segundo. Assim sendo, esses textos problematizadores evidenciam a importância do conhecimento histórico de dimensões fundamentais da vida humana, antes consideradas secundárias, ou “superestruturais”.
As referências teóricas também unem esses estudos que se valem tanto da filosofia de Foucault, Deleuze, Bakhtin e Bauman, quanto dos estudos feministas e da teoria queer, indo do conhecido artigo inaugural de Joan Scott sobre a categoria do gênero, de 1986, ao famoso livro de Judith Butler, Problemas do Gênero: feminismo e subversão da identidade, publicado em 1991 e traduzido, no Brasil, em 2003, aos trabalhos de intelectuais brasileiros como Guacira Lopes Louro, Tomás Tadeu da Silva, Margareth Rago, Richard Miskolci e Berenice Bento, entre outros, que desconstroem o sexo biológico e apontam para a construção normativa e simbólica do corpo e a performatividade do gênero.
Para encerrar, gostaria de destacar brevemente a importância e a qualidade da entrevista realizada com a professora e pesquisadora Sarug Dagir Ribeiro, que de maneira sensata e delicada, remete à sua própria experiência de transexualização, atentando para a dimensão difícil, longa e dolorosa de um processo de mutação subjetiva e sexual que envolve todo o entorno social, como se sabe. Não se pode deixar de reconhecer que esse depoimento, para além da capacidade de análise que revela do seu próprio passado, para além de constituir-se como uma “escrita de si”, e não como um relato confessional, já que a professora e artista se abre ao contato e ao diálogo com o outro, revela uma extrema coragem da verdade, fazendo pensar na parrésia dos antigos, como nos mostrou Foucault em suas análises sobre as artes da existência desenvolvidas no mundo greco-romano.
Aos leitores e leitoras, o convite para essas estimulantes e imperdíveis leituras ou viagens, como preferirem!
Margareth Rago – Professora titular do departamento de História Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas.
RAGO, Margareth. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.7, n.2, maio | ago. 2015. Acessar publicação original [DR]
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