O terceiro Encontro do Grupo MODOs, realizado na Universidade Estadual de Campinas em setembro de 2016 com apoio do FAEPEX e do Museu de Artes Visuais da Unicamp, teve como tema Genealogias possíveis: arquivo, exibição e circulação. O evento buscava, como o dossiê aqui presente, refletir sobre as possibilidades de construir outras filiações, estabelecer afinidades antes impensadas e nem sempre legitimadas pela história da arte. Aos convidados presentes no evento juntaram-se outros pesquisadores, que atenderam nossa chamada pública, para compor o dossiê homônimo. Buscamos, com este primeiro dossiê da revista debater outros sentidos metodológicos em circulação, considerados como desafios que exigem diferentes abordagens conceituais e, ao mesmo tempo, uma atenta reflexão sobre as especificidades da história da(s) arte(s). Campos de poder em disputa, referências cruzadas, sistemas e conceitos em trânsito, sistematizações em xeque, alianças institucionais inusitadas, apropriações e ressignificações diversas ampliaram o campo da história da arte tradicional e tornou-se urgente (re)discutir suas bases conceituais e matéria constitutiva. Nesse cenário, o dossiê busca debater uma de suas mais importantes táticas: a constituição de genealogias.
O tema do dossiê explora a própria gênese da história da arte enquanto disciplina e sua ação discursiva ao destacar três aspectos que instituem e interferem na percepção das genealogias da arte e sua história: o arquivo, a exibição e a circulação. Tais eixos articulam as investigações de Luiz Cláudio da Costa, Marize Malta, Mauricius Martins Farina, Michael Asbury e Vera Pugliese. Em comum, todos se posicionam contra narrativas genealógicas que instauram valores normativos, discursos adâmicos e filiações lineares sobre a percepção da arte. Neles há um esforço para refutar identidades “originais”, a procura de uma essência das obras e a imobilidade das sucessões, “referências” e procedências. Os autores buscaram refletir sobre as genealogias a partir dos objetos de arte e seus percursos em espaços e agenciamentos diversos, construindo novas relações a partir de um espectro cultural mais amplo e atualizando nossas perspectivas.
Além do dossiê, publicamos o artigo de Anna Maria Guasch, que nos apresenta uma reflexão crítica sobre os primórdios de uma visão “globalista” da arte contemporânea, por meio da comparação entre os projetos editoriais das revistas Third Text e Art in America. A internacionalização e a circulação da arte são temas caros a Dária Jaremtchuk, que discute a “politica da atração”, orientada na condição e na defesa de valores “universais, operada por instituições estadunideneses e que levou muitos artistas latino-americanos aos Estados Unidos nos anos de 1960 e 1970. Políticas de mediação, modelos museológicos de organização das coleções e das exposições da arte celebrados nas Américas foram a preocupação do historiador da arte e museólogo Roberto Magalhães, numa visível crítica aos regimes celebratórios e devocionais operados para a arte.
Jorge Coli e Maria Bernardete Ramos Flores são autores de textos que revisitam tradições críticas e historiografias. Coli analisa dois conjuntos de obras com vistas a discutir o caráter dual e polarizado recorrente no pensamento de Aby Warburg. O primeiro conjunto gira em torno de uma tapeçaria quatrocentista analisada por Warburg em 1913 quanto à complexidade de sua inscrição histórica e simbólica e o segundo se refere à relação entre um Painel de seu Atlas Mnemosyne e o selo celebrativo de um acordo de paz em 1925, cujos desdobramentos históricos e simbólicos são examinados em diferentes camadas. Flores, por sua vez, avalia a produção de Edward Hopper, por meio de suas formas, que cortejam o vazio e o silêncio para expressar (e criar) ícones e clichês da vida moderna estadunidense. Para a autora, a arte de Hopper encontra-se sob o signo do Spiritus phantasmaticus, que operou sobre diferentes artistas, poetas e pensadores, postos a refletir sobre o mistério da realidade cotidiana. Para finalizar, Mariana Estellita Lins Silva pergunta-se sobre a condição narrativa do objeto museológico no museu Edson Carneiro e sua exposição de longa duração.
Em nossa segunda edição, reafirmamos nosso compromisso em ampliar a compreensão de como a arte é afetada por seus regimes críticos, historiográficos e exposivitos, dentro de sistemas de arquivamento e colecionamento que nos exigem distintos modos de ver a arte e conceber sua história.
Agradecemos a todos os autores pelas colaborações, aos pareceristas pelas avaliações, aos revisores pelo cuidado. A eles dedicamos este número, pela confiança em nossa jovem publicação.
Organizadores
Equipe Editorial
Referências desta apresentação
Equipe Editorial. Editorial. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v.1, n. 2, maio/ago. 2017. Acessar publicação original [DR]
Da adversidade vivemos! | MODOS. Revista de História da Arte | 2017
Da adversidade vivemos! | MODOS. Revista de História da Arte | 2017, COUTO Maria de Fátima Morethy (Org d), REIS Paulo (Org d), Nova Objetividade Brasileira (H. Oiticica) (d), Exposição (d), História da Arte (d), América – Brasil, Séc. 20, Hélio Oiticica (d), Modos (Mdd)
Da adversidade vivemos! – assim finalizou Hélio Oiticica, em tom de alerta e revolta, o manifesto de apresentação da exposição Nova Objetividade Brasileira, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em abril de 1967. A mostra contou com a participação de 40 artistas, entre os quais nomes emblemáticos da geração concretista e neoconcretista e recém ingressantes no circuito das artes, além de alguns convidados, entre eles dois cineastas (Antonio Carlos da Fontoura e Arnaldo Jabor). A maioria absoluta das obras expostas colocava em questão os códigos artísticos e institucionais tradicionais, bem como criticava o poder efetivo de transformação social atribuído à arte abstrata até o final dos anos 1950. Trazia para o centro do debate a questão da participação do espectador e o potencial revolucionário do objeto de arte no campo da ética, da política e do social.
Nova Objetividade Brasileira marcou um momento decisivo para a arte brasileira na proposição de um comprometimento político dos artistas, críticos e agentes culturais, bem como na tentativa de reformulação do conceito estrutural de obra de arte e de sua relação com o público. Inserida em um conjunto de exposições do período que promoviam um diálogo crítico com a realidade nacional, tais como Opinião 65, Propostas 65, Opinião 66, Propostas 66, Jovem Arte Contemporânea e Do Corpo à Terra, ela incitou a uma reflexão sobre um conceito crítico de vanguarda, que fosse operacional em um país “subdesenvolvido”.
Em seu texto-manifesto, “Esquema Geral da Nova Objetividade”, Oiticica discorre sobre as “múltiplas tendências” vanguardistas então em curso no Rio de Janeiro e em São Paulo, procurando “agrupá-las culturalmente” e criando o que Paulo Reis chama de súmula de um programa de vanguarda da arte nacional comprometida com seu tempo. Na avaliação de Rodrigo Naves, esta foi uma das “primeiras intervenções teóricas desse tipo de um artista brasileiro” (Naves, 2002: 8). Para outros autores, este texto será “seminal para a arte contemporânea, e não apenas a brasileira” (Freire, 2006: 20).
Oiticica acreditava que o fenômeno da vanguarda no Brasil dos anos 1960 “não [era] mais uma questão de um grupo provindo de uma elite isolada, mas uma questão cultural ampla, de grande alçada, tendendo às soluções coletivas”. Reconhece que a partir dos anos de 1964-65 ocorrera um extravasamento das fronteiras artísticas para o domínio do político e acreditava que todo artista deveria tomar consciência de seu papel social. De modo semelhante a Ferreira Gullar, perguntava-se ainda “como, num país subdesenvolvido, explicar o aparecimento de uma vanguarda e justificá-la, não como uma alienação sintomática, mas como um fator decisivo no seu progresso coletivo? Como situar aí a atividade do artista? O problema poderia ser enfrentado com uma outra pergunta: para quem faz o artista sua obra?
Celebrando o cinqüentenário da mostra, este dossiê buscou reunir textos que analisassem seu significado ou que tratassem do campo da arte e da cultura nas décadas de 1960 e 1970, a partir de duas perguntas-chave: qual o papel da arte de vanguarda e da contracultura em países sob ditadura? Quais as brechas de uma experimentação artística e de costumes em regimes repressivos e violentos? Visamos, com isso, não apenas realizar um exercício historiográfico e contextual como também propor vetores capazes de traçar novas questões relacionadas à exposição, ao momento cultural e político brasileiro e sul-americano, às pesquisas artísticas experimentais no Brasil e no exterior e aos diálogos entre grupos de vanguarda e entre arte de vanguarda e sociedade. Para tanto, convidamos especialistas no assunto e que muito nos honraram com sua participação. Suas contribuições abordam, entre outros temas, as mudanças no imaginário artístico nessas duas décadas; as conexões entre ética, política e estética; a relação entre vanguarda e revolução operante nos países sul-americanos; a emergência do corpo como espaço de agenciamento das atividades artísticas e a ênfase no coletivo e nos aspectos comportamentais; as variações de resistência cultural como estratégia de luta contra a ditadura.
Abrem o dossiê os textos diretamente ligados à exposição: “Nova Objetividade Brasileira – posicionamentos da vanguarda”, de Paulo Reis, que trata das questões de ordem cultural, artística e política da exposição; o “Depoimento de Frederico Morais a Fernanda Lopes”, importante testemunho do crítico que esteve inicialmente ligado à exposição e é referência inescapável para a arte brasileira a partir dos anos 1960; “Nova objetividade e nova subjetividade: Hélio Oiticica rumo ao coletivo”, de Paula Braga, que estabelece nexos entre as estruturas ambientais de Oiticica e as estruturas conceituais de pensadores como Jacques Rancière, Gilles Deleuze e Toni Negri; e “Da exposição Nova Objetividade Brasileira ao evento do Corpo à terra” de Marília Andrés Ribeiro, que discute as relações entre as duas manifestações mencionadas.
O contexto cultural, artístico e vivencial dos anos 1970, bem como as transformações conceituais ocorridas na virada da década são examinados nos artigos “A contracultura, entre a curtição e o experimental” de Celso Favaretto e “Anos 1970: da vanguarda a pós-vanguarda”, Ricardo Nascimento Fabbrini. Ambos os autores analisam a produção artístico-cultural brasileira e internacional após o fim das vanguardas, discorrendo sobre o extensivo processo de invenção do período à margem das políticas oficiais e dos espaços institucionais, processo este que incluía a reelaboração, em outras chaves de leitura, de experiências anteriores.
Os dois textos seguintes – “Território de Juan Carlos Romero. Crônicas da violência”, de Maria Angélica Melendi e “Vanguardia y Revolución como ideias-fuerza en el arte argentino de los años sesenta”, de Ana Longoni – discorrem sobre situações e ações similares da vanguarda na Argentina, transportando assim algumas das ideias que nortearam a realização da exposição Nova Objetividade Brasileira para o contexto crítico sul-americano. Pode-se com isso perceber o quanto o compromisso social do artista tornou-se um tema inevitável nos países da região.
Com o intuito de fomentar a reflexão sobre a expansão do sistema expositivo no Brasil, focando-se, em especial, no caso dos salões realizados fora do eixo Rio-São Paulo durante a década de 1960, Renata Zago traz um estudo de caso revelador das transformações e tensões culturais do período, por ela estudado anteriormente: “Os Salões de Arte Contemporânea de Campinas durante a década de 1960”. Miliandre Garcia, por sua vez, em “Entre o palco e a canção: afinidades eletivas entre a Música Popular Brasileira (MPB) e o teatro engajado na década de 1960”, defende ter havido no Brasil dos anos 1960 um movimento de aproximação entre diversos artistas e movimentos artísticos, das mais variadas linguagens e formas de expressão, que se deu no âmbito político e também estético.
Um dossiê organiza-se também e sempre por seus esquecimentos e eventuais omissões. E é nesses espaços de falta que ele também se constrói, incentivando a novas discussões ou a outras leituras possíveis de uma década tão complexa e definidora do país. Boas leituras!
Referências
FREIRE, Cristina. Arte conceitual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
NAVES, R. “Um azar histórico: desencontros entre moderno e contemporâneo”, Novos Estudos – Cebrap, São Paulo, nº 64, novembro de 2002, pp. 5-21.
Organizadores
Maria de Fátima Morethy Couto
Paulo Reis
eferências desta apresentação
COUTO, Maria de Fátima Morethy; REIS, Paulo. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v.1, n.3, p.93-96, set./dez. 2017. Acessar publicação original [DR]
Objetos Inquietos | MODOS. Revista de História da Arte | 2018
Objetos Inquietos | MODOS. Revista de História da Arte | 2018, JOÃO NETO Maria (Org d), MALTA Marize (Org d), Conceito de Objeto (d), Conceito de Arte (d), Modos (Mdd)
Objetos e arte, arte e objeto… Estes termos-conceitos apareceram por muito tempo em situações de antítese, como se obras de arte não fossem objetos e como objetos fossem incapazes de serem artísticos. Dessa contingência, cristalizou-se a diferença entre objeto e obra, depreendendo-se que objetos eram para serem usados; pertenciam à ordem do material e eram produzidos por artífices; obras de arte estavam relacionadas ao espiritual; eram criadas por artistas e seriam próprias à visualidade, à distância, postura necessária à fruição estética. A historiografia da arte, na sua versão canônica, raramente procurou dissolver as distinções, mesmo que, desde o século XVIII, e principalmente no século XIX, algumas vozes procurassem estreitar as distâncias entre coisas realizadas por artistas e artífices (Diderot, Quatremère de Quincy, Ruskin, Morris). As histórias dos objetos acabaram por ficar a cargo de histórias das artes decorativas, do design, da cultura material, apartadas como apêndices ou corpos estranhos.
O termo objeto de arte (object d’art) insinuou uma aproximação. Contudo, pinturas e esculturas não são normalmente designadas como tal, mostrando o quanto a tentativa foi infrutífera. Basta percorremos sites de leilões e museus, buscar as categorias de objetos em oferta (expográfica ou de venda) para percebemos o quanto a categoria especifica uma certa tipologia de objetos, afeita a outras classificações como artes decorativas, artes utilitárias, artes mecânicas, artes industriais… Mesmo que o termo artefato, com aparição na língua inglesa em 1821, tenha ultrapassado a dicotomia objeto-obra, não foi suficientemente incorporado para os estudos da arte, permanecendo ainda a noção de objeto como o termo (termo-problema) mais disseminado nas discussões da história, teoria e crítica da arte.
A renovação da disciplina, sensibilizada por propostas advindas da arte contemporânea, a exemplo de Marcel Duchamp e seus ready-mades, e das aproximações com outros campos, como a antropologia e a cultura visual e material, permitiu outros olhares sobre os objetos e modos de abordá-los na história da arte. Tratar o objeto de forma alargada, como aquilo que é colocado à frente, faz com que qualquer objeto possa ser potencialmente artístico. Arte não se considera mais um dado, e sim dependente de uma série de fatores e contingências, passando a ser uma ideia em discussão. Produtores, consumidores, veiculadores, comerciantes, receptores, curadores, instituições, colecionadores passam a ser considerados, tanto quanto artistas e artífices, porque também são agentes na construção de sentidos dos objetos. Eles, os objetos, nesse sentido alargado, na medida que são de natureza errante e instável, raramente ficam parados no tempo e no espaço. Têm caráter dinâmico, transitam, migram, movem-se por muitos lugares e são dados a ver por meio de diversas situações.
As chaves de leitura tradicionais sobre os objetos (práticos, poéticos, cotidianos, artísticos, banais, excepcionais…) consideravam-nos na inércia, desenvolvendo-se poucas análises sobre seus movimentos, suas ações no espaço e no tempo, suas atuações no mundo, especialmente no campo da história da arte. Mas podemos pensar que a condição de imobilidade é uma situação temporária e o destino de muitos objetos é sua errância. Há inúmeros objetos inquietos, como há múltiplos modos de inquietude em objetos. Alguns, saindo da sua inércia, assumem uma lógica desordenada e imprevisível de atuação, assumindo uma identidade particular. Existem uns que, frente à sua potência poética em sobressalto, nos deixam atônitos, com a mente agitada, sem condições de nos manter passivos, fazendo-nos ver, ouvir, sentir de maneira incomum. Outros nos instigam a rever paradigmas, conhecimentos dados e visualidades datadas. Alguns fazem nos movimentar com eles ou pelo menos nos provocam mobilidade, ao circundá-los, penetrá-los, experimentá-los. Alguns nos incitam a nos movermos por destinos ainda não explorados, fazendo com que nossos corpos empreendam, necessariamente, novas posturas.
Certos objetos tiveram como destino várias paragens, reinventando-se a cada lugar ocupado e incidindo sobre a conformação do lugar, como se nunca conseguissem se acomodar em determinada situação. Isso também pode ocorrer nos enquadramentos classificatórios, quando os rótulos não conseguem dar conta da natureza múltipla e ambígua dos objetos inquietos. Sua inquietude também implica se manterem como enigmas, dificultando-nos decifrar aquilo que guardam e não dizem, que escapam às nossas indagações, ou se manterem como errantes ou metamórficos que, por sua propensão a mudanças constantes, de lugar e de aparência, atrapalham percebê-los em suas variantes.
A provocação do dossiê OBJETOS INQUIETOS foi a de invocar objetos que contassem histórias da arte diversas, a partir de suas biografias (ou autobiografias), seus percursos e performances, narrando suas inquietudes. Pequenos objetos dedicados ao amor, outros com penas, aves e insetos, objetos para colocar na cabeça, vestir, sentar, guardar, dividir, grandes e tridimensionais, pequenos e quase planares… Várias são as biografias aqui apresentadas e que protagonizam certos artefatos, que foram dados a ler de diferentes modos, convocando suas materialidades, simbologias e/ou transculturalidades. Suas histórias particulares também podem ser percebidas em revistas, na literatura, em telas, acervos, autorias, coleções, mercados de ate. No presente dossiê, poderão ser encontrados objetos que circularam nos seus desassossegos por diferentes territórios como Japão, Argentina, Etiópia, India, Itália, França, Espanha, Portugal e Brasil, entrecruzando-se e afetando olhares e sentidos sobre eles, na medida em que lidaram com diferentes temporalidades, realidades culturais, sociais e políticas. Mais do que as proveniências, foram as locomoções dos artefatos que aqui se fizeram destacadas, movimentações não só entre lugares, mas de saberes, sensibilidades, crenças, ideologias.
Objetos do período Nambam são explorados por Johannis Tsoumas, avaliando como as trocas culturais entre comerciantes e missionários cristãos portugueses com artistas e artesãos japoneses desenvolveram certa tipologia peculiar de peças, observando seus destinos e usos conforme os sujeitos envolvidos. Assimilação do outro, criatividade local, demanda comercial, acomodações formais e operacionais em técnicas tradicionais e ressignificações são questões levantadas ao acessar esses objetos produzidos no Japão, revendo os encontros e desencontros entre o que se convencionou chamar de Oriente e Ocidente. O trânsito de portugueses em outros mundos também é abordado no artigo de Helder Carita, ao atribuir à autoria de alguns desenhos e pinturas sobre cidades e costumes a José Maria Gonsalves, artista que vem sendo retomado em exposições recentes na Europa, que circulou entre Índia e Afeganistão nas primeiras décadas do século XIX, contribuindo para maior compreensão da arte indo-portuguesa. Hibridações artísticas se fazem notar por representações diferenciadas na figura humana, em detalhes e perspectiva, por reunião de gêneros de pintura (documental, costumes, paisagem), por práticas do ofício conforme demandas enfrentadas pelo artista na sua mobilidade entre diferentes realidades, afetando seus objetos de criação.
A alteridade se faz presente, quando diante do imperialismo colonial certos objetos são apoderados como trofeus de domínio. O chapéu de gala de Menlik e o trono de Hailé Selassié, trazidos da Etiópia para a Itália, são os bens culturais tratados por Monica Palmeri, interessada nas suas apropriações, em como foram veiculados nas revistas do período fascista e nas mudanças de narrativa conforme modos de apresentação e representação. O outro-exótico, que convoca um olhar que interroga visões locais, também diz da manipulação nas formas de tratar o objeto estrangeiro e dos meios ideológicos de sua significação conforme meios de exibição. Contudo, aquilo que se desloca de uma realidade cultural para outra pode fazer seu retorno ao lugar de origem, assumindo outras leituras. Com outra abordagem e temporalidade, Flavia Galli Tatsch discorre sobre os cofres de amor em marfim, enfatizando a trágica lenda de Píramo e Tisbe, a qual, partindo de Metamorfoses de Ovídio, sofreu variadas interpretações desde a Antiguidade até a Idade Média. Seu foco está na discussão do imbricamento das tradições orais, escritas e visuais para desenvolver as diferentes narrativas visuais que se apropriaram do mito no período medieval por artesãos franceses e italianos e como se comportaram para materializar as imagens de cofres de amor, confrontando questões próprias à iconografia, técnica e apropriação.
Biagio D’Angelo e Ana María Fernández García optam pelo papel como suporte para discutirem seus objetos. O primeiro faz uso da obra literária Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, a segunda apresenta publicações periódicas espanholas à época do franquismo. A emblemática narrativa proustiana instigou D’Angelo a repensar a representação dos objetos na obra, e com isso também na arte e na literatura, especialmente referente à estética do acúmulo, e sua potência de vir a ser sujeito-personagem, desvencilhando-se de seu tradicional papel acessório. Igualmente reflete sobre a relação entre acúmulo de objetos e discursos de memória, bem como os limites entre objetos e escrita, sugerindo, assim, encarar as páginas impressas da poética proustiana como uma imensa “natureza-morta literária”. Fernández García já dá preferência a outra narratividade dos objetos em situação, optando pela decoração de interiores veiculada em revistas e considera os diferentes discursos ideológicos envolvidos nos vários regimes fascistas na Espanha e como se reverberaram na divulgação de móveis e espaços de moradias. Nos periódicos especializados, diante de seus títulos, seções, conteúdo e público-alvo, pode-se notar ora a tendência a opções nacionalistas, ora a abertura para o mercado internacional, revelando como escolha e tratamentos dos objetos no espaço estão em estreito diálogo com contingências políticas, além de gostos e estéticas próprios.
Ainda diante do universo doméstico e familiar, é a vez de encontrarmos com os bichos de estimação. Entre afetos e memórias, os objetos materializam repositórios de lembranças e Patricia Telles nos traz um objeto da camada do privado: o retrato em miniatura de um gato – Micetto. Pintura diminuta sobre marfim, envolta em moldura de pedra semi-preciosa e embutidos em prata, cujo dono, literato e diplomata brasileiro residente em Roma, mandou-a executar em 1917, mesmo que a prática das miniaturas já tivesse caído em desuso. O resgate de um gatinho é mote para refletir sobre a prática das miniaturas, as oportunidades da vida diplomática com realidades distintas e as escolhas por certas modernidades para imortalizar afetos a animais. Diferente de representar bichos, preservando estimas, Maria Cristina Volpi nos apresenta outro caráter do uso de animais: a prática de transformá-los em objetos para fins decorativos e vestimentares, tão em voga no século XIX, com produção significativa no Brasil. No caso da arte plumária, partiu-se de uma prática indígena para se transmutar em outros objetos, com adaptações técnicas, simbólicas e formais, de modo a saciar as demandas europeias por produtos exóticos civilizados. Bichos mortos ou parte deles se configuravam como objetos de outra natureza-morta, morta de fato. Também tratando do universo dos mercados, Vera Mariz aborda o mercado de arte português e brasileiro nas duas últimas décadas do século XIX e como os objetos se faziam circular entre vendas e compras, satisfazendo colecionadores, a partir da análise do agente de mercado José dos Santos Libório e sua atuação em Lisboa e Rio de Janeiro.
A Vitoria de Samotracia, por meio de duas cópias em gesso provenientes do Louvre, ganha biografia particular em texto de Milena Galipolli, que discute a inserção das esculturas em espaços institucionais distintos (Escola Superior de Belas Artes e Museu de Belas Artes), em Buenos Aires, Argentina, e que lhe conferiram diferentes significados de mediação com o passado: seja como consolidação de um arte contemporânea de qualidade, seja como instrução sobre uma arte longínqua no tempo e no espaço. Outra escultura emblemática é tratada por Diego Souza de Paiva, cujo artigo aborda a trajetória de uma cópia do David de Michelangelo, que veio a se integrar ao acervo do Instituto Ricardo Brennand, situado em Recife, Pernambuco. Encomendada em um ateliê italiano para decorar o jardim de um restaurante em Curitiba, a peça foi alvo de diversas críticas até ser leiloada e adquirida pelo colecionador pernambucano, passando por uma verdadeira metamorfose e construindo para si outros sentidos. Consideradas em suas biografias e a partir das questões que mobilizaram, as cópias tratadas por Galipolli e Paiva permitiram discutir outras narrativas da história da arte, observando o quanto seus sentidos estiveram interligados com suas trajetórias, localizações e usos. Objetos nada quietos.
Diante de todas essas narrativas, podemos concluir que objetos são bem mais do que objetos de uso, são inquietudes materializadas em coisas, sejam por suas formas, por suas iconografias, por seus materiais, por suas recepções, promoções, seus trajetos, suas representações e potências ideológicas, mas especialmente pela maneira com que são tratados, pensados, historicizados – com inquietudes. Objetos inquietos envolvem olhares agitados que, por sua vez, demandam compreensões sacudidas e esperam narrativas em desassossego. Assim, esperamos que os textos selecionados possam deixar os leitores também inquietos e permitam revisões no modo como olham e consideram os objetos.
Organizadores
Maria João Neto
Marize Malta
Referências desta apresentação
JOÃO NETO, Maria; MALTA, Marize. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 2, n.2, p.137-141, maio/ago. 2018. Acessar publicação original [DR]
Arte, Imagem, Política: Curadoria, Circuitos e Instituições | MODOS. Revista de História da Arte | 2018
Arte, Imagem, Política: Curadoria, Circuitos e Instituições | MODOS. Revista de História da Arte | 2018, CARVALHO Ana Maria Albani de (Org d), ANDRADE Marco Pasqualini de (Org d), Arte (d), Imagem (d), Política (d), Curadoria (d), Circuitos de Arte (d), Instituições Artísticas (d), Modos (Mdd)
As relações entre os termos Arte e Política são complexas e por vezes, paradoxais. Durante o longo processo histórico de constituição do campo artístico em sua forma moderna, posições divergentes têm defendido tanto a total autonomia entre arte e política, quanto a indissociabilidade de suas conexões. Entre um extremo e outro, seguimos com Jacques Rancière, quando argumenta que “arte e política tem a ver uma com a outra como formas de dissenso, operações de reconfiguração da experiência comum do sensível” (2012: 63). Nestes termos, entendemos que as relações entre arte e política passam pelos temas abordados pelos artistas em suas obras, assim como por suas opções formais, estéticas, por seus processos de trabalho e de exibição. Os projetos de curadoria e de exposição, por sua vez, podem ser considerados como tomadas de posições políticas, tanto em relação às questões específicas do mundo da arte, quanto aos limites sobre o que é aceito socialmente como arte em um momento dado ou às transgressões das fronteiras da moral ou do “bom-gosto”. A atuação de historiadores e críticos de arte também pode ser pensada nestes termos, se consideramos suas narrativas como construções de poder simbólico. Por fim, as relações de poder entre os agentes, as instituições – museus, academia – e a lógica contemporânea de funcionamento do mercado produzem e conectam diferentes circuitos, gerando impactos diversos nos papeis e no lugar ocupado pela arte na sociedade contemporânea.
Após um longo processo histórico de construção e consolidação, no qual a Academia exerceu um poder regulador sobre os limites entre o que poderia ser reconhecido como Arte legítima, o século XXI provê um cenário em que se multiplicam e diversificam as instâncias de regulação, esgarçando de forma impressionante as fronteiras entre os campos da arte e da não-arte. Se o mundo da arte foi historicamente fundado na possibilidade de um exercício da liberdade individual, como reinado da subjetividade e no ideal da autonomia, em que medida poderíamos avaliar os efeitos de suas proposições em discursos políticos e culturais mais amplos, postulados como coletivos? Ao mesmo tempo, os mundos sociais que emergem das redes de relações entre indivíduos, práticas, instituições e objetos engendrados como arte, talvez nos auxiliem a compreender outros processos de estabilização e ruptura em nossos sistemas de crenças, valores, laços identitários, regimes de socialização e solidariedades.
O Dossiê Arte, Imagem, Política: Curadoria, Circuitos e Instituições lançou um convite ao debate e à reflexão sobre as complexas relações entre arte e política, considerando o papel e as questões da imagem como recorte do tema, contemplando aspectos relativos ao sistema de artes e suas lógicas de funcionamento na contemporaneidade, às instituições, seus modos de narrar e exibir enquanto regimes de visibilidade, assim como a potencialidade crítica da própria obra de arte quando ativada pela experiência do público.
Os noves artigos reunidos neste dossiê analisam e problematizam estas questões, passando pelas contribuições da cultura visual, da análise sistêmica, de diferentes abordagens para o complexo fenômeno da exposição e da crítica institucional até a experiência com a obra mesma, em sua emergência/urgência poética e dimensão crítica.
Arthur Valle, em seu artigo “Lula-Presidiário” e “Temer-Drácula”: imagens difamatórias no contexto da crise política brasileira, aborda as relações entre arte e política a partir da construção iconográfica da imagem dos próprios agentes políticos protagonistas da atual cena contemporânea. Os personagens, vestidos com atributos caricatos de caráter difamatório, se transformam em imagens recorrentes na cultura visual, desde charges até bonecos infláveis. Mesmo sendo tão recentes, o autor estuda com rigor histórico a origem e resignificação de tais imagens, e a importância dos lugares da representação, seja os meios de comunicação de massa, seja as redes sociais ou o espaço real da cidade.
Raúl Niño Bernal, por sua vez, nos convida a pensar os próprios limites do que entendemos por política através de uma densa argumentação sobre a noção de ecopolítica. Situado no debate sobre o desenvolvimento humano no contexto da sociedade do conhecimento, o autor apresenta em seu artigo “Ecopoliticas, no linealidad y poshumanismo” uma reflexão sobre o complexo conjunto de processos relativos à vida artificial. Neste cenário, Raúl Bernal procura perceber e discutir a dimensão criativa – ou a criatividade – em uma perspectiva não humana, tendo como justificativa a necessidade de compreendermos as profundas mudanças nos processos sociais e culturais decorrentes do estágio de desenvolvimento tecnológico contemporâneo.
Os artigos de Peter Osborne e de Bruna Fetter contribuem para a sempre necessária reflexão sobre as lógicas de funcionamento do campo da arte em uma perspectiva sistêmica. Enquanto o pesquisador inglês volta sua atenção para uma instituição-pilar deste sistema – o Museu -, Bruna Fetter busca analisar as possíveis configurações do conceito de sistema de artes, propondo uma atualização do modelo de análise, na qual os fluxos são percebidos como mais relevantes do que a estrutura rigidamente demarcada por funções e papéis determinados. Seguindo essa linha de pensamento, em seu artigo “Das Reconfigurações Contemporâneas do(s) Sistema(s) da Arte” a pesquisadora enfatiza o caráter plural e as articulações em rede como aspectos necessários à compreensão da dinâmica do sistema da arte em sua dimensão contemporânea e global.
Peter Osborne, por sua vez, em seu artigo “Ilusões de Totalidade. A Contemporaneidade Global e a Condição do Museu” reflete criticamente sobre as pretensões à universalidade – concebida enquanto paradigma constitutivo das narrativas canônicas da história da arte – observando o modo como os museus de arte participam tanto da construção, quanto da revisão desta dimensão do poder simbólico.
Mirtes Marins de Oliveira traz o exemplo da 27º Bienal de São Paulo, curada por Lisete Lagnado, como forma de discutir as complexas relações entre a estrutura institucional, os conceitos curatoriais e o design de exposição. Tendo como tema a proposição “Como Viver Juntos” – título de uma série de seminários proferidos por Roland Barthes nos anos 70 – a 27ª Bienal extinguiu o modelo tradicional das representações nacionais, as quais traziam implicações políticas, econômicas e financeiras em termos de protagonismo e visibilidade para determinados artistas e movimentos, produzindo atravessamentos no trabalho de curadoria através da ocupação territorial do espaço de exposição. O conceito de display, nos termos apresentados por Pablo Lafuente, é empregado por Mirtes Marins em seu artigo “’Como viver junto’: 27ª Bienal de São Paulo e a questão nacional/internacional” para sustentar o argumento de que uma exposição é resultado do tensionamento entre objetos, pessoas, ideias e estruturas, para além dos discursos oficiais com os quais o evento se apresenta.
O conjunto dos textos de Silvia Dolinko, Taisa Palhares e Virginia Gil Araújo estabelece uma amostragem de discursos e diálogos existentes entre as figuras dos curadores, as obras/imagens, as instituições que as abrigam e o espectador contemporâneo. O potencial das imagens, independente de originariamente possuírem uma temática ou abordagem politizada, é retransformado por meio da decisão de re-exposição em novo contexto. A decisão curatorial é de fato novo gesto político, que confronta a realidade violenta dos dias atuais. Sejam gravuras, fotografias, filmes ou objetos, a condição original documental e histórica se transfigura em algo que não necessita mais do chancelamento de “ser arte”, mas tira partido do contexto de circulação da arte contemporânea, assim como de seus instrumentos, parâmetros e estratégias.
Silvia Dilinko nos apresenta De La Protesta al Malba, circuitos de intervención para las xilografías de Juan Antonio Ballester Peña. No texto, a autora aborda a recontextualização e revisão histórica das estampas políticas do artista argentino, a partir de sua inserção no novo projeto curatorial de exposição do acervo do Malba. Discute-se, desse modo, tanto o papel político do museu como potencializador de novas leituras da obra, como a própria obra enquanto fonte de novas interpretações. Especialmente, o foco em um conjunto de imagens de resistência destinadas à reprodução, que ampliaram seu alcance pela veiculação em periódicos anarquistas da época (década de 1920), e que, devido à própria hierarquia das técnicas artísticas modernas, normalmente destinam-se a permanecer ocultas nas reservas técnicas dos museus. Para além de exposições temporárias curtas e temáticas, a decisão de integrá-las ao discurso principal e de longa duração da instituição, contextualizadas junto a vários outros artistas que atuaram em diversos media, transforma e reaviva sua condição discursiva, alterando pontos de vista tradicionais e eurocêntricos.
Já Taisa Palhares, em Organizar o pessimismo: a exposição Levantes de Georges Didi-Huberman, parte de um projeto de curadoria e sua efetivação expositiva, buscando analisar por um lado a conceituação teórica que embasa a mostra, a partir de uma reinterpretação atual das ideias de Walter Benjamin, e por outro como isso se coloca no conjunto de imagens apresentadas. Tentando considera-las fora de visões estritas de arte ou como documentos históricos, Palhares reafirma o propósito do curador de deixar as imagens do “desejo de emancipação” inquietarem o público, mostrarem seu caráter dialético, anacrônico, subversivo, recontarem a história a contrapelo pela montagem e, quem sabe, iluminarem de desejo os nossos “tempos sombrios”.
Completando esse quadro, Virginia Gil Araujo, em A antropologia política da imagem na XVII Bienal de Fotografia da Cidade do México, questiona a posição da fotografia documental na contemporaneidade a partir de um caso curatorial específico do contexto mexicano. Se o pais possui uma rica história de fotógrafos e imagens significativas, como enfrentar a crise do documento frente à violência e segregação atuais? Partindo de autores como Jacques Rancière, Rosalyn Deutsche, Hal Foster, Giorgio Agamben e Anna Maria Guasch, entre outros, considera a possibilidade, pela exposição, de uma conexão horizontal de ideias e sentimentos que podem constituir uma “antropologia política da imagem”. Destaca que constituem primordialmente ações de uma micropolítica, na qual são consideradas questões sobre “autoria, alteridade, gênero e intimidade”, e que permitem lampejos de visão do que é silenciado ou violentado no cotidiano da sociedade.
Por fim, o artigo “A Desmedida na Medida de Natalia Leite” aborda a produção realizada por esta artista incomum nascida em 1943, na cidade gaúcha de Santo Ângelo. Os trabalhos comentados por Edson Luiz André de Sousa em seu artigo foram realizados ao longo dos anos em que Natalia Leite viveu como interna no Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre. Em uma perspectiva política da dimensão poética, Edson Sousa observa com olhar sensível as imagens tecidas por Natalia e propõe um diálogo com o poema A Pantera, de Rainer Maria Rilke.
Se começamos com a imagem-difamação em Arthur Valle, com a imagem-poema de Natalia Leite, por Edson Sousa, podemos concluir. A arte que insiste e resiste ao silêncio, ao esquecimento, ao apagamento, ao fogo e às cinzas. A dimensão política da arte pode estar no gesto que produz a obra, assim como no pensamento que aguça o sentido crítico e se abre para outros modos de ver, exibir e narrar. Apostar em ações coletivas e colaborativas que possam reverter os pontos de contato do circuito, operando com o dentro/fora das instituições também configura o lugar político da esfera artística na contemporaneidade. A concepção deste dossiê foi animada por este espírito e sua realização tornou-se possível somente pelo acolhimento por parte dos autores convidados e pelo engajamento dos que se sentiram motivados a escrever e partilhar suas ideias a partir do desafio proposto pelo tema Arte, Imagem, Política: Curadoria, Circuitos e Instituições. Manifestamos nossos agradecimentos a todos os colaboradores desta edição da Revista MODOS e esperamos que os leitores encontrem bons motivos para reflexão através dos textos aqui reunidos.
Referência
RANCIÈRE, J. O Espectador Emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
Organizadores
Ana Maria Albani de Carvalho – Doutora em Artes Visuais: História, Teoria e Crítica (UFRGS) e professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais e de Museologia e Patrimônio, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como curadora independente, com pesquisas sobre as relações entre arte e política, conceitualismos e experimentalismo nos anos 1970 no Brasil. E-mail: ana_albanidecarvalho@yahoo.com.br
Marco Pasqualini de Andrade – Doutor em Artes pela ECA USP. Professor Associado do Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia. Historiador e crítico de arte. Membro do Comitê Brasileiro de História da Arte. E-mail: martkus@gmail.com
Referências desta apresentação
CARVALHO, Ana Maria Albani de; ANDRADE, Marco Pasqualini de. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 2, n.3, p.85-90, set./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]
A emergência da imagem crítica | MODOS. Revista de História da Arte | 2019
A emergência da imagem crítica | MODOS. Revista de História da Arte | 2019, COSTA Luiz Cláudio da (Org d), Imagem Crítica (d), Modos (Mdd)
A partir do final do século XX, surgiu uma diversidade de reflexões e publicações que tematizavam a imagem, questionando sua eficácia como saber do visível e/ou do invisível. Muitos autores buscaram levar em conta o modo particular de operar da imagem – uma apreensão do mundo por meio de um olhar corpóreo pleno de incertezas e ambiguidades. Em 1990, Georges Didi-Huberman oferece ao público editorial francês seu livro Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. Essa seria uma das dezenas de obras do autor dedicadas ao assunto sobre as relações entre arte, história e imagem. Naquela publicação seminal, Didi-Hubermann questionava os limites do discurso da história da arte iniciada com Giorgio Vasari, mas também as deficiências em relação às pretensões racionais da iconologia de Erwin Panofsky.
Em 1996, foi a vez de Marie-José Mondzain lançar publicação significativa sobre o assunto, dando continuidade às suas questões de pesquisa com Imagem, ícone, economia: as fontes bizantinas do imaginário contemporâneo. Mondzain analisava os modos de produzir e apreender a imagem na atualidade que remetem à crise do iconoclasmo bizantino, propiciando uma percepção das continuidades e rupturas na administração das visibilidades no presente. Essa onda de publicações prosseguiu em 2001 com Por uma antropologia das imagens de Hans Belting, livro no qual o historiador alemão trazia uma contribuição importante ao pensar a imagem acontecendo no encontro entre o meio (ou médium) e o corpo.
Ainda nos anos 1990, o teórico dos estudos visuais W. J. T. Mitchel aventava a possibilidade de uma “virada pictórica” (1994) com o objetivo de pensar outro paradigma substituindo o modelo da linguagem que já mostrava sinais de esgotamento no final do milênio. Ao fim dos anos 1960, Richard Rorty cunhara a expressão “virada linguística” para o modelo textual de interpretação. A época da linguística da semiótica e da retórica apostou na reflexão sobre a sociedade como texto, modelo que serviu durante quase toda a metade do século XX para a crítica da arte, da mídia e da cultura em geral. Tomava-se as representações científicas e a própria natureza como discurso, a ponto de Jacques Lacan redefinir o inconsciente como linguagem. Sobre a mudança de paradigma, Mitchel expressava-se nas primeiras páginas de seu livro: “Mas parece claro que uma outra mudança sobre isso de que falam os filósofos está acontecendo e que novamente uma transformação complexa está ocorrendo em outras disciplinas das ciências humanas e na esfera pública da cultura” (1994: 11).
Gilles Deleuze em seus livros de cinema – Imagem-Movimento e Imagem-tempo – já havia sugerido a necessidade de pensar a imagem fora dos parâmetros da linguagem. Ainda na primeira metade dos anos 1980, o filósofo francês pronunciara uma transformação no paradigma textual ao recusar a semiologia de fundamentação linguística que integrava a imagem cinematográfica em um “círculo vicioso” à maneira kantiana:
A semiologia de cinema será a disciplina que aplica às imagens modelos da linguagem, sobretudo sintagmáticos, como constituindo um de seus principais “códigos”. Percorre-se assim um estranho círculo, já que a sintagmática supõe que a imagem seja de fato assimilada a um enunciado, mas que é também ela quem a torna em direito assimilável a enunciado. É um círculo vicioso tipicamente kantiano: a sintagmática se aplica porque a imagem é um enunciado, mas esta é um enunciado porque se submete à sintagmática”. (1990: 38)
A imagem tem sido presente em meus estudos, sobretudo no que tange o problema do documento e da documentação, bem como a prática de artistas que se voltam para a história. Surgia uma questão interna à minha pesquisa: que imagem ou imagens têm condições de mostrar a força e as contradições da história, a intensidade vivida e as ações praticadas no presente? Que gesto ou operação o artista realiza no documento para que possa fazer aparecer não apenas as representações evidentes, mas sobretudo a força latente do tempo, as emoções da vida, os sintomas da história?
O uso de documentos visuais e da documentação com imagens técnicas deixa transparecer uma contradição entre o discurso e a prática artística por volta dos anos 1960 e 70. Por um lado, os minimalistas e conceitualistas recusavam a imagem; por outro, usavam-na para as apresentações de seus trabalhos. Com efeito, a recusa da representação nas artes não se esgotou com as correntes abstratas modernistas; ela chegou à contemporaneidade do pós-guerra por meio do minimalismo e do conceitualismo. A Pop Art nos Estados Unidos e o Tropicalismo no Brasil apropriavam-se de imagens da imprensa com a intenção de questionar o problema da cultura da reprodutibilidade, mas o Minimalismo norte-americano criticou a imagem levando em conta o ilusionismo, a metáfora e o antropomorfismo. Embora trazendo questões fundamentais para a contemporaneidade, como a presença e os materiais industriais, os artistas minimalistas recusavam a imagem por compreendê-la na condição de cópia, semelhança, alusão naturalista ao referente, operação de adequação compatível com as coisas vistas, metáfora do humano – as “referências mais oblíquas” da imagem para Donald Judd, que teorizou sua recusa com essas palavras: “O conjunto de imagens (imagery) envolve algumas notáveis semelhanças com outras coisas visíveis e muitas outras referências mais oblíquas, tudo generalizado para se tornar compatível. As partes e o espaço são alusivos, descritivos e de certa forma naturalista” (2006: 100).
Uma tal renúncia foi, contudo, contraditória, uma vez que o aparecimento das artes do corpo e das intervenções públicas efêmeras levou os artistas a realizarem apresentações de seus trabalhos por meio da documentação em imagem técnica. A imagem voltava à cena das artes por meio dos registros, mesmo quando recusada para a construção dos trabalhos. Os artistas conceituais haviam chegado a uma contradição, pois se a linguagem e o discurso eram o paradigma para a obra refletir sobre a ideia da arte, suas convenções e instituições, a imagem recusada acabava servindo como modo de apresentação – assim fez Joseph Kosuth em 1965 com Uma e três cadeiras. No conceitualismo latino-americano, a imagem foi usada com a função de registro para a memória da obra efêmera, prática tanto de Roberto Jacoby na Argentina, quanto de Artur Barrio no Brasil.
Esse é um momento crucial: recusada como representação ilusionista de um referente, como a imagem pode ser crítica da operação mimética questionando sua pretensão de evidência e aportar as contradições e os contrassensos no visível? Pode ela ser experiência e ato simultaneamente? Maurice Merleau-Ponty encontrava na percepção corpórea essas duas versões da imagem, a experiência emocional e o gesto da expressão do corpo, divisão que tinha a força de abrir o tempo a partir das implicações do presente (1994: 273-277). Outro autor e também escritor, Maurice Blanchot já anunciara as duas versões do imaginário, variantes em oscilação contínua alternando entre aparição e desaparição, presença e ausência, semelhança e dessemelhança. A imagem estaria relacionada em sua origem com a experiência contraditória da morte, a morte como possibilidade da compreensão e a morte como horror da impossibilidade. Enigmático em seu texto, Blanchot enuncia sua fórmula: “Existem duas possibilidades da imagem, duas versões do imaginário, e essa duplicidade provém do duplo sentido original que traz consigo a potência do negativo, e do fato de que a morte é ora o trabalho da verdade no mundo, ora a perpetuidade do que não suporta começo nem fim” (1987: 255-265).
A nova emergência da imagem requer, portanto, uma modalidade crítica muito particular. Reconhecer que a ideia de evidência ou transparência esconde a ansiedade do desconhecido, mas também compreender que nem a imagem é tão somente pura ilusão nem a realidade poderia ela toda tornar-se mero espetáculo e mercadoria como quis a crítica da crítica feita pelo pensamento pós-situacionista e pós-marxista (Rancière, 2012: 27-49). O problema é que a realidade e o real jamais serão adequáveis à imagem. Essa última opera apenas gesto que surge da experiência física e emocional, um saber que é também não saber, intensidade e sintoma, ambas as versões intrinsicamente vinculadas pela contradição.
Foi diante de toda essa problemática no âmbito de um contexto intelectual de “virada pictórica” que surgiu o desejo de realizar um dossiê que pudesse contemplar o problema da potência da imagem crítica. Convidei, então, Patrícia Franca-Huchet, artista pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais que tem se dedicado ao problema da imagem em seus trabalhos artísticos e reflexivos para organizar esse dossiê na Revista Modos. Fizemos uma proposta escrita que foi divulgada com o título e o texto que seguem.
O enunciado central – a emergência da imagem – desvela algo da discussão que propomos para este dossiê: aparição que se eleva como sintoma; visibilidade que se manifesta com urgência. Situando nosso interesse primeiro pela imagem no âmbito artístico, pretendemos interrogar sobre sua potência, sua sacralidade, sua tipologia, seu poder manipulador, seus ritmos, sua pedagogia, sua história, seu poder de figurar. Nossa época necessita de uma abordagem crítica e transdisciplinar da imagem, visto que sua relevância ultrapassa as artes, afetando igualmente a antropologia, a história da arte, a cultura visual, a sociologia, a religião. A imagem povoa o cotidiano das pessoas. O destino das imagens parece estar sob a luz dos holofotes no século XXI, não somente pelo fator tecnológico, mas também pela inserção e influência das imagens em diversas zonas de interesse, de práticas e saberes. Acreditamos que as imagens ainda estão à espera de suportes, à espera de que possamos qualificá-las, demonstrar suas possibilidades e contradições. Convivemos com muitas imagens, mas ainda nos faltam aquelas cuja intensidade dialética permitiriam fomentar novas densidades para o pensamento visual e a construção de uma visibilidade crítica que possa contribuir com os ritmos da percepção no novo milênio.
Ao final do período de inscrição de artigos, após recebermos todos textos, convidamos Simone Cortesão para abrir o dossiê com um ensaio que concretizasse nossa proposta utilizando imagens de seu filme Navio de terra, realizado para seu doutoramento na Uerj no Rio de Janeiro. Em Navio de terra, a vida é sobrecarregada de um peso melancólico, premida pela economia da mineração. Um prólogo apresenta imagens da mineração, uma terra avermelhada, o desastre ecológico. O navio onde se passa a narrativa é tanto espaço ficcional, como cargueiro real que transporta minérios reais do Brasil para a China. Ali mesmo, no interior daquele navio ficcional-documental, Simone Cortesão construiu sua história com atores e não atores. Navio de terra desenvolve a história a partir dos encontros de Rômulo com outros marinheiros até o desfecho final no qual a personagem visitará uma misteriosa montanha na China. No ensaio visual Zonas de ressaca, a artista-cineasta utilizou fotografias realizadas antes da gravação do filme e fotogramas de Navio de terra. No ensaio, imagens e textos mantêm autonomia operatória, embora se relacionem transversalmente na elaboração da perda e da destruição.
Dos artigos que compõem nosso dossiê, “Virada icônica: um apelo por três voltas no parafuso” de Emmanuel Alloa é o mais teórico. O autor busca pensar a mudança hermenêutica nas formas de pensar e ver tendo em vista a virada icônica. Originalmente publicado no periódico Culture, theory and Critique, o ensaio divide-se em duas partes. Na primeira, o autor tenta avaliar o significado exato da expressão “virada pictórica” proposta por W. J. T. Mitchel, comparando e diferenciando a fórmula de Gottfried Boehm, “virada icônica”. As questões do artigo são fundamentais, pois coloca o problema das condições que precisam ser atendidas para que se possa falar de uma mudança de paradigma. Em suas palavras: “Com base em que podemos afirmar que uma imagem não é um objeto suplementar, mas que se torna um vetor, um meio ou um operador decisivo para nossas práticas contemporâneas e nossas formas de conhecimento?” Alloa retoma e analisa o projeto iconológico de Erwin Panofsky, chegando reconhecer a transformação epistêmica, bem como as limitações da iconologia, que relacionava o sentido icônico à “linguagem verbal e outros sistemas de signos e símbolos”. A segunda parte do artigo do filósofo e professor da Universidade de Saint-Gallen na Suíça defende três mudanças (as “três voltas no parafuso”, expressão usada pelo filólogo Ernst Robert Curtius): um salto da iconologia para a sintomatologia, um deslocamento do extensivo para o intensivo e uma mudança do indicativo para o subjuntivo. Essas três mudanças na compreensão da imagem mostram que o problema não é nem um retorno ao momento pré-modernista das imagens que se adequavam ao referente e nem uma mera recusa na direção do irrepresentável, mas um outro modo de colocar o debate. É o próprio Alloa quem afirma: “não podemos deixar de observar que, nesse debate, um estranho retorno do real ocorreu”.
Em seu artigo escrito a quatro mãos, “Na caverna de Tarsila: sobrevivências do primitivo como presença do não-colonial”, Maria Bernardete Ramos Flores e Michele Bete Petry partem para a análise de imagens de Tarsila do Amaral em que se pode perceber o primitivo. As autoras desejam pensar o primitivo como o não-colonial, aquilo que não foi colonizado. Para isso começam por discorrer sobre o “primitivo” a partir da experiência de George Bataille na gruta de Lascaux. Primeiramente, refletem sobre aquilo que nomeiam de “A caverna de Tarsila”, uma alegoria do interior de onde saem bichos como urutu, a cuca, o sapo, o touro e abaporu, revelando/ocultando imagens do seu mundo sub/inconsciente.
Articulando o eco de Assim falou Zaratustra no primitivismo europeu, Flores e Petry percebem a arte “primitiva” como “alegoria do humano”, a restauração da inocência perdida da humanidade. A singularidade de Tarsila do Amaral é seu mergulho numa caverna onde “sobrevivem mitos indígenas, culturas da Amazônia, saberes do Brasil africano, do caipira do Sudeste e do sertanejo do Nordeste, do caboclo do sul, dos pescadores ribeirinhos e praieiros”.
Ainda na perspectiva do exame crítico de obras artísticas, três autores lançam-se na reflexão da produção contemporânea. Em “Quem adora as imagens adora o diabo: Reflexões sobre a iconoclastia no Brasil”, Pedro Hussak parte do conceito de iconoclastia de Marie-José Mondzain para analisar a reação de setores da igreja evangélica à ação de Alexandre Vogler, Tridente de Nova Iguaçu, na qual o artista desenhou o símbolo da iconografia religiosa afro-brasileira sobre uma imensa pedra na periferia carioca. Hussak sustenta haver uma tendência iconoclasta triunfando atualmente no Brasil, sobretudo, de inclinação neopentecostal. Dando continuidade à sua argumentação, Hussak analisa ainda a reação contra a exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira que terminou com seu encerramento antes do prazo por decisão do banco patrocinador. Ao comparar a recusa das imagens religiosas operando no Brasil com outras situações históricas, Hussak é conclusivo. Ressalta que, baseada em uma concepção moral da imagem, “a disputa pela hegemonia tanto com o catolicismo quanto com as expressões afro-brasileiras conduz também a uma prática iconoclasta”.
No artigo de Carolina Junqueira dos Santos, “/des/aparecer: histórias de imagens, fantasmas e espelhos”, a autora toma como suporte para suas reflexões a instalação Identidad, idealizada em parceria com as Abuelas de Plaza de Mayo e exposta no Centro Cultural Recoleta em Buenos Aires em 1998. Identidad, que teve a participação de 13 artistas para sua construção, lida com a memória das crianças desaparecidas no contexto da ditadura militar argentina. É o rosto do filho perdido que retorna como fantasma: “Os artistas reunidos, em seus diversos encontros para conceber a mostra, decidiram unir seus esforços e criar uma obra, única e coletiva, que pudesse focar absolutamente na ideia da busca pelo rosto perdido, tentando fazê-lo aparecer”.
Em “Guerra das luzes: visão e olhar na obra de Harun Farocki”, Fernanda Albuquerque de Almeida analisa obras do artista alemão nascido na antiga Checoslováquia e considera o uso de imagens técnicas em conflitos de guerra. A abordagem de Almeida centra-se na relação intrínseca entre as formas de organização social e seus sistemas armamentistas, sinalizando a perda do referencial sensível do corpo e da subjetividade “em benefício de uma exacerbação dos sinais visíveis” operado pela “máquina de visão”. A análise é complementada por considerações de Paul Virilio e Jonathan Crary, que constatam o aumento do controle da percepção por meio das imagens. Almeida discute o processo de desrealização operado pelas imagens e de “uma logística da percepção militar” que inverte os vetores: os observadores se tornam observados. A autora encontra na obra de Farocki problemas relacionados aos sistemas de vigilância e ao rastreamento usados em prisões e também em supermercados, aos mecanismos de propaganda e marketing que visam condicionar o desejo dos consumidores. Para ela, o espectador é diretamente confrontado com sua condição de impotência diante dos aparelhos técnicos que administram sua vida nas obras de Farocki e pode mesmo alcançar certa conscientização dos mecanismos que agem em seu controle.
Buscando preencher a carência de reflexões que apresentem propostas metodológicas diferenciadas para o avanço dos Estudos Visuais no Brasil, Marcos Alexandre Arraes analisa a emergência, nos anos 1950 e 60 no país, de um regime visual vinculado ao consumo e pautado em um paradigma cultural estadunidense. Em “Imagem, consumo e presença: aspectos de um regime visual americanista no Brasil”, Arraes baseia-se nas reflexões de Hans Ulrich Gumbrecht a respeito da Materialidade da Comunicação e procura demonstrar que a profusão de imagens no período em questão produtoras de presença, produzindo efeitos estéticos tangíveis aos corpos.
Esperamos com esse dossiê contribuir no debate sobre o papel da imagem na cultura contemporânea. Embora não haja como concluir essa discussão cheia de meandros, podemos pensar que o termo imagem define atos e experiências muito distintas. A concepção de Blanchot sobre a alternância de duas variantes na imagem conduz o pensamento a uma experiência complexa do visível. Por um lado, a imagem serve para “capturar e subjugar, se não eviscerar” o outro (Butler, 2011: 26). Nesse caso, é o enquadramento do visível operado pela imagem que funda o ato e desumaniza o outro submetido ao olho panóptico que o captura. Mas no outro lado dessa experiência heterogênea da imagem, o outro surge em sua precariedade colocando àquele que olha um problema ético. Além de trabalhar a diferença malogrando em sua tarefa de capturar o referente, a imagem crítica mostra essa falha. A imagem não é apenas captura e controle dos corpos, ela materializa uma experiência corporal complexa do encontro com o outro.
Referências
BLANCHOT, Maurice. Duas versões do imaginário. In: O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
BUTLER, Judith. Vida Precária. In: Contemporânea: Revista de sociologia da UFScar. Vol. 1, n. 1. jan-jun 2011. Disponível em: http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/18 .
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo – Cinema 2. São Paulo: Brasiliense, 1990.
JUDD, Donald. Objetos específicos. In: FERREIRA, Glória. COTRIM, Cecília (Org.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
MITCHELL, W. J. T. Picture Theory: Essays on verbal and visual representations. Chicago: The University of Chicago Press, 1994.
RANCIÈRE, Jacques. Desventuras do pensamento crítico. In: O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
Organizador
Luiz Cláudio da Costa – Professor Associado do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Suas questões de pesquisa giram em torno das relações entre imagem e documento nas artes. É bolsista Produtividade do CNPq e Procientista da Uerj/Faperj. Seu último livro publicado intitula-se A gravidade da imagem: arte e memória na contemporaneidade (Quartet/Faperj, 2014). E-mail: l.claudiodacosta@gmail.com
Referências desta apresentação
COSTA, Luiz Cláudio da. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 3, n.1, p.62-68, jan./abr. 2019. Acessar publicação original [DR]
O artista em representação: imagens de artistas através da História da Arte | MODOS. Revista de História da Arte | 2019
O artista em representação: imagens de artistas através da História da Arte | MODOS. Revista de História da Arte | 2019, CAVALCANTI Ana Maria Tavares (Org d), PITTA Fernanda (Org d), Imagens de Artistas (d), História da Arte (d), Modos (Mdd)
De que modo as transformações da percepção sobre os artistas e suas significações (sociais, culturais, simbólicas e políticas) marcam as escritas da história da arte? Foi essa indagação que nos motivou a propor para a revista Modos o dossiê O Artista em Representação: Imagens de artistas através da História da Arte.
Tomando de empréstimo o título “o artista em representação” da exemplar exposição e publicação organizadas por Alain Bonnet (L’artiste en représentation: images des artistes dans l’art du XIXe siècle, 2012), interessou-nos pensar as construções históricas da imagem do artista e sua inscrição específica nos contextos brasileiro e latino-americano.
Quais são as representações da figura do artista e como se transformaram ao longo do tempo? A célebre exposição Rebels and Martyrs e seu catálogo (2006), organizados por Alexander Sturgis, contribuíram para mapear, investigar e demonstrar a pluralidade de significados dessas representações ao longo de diferentes épocas e contextos. De fato, as imagens dos artistas indicam várias camadas de interpretação do lugar social dessa figura. Nelas coexistem e se misturam visões antagônicas: intelectuais ou artesãos, mártires ou devassos, ingênuos ou revolucionários, loucos ou sábios. As imagens dos artistas personificam concepções diversas acerca da criação e da criatividade, da inspiração e do talento, da fama e do reconhecimento. Se a imagem mítica do artista como herói rebelde, outsider e mártir é uma criação do Romantismo, ela seguiu ecoando nos modos como se pensou ou escreveu acerca dos artistas, e também na maneira como os próprios artistas representaram a si mesmos ou a seus pares. As variações dessas imagens são eloquentes, tanto a respeito das representações dos artistas quanto da sociedade que as produziu.
Tal eloquência está presente nas representações visuais das figuras de artistas que Maraliz Christo e Fabio D’Almeida abordam em seus textos. Os retratos de grupo pintados por Arthur Timótheo da Costa e Angelo Bigi e o retrato historiado de Aleijadinho por Henrique Bernardelli propiciam a Christo e a D’Almeida a oportunidade de investigar como os artistas representaram a si próprios e a seus pares, construindo seu pertencimento a um círculo artístico e à história.
Christo enfatiza, nos dois retratos que aborda, a necessidade dos artistas de criarem uma memória coletiva que afirmasse a importância de seu grupo, ambicionando reconhecimento profissional, tanto por sua produção artística, quanto pela participação atuante na sociedade. D’Almeida demonstra como Bernardelli, ao retratar Aleijadinho, escreve por meio da imagem uma história da arte no Brasil, comentando ao mesmo tempo as condições de formação dessa história e do meio de arte brasileiro de sua época.
A construção da imagem do artista e de sua condição social também são objeto de análise de Alberto Chillón. O pesquisador traz à baila a problemática do estatuto social do artista-artífice, condição em profunda alteração no século XIX brasileiro. O desejo dos estucadores de serem reconhecidos como artistas, e não meros artesãos, é exemplificado pela história do frontão realizado pelo escultor Chaves Pinheiro para a casa da família Meira no Rio de Janeiro no século XIX. Os modos como compreendemos a figura do artista na história da arte resultam dos discursos visuais sobre ela, mas também dos textuais. Elaine Dias e Camila Dazzi abordam exemplos de autopromoção de artistas que criaram uma imagem de si próprios veiculada nos jornais, seja por meio de anúncios publicitários, seja por meio de artigos críticos em que essa imagem era exaltada.
Dias examina a autopromoção de artistas fotógrafos, litógrafos e pintores retratistas franceses atuantes no Rio de Janeiro. Dazzi desenvolve hipóteses sobre os modelos de modernidade adotados por Henrique e Rodolpho Bernardelli como imagens de si próprios. As duas autoras vinculam os discursos publicitário e crítico à mudança no estatuto dos artistas no século XIX que leva à necessidade da propaganda e da veiculação de uma imagem ao mesmo tempo atraente e confiável junto ao público.
O tema da representação do artista adquire pertinência especial no universo geográfico latino-americano, marcado pelas distinções sociais relativas ao trabalho manual no contexto do trabalho compulsório e à formação tardia do meio de arte no sentido moderno, o que se dá após a formação das academias, de um sistema de exposições e do mercado de arte.
Sandra Accatino, Josefina de la Maza e Catalina Valdés trazem aportes importantes para a reflexão acerca dessa especificidade. A partir da análise de três casos – a recepção de um álbum de desenhos de artistas das escolas italianas no Chile, a narrativa de histórias da arte chilena baseadas na biografia de artistas, e a pintura Giotto Pastor, de Pedro Lira – as autoras demonstram que as representações do profissional da arte no contexto latino-americano correspondem às demandas da construção de uma tradição local e, simultaneamente, à reivindicação de pertencimento à história da arte ocidental. Tal vontade de inscrição numa tradição ao mesmo tempo local e internacional resulta do anseio de pertencimento àquilo que Natalia Majluf identificou como “cosmopolitismo marginal”, característico das artes e da cultura em muitos contextos da América Latina, especialmente no momento de formação das nações independentes no continente, ao longo do século XIX. A iconografia do Giotto pastor, cara à narrativa ocidental da arte, representando uma de suas lendas fundacionais – aquela que representa tanto a retomada de um saber “esquecido”, a observação da natureza, quanto o princípio de uma nova tradição, a italiana, – ganha contornos específicos no contexto latino-americano, em que se busca ao mesmo tempo reivindicar a herança ocidental e inventar uma escola local, a partir da emulação de jovens talentos, tão “selvagens” e inatos como Giotto, por profissionais treinados na tradição europeia.
Os modos como compreendemos a figura do artista na história da arte também são construídos nos textos que circulavam em jornais e revistas. Laurens Dhaenens e João Brancato enfocam esse aspecto da formação da imagem de artistas.
Dhaenens analisa a representação de artistas latino-americanos por parte da crítica de arte no Chile, na Argentina e na Colômbia, nas décadas de 1870 e 1880. Estudando os casos do chileno Pedro Lira (1845-1912), do argentino Santiago Vaca Guzmán (1847-1896), e do colombiano Alberto Urdaneta (1845-1887), afirma que o trabalho desses artistas revela uma crença positiva no papel civilizatório da arte. Também demonstra que um pensamento sobre a arte latino-americana, mais do que nacional, aparece nessa crítica.
Brancato enfoca a série de reportagens de Adalberto Mattos, “Os nossos artistas e os seus ateliers”, publicadas na Revista illustração Brasileira na década de 1920. Acompanhadas de fotografias dos ateliês (e residências) dos artistas entrevistados, seus artigos reforçam uma identificação do temperamento do artista com seu espaço de trabalho e sua obra. Identifica um traço em comum entre várias dessas imagens, a do artista ordenado e trabalhador, cujas características estariam espelhadas na organização e beleza de seu ateliê, aspecto que liga seu estudo ao de Alain Bonnet, sobre as imagens dos artistas acadêmicos franceses.
Fechando o dossiê, o historiador francês apresenta um panorama sobre a representação dos artistas no século XIX na Europa, que ora se apresentam como geniais, incompreendidos e malditos, ora como profissionais dedicados, dignos e bem-sucedidos. Analisando retratos e autorretratos de artistas oficiais ou independentes, mas também retratos coletivos realizados por pintores das duas categorias, ou ainda gravuras e caricaturas veiculadas na imprensa, Alain Bonnet complexifica a cena artística do século XIX embaralhando as cartas do pensamento que situou, de um lado, os “verdadeiros” artistas, que seriam comercialmente mal sucedidos em vida, e, do outro, os “falsos” artistas que por se renderem às convenções foram aplaudidos por seus contemporâneos.
Assim, temos a satisfação de partilhar com os leitores da Revista Modos os artigos aqui reunidos em torno da representação do artista, tema ao qual nos dedicamos ao longo de 2018 ao preparar a exposição Trabalho de artista: imagem e autoimagem (1826-1929), realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo em parceria com o Museu Nacional de Belas Artes. O tema também deu ensejo ao X Seminário do Museu D. João VI que reuniu em maio de 2019, no MNBA, pesquisadores do Brasil, da América Latina e Europa. Desta maneira, esse dossiê integra um conjunto de ações que procuraram estimular o debate sobre a imagem do artista.
Organizadores
Ana Maria Tavares Cavalcanti – Docente e pesquisadora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: ana.canti@eba.ufrj.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1445-720X
Fernanda Pitta – Curadora da Pinacoteca de São Paulo. E-mail: fpitta@pinacoteca.org.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9892-5380
Referências desta apresentação
CAVALCANTI, Ana Maria Tavares; PITTA, Fernanda. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 3, n.2, p. 96-101, maio/ago. 2019. Acessar publicação original [DR]
Canibalismos Disciplinares. Entre a História da Arte e a Antropologia: museus, coleções e representações | MODOS. Revista de História da Arte | 2019
Canibalismos Disciplinares. Entre a História da Arte e a Antropologia: museus, coleções e representações | MODOS. Revista de História da Arte | 2019, BRULON Bruno (Org d), OLIVEIRA Emerson Dionisio G. (Org d), História da Arte (d), Antropologia (d), Museus (d), Coleções (d), Representações (d), Modos (Mdd)
Em sua origem, aquilo que a história da arte e a antropologia apresentam de comum é a constituição de saberes sustentada pela constituição de coleções. O que as diferenciou ao longo do tempo foram os critérios de valores que as levaram a construir coleções e a acumular cultura nas instituições que ajudavam a legitimar ambos esses campos do saber – notadamente os museus. Hoje a antropologia já se distanciou dos objetos, dando lugar à arte que passa a se apropriar de um conjunto de referências culturais requalificando-as como obras. E a história da arte, por sua vez, abriu-se para questionar os mecanismos que formam os distintos sentidos do “artístico”, suas implicações e ativações sociais, ampliando seu campo de atuação para diferentes culturas visuais e formas de circulação poéticas1. A disputa iniciada no final do século passado entre a linguagem científica e a linguagem artística, já não apresenta validade para as análises sobre estes diferentes regimes de valor2 no contexto contemporâneo, sendo mais recentemente preconizadas as análises que consideram as intermediações entre um campo e o outro, e as práticas por detrás das apropriações culturais (Chartier, 2002) que, no presente número, escolhemos nos referir como “canibalismos disciplinares”.
Na esteira do livro Canibalismes disciplinaires de Thierry Dufrêne e Anne-Christine Taylor (2010), inspirados pelo Simpósio História da Arte e Antropologia, organizado pelo Musée du quai Branly (Paris), em 2006, e pelos trinta anos da discutida exposição Magiciens de la Terre, de 1989, em suas repercussões para os museus e exposições de arte na França bem como em países não europeus, o presente dossiê buscou acolher investigações de pesquisadores da história da arte, das ciências sociais e da museologia preocupados com as relações, as conexões, os conflitos e as contradições operadas pelas narrativas e representações contemporâneas produzidas na intercessão entre a antropologia e a arte.
Privilegiando objetos, processos, eventos e instituições que navegam entre as duas áreas, num processo de canibalismos mútuos entre essas duas práticas disciplinares, os artigos selecionados revelam como essas diferentes disciplinas vêm, no contemporâneo, se alimentando de apropriações culturais produzidas a partir da conciliação de discursos dissonantes do passado. Nas intersecções entre a antropologia e a história da arte, a museologia é a terceira chave deste relacionamento pois opera com as transformações dos objetos, investindo-os em processos singulares e próprios do campo, abarcados pela noção de musealização, um ato simbólico e criativo que produz sentidos e cria valores. Sendo assim, questões como contexto, origem, autenticidade, (re) socialização, artificação, colonialismo, descolonização, hibridismos, entre tantas outras, estimulam o debate e as aproximações em projetos narrativos, colecionadores, curatoriais etc.
Neste sentido, em diversos dos textos aqui apresentados, a arte aparece menos como um campo delineado e estático e mais como um tipo particular de antropofagia, que assimila objetos e valores provenientes de matrizes culturais distintas e classificados por outras disciplinas. Logo, para pensarmos em termos de apropriações, considerando o estado de constante devir em que se encontram os objetos musealizados ou revalorados nos regimes híbridos, se faz necessário – como comprovam as análises aqui presentes – pensar em termos de transições, das passagens e dos interstícios existentes entre a arte, a antropologia, a museologia e os demais saberes que produzem objetos para serem transmitidos nos diversos discursos e instituições constantemente renegociados no presente.
Em seu artigo “Esse ‘troço’ é arte? Religiões afro-brasileiras, cultura material e crítica”, Roberto Conduru analisa as sucessivas apropriações da cultura material oriunda dos ritos religiosos afro-brasileiros, discutindo o seu valor artístico nos museus contemporâneos. Apreendidos dos terreiros pela repressão policial a essas religiões marginalizadas, os objetos de culto são canibalizados pela etnologia ou pela arte nos regimes museais. A partir de um contexto controverso em que esses objetos foram introduzidos nos museus entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, é por meio do pensamento de intelectuais como Raimundo Nina Rodrigues e Arthur Ramos, na antropologia, e Mário Barata, na museologia e na história da arte, que se passa a evocar a dimensão artística investida nos objetos usados no culto religioso do candomblé. De “bugigangas” a obras de arte, esses objetos de cultos afro-brasileiros permitem compreender a complexidade dos regimes de valores em que se dão as apropriações culturais pelas disciplinas científicas, pelo patrimônio e pelos museus.
No artigo “Produção cultural indígena e história da arte no Brasil: exposições e seus enunciados (parte I – Alegria de Viver, Alegria de Criar)”, Ivair Reinaldim apresenta sua reflexão sobre a arte indígena no Brasil e sua representação em exposições brasileiras. A partir do estudo de caso da mostra Alegria de Viver, Alegria de Criar, idealizada por Mário Pedrosa nos anos 1970, Reinaldim analisa como uma certa visão histórica sobre a produção cultural indígena no país determina as abordagens teórico-metodológicas que levam à produção de suas representações recriadas pelos museus e pelo campo da arte. A apropriação cultural de referências indígenas na arte contemporânea brasileira é abordada numa perspectiva crítica no artigo de Ilana Seltzer Goldstein. A autora demonstra como é no diálogo interdisciplinar entre a antropologia e a história da arte que tais apropriações se tornam possíveis e se mostram profícuas tanto para os artistas quanto para os próprios povos indígenas. O artigo reconhece na arte contemporânea uma nova arena de luta por visibilidade dos povos indígenas no Brasil, ainda que deixando transparecer o evidente lugar dos indígenas nas disputas inerentes a essas traduções culturais no campo artístico.
Nestas abordagens artístico-etnográficas, a questão da autoridade sobrepõe-se à própria noção de apropriação cultural, e as análises revelam que as representações construídas da cultura na arte se veem marcadas por diferentes autoridades científicas e culturais, como a do etnógrafo ou a do artista e a do curador. No texto “As carrancas de Jacque, Lina e Emanoel: a estética do assombro em três coleções de arte popular”, as autoras Daniela Ortega Caetano dos Santos e Priscila Faulhaber demonstram como a valorização de obras consideradas como arte popular é determinada pela personalidade dos colecionadores. Ao investigarem a trajetória de coleções de Jacque Van Beuque, Lina Bo Bardi e Emanoel Araújo, discutem como a percepção da arte nestes diferentes olhares autorizados configura um campo estético e cultural próprio das artes populares no Brasil, conformando um discurso dominante e classificando as obras ao mesmo tempo em que atribuindo valor aos colecionadores. Já Renata Montechiare, em seu artigo “Arte versus Cultura: a exibição dos objetos da Sala de África do Museo de Culturas del Mundo de Barcelona”, explora as divergências entre historiadores da arte e antropólogos no tratamento, nos usos e nas apropriações de coleções de objetos “extraeuropeus” pelo Museo de Culturas del Mundo de Barcelona. Montechiare lembra que o museu possui um papel essencial nesta disputa entre saberes disciplinares, visto que a instituição pode repensar as oposições fora de uma busca obsessiva por uma definição ou classificação estrita de tais objetos.
A questão da autoridade artística reaparece no artigo de Maurício Barros de Castro e Myrian Sepúlveda dos Santos, na análise do caso do Museu de Arte Negra criado pelo ativista, escritor e pintor Abdias do Nascimento, a partir de uma coleção pessoal e voltado para a valorização de artistas negros ignorados pela história da arte oficial. Para os autores, a revalorização da cultura negra pelos museus e nas artes no Brasil estava ligada ao ativismo de grupos organizados que reivindicavam, desde os anos 1940, a criminalização do preconceito. O papel de intelectuais como Alberto Guerreiro Ramos e Édison de Souza Carneiro, a partir do mundo acadêmico e em defesa dos direitos civis, teria sido determinante para o processo de requalificação da cultura negra no país. Ainda na direção da compreensão da reclassificação da arte das culturas negras, Tiago Guidi, em “Fatos sociais como esculturas”, contrapõe textos clássicos do início do século XX de Émile Durkheim e de Carl Einstein, questionando-se que perguntas a história da arte e a antropologia fazem aos objetos sagrados para fundar suas epistemologias.
Os aspectos políticos na arte, que por vezes engendram a reinterpretação de coleções, são flagrantes na observação de casos de estudo específicos envolvendo questões sociais evidenciadas por meio de interpretações artísticas. Patricia Reinheimer, em seu artigo “O moderno rústico: arte e indumentária na década de 1960”, relaciona memória, indumentária e arte para pensar uma coleção de documentos pertencente ao arquivo pessoal do casal Olly e Werner Reinheimer que contribuiu para a criação de uma estética específica atravessada por questões de gênero, classe e raça, abordadas pela autora. Os arquivos são, aqui, percebidos como importantes instâncias de produção e estabilização de discursos. Em sua análise, o lugar privilegiado do mercado constitui o campo mais imediato dos museus e da arte influenciando a revalorização de objetos e a constituição de coleções qualificadas como coleções de arte.
No artigo “Natureza e cultura no entorno do Central Park”, Solmaz Kive recupera a apropriação de objetos etnográficos expostos nos museus de história natural e de antropologia de meados do século XIX, analisando a sua migração para os museus de arte a partir do final do século XX. A reclassificação dos objetos científicos como “obras de arte” pelos museus permite levantar questões sobre a própria eficácia da musealização. A autora realiza uma comparação entre exposições etnográficas e exposições de história da arte em museus da cidade de Nova York, visando explorar as semelhanças que persistem em abordagens expositivas pensadas como opostas ou em contraste, para reconsiderar as críticas tecidas a esta tendência à reclassificação. Em sentido distinto, porém partindo da mesma transição museográfica, Bruno Brulon apresenta a comparação entre uma exposição de objetos xamânicos no Musée du Quai Branly, na França, e a apropriação do dispositivo museu num terreiro de candomblé, na cidade de Recife, Pernambuco. O autor propõe discutir a dessacralização dos objetos rituais pelo museu francês, por um lado, e a profanação da própria musealização, como processo simbólico e performativo apropriado pela comunidade de um terreiro de candomblé na criação de um museu experimental religioso. Em sua análise, os objetos rituais são ativadas pelo axé, uma força mágica que envolve objetos e pessoas em suas relações por meio da musealização, de modo que o museu e a arte não necessariamente excluem a religiosidade.
Ao evidenciarem as interseções produtivas de novas interpretações para objetos, por vezes, inclassificáveis, os canibalismos disciplinares contribuem para lançar olhares indeterminados e indeterminantes sobre os processos museais e as disciplinas que os constituem. O presente número, para além de considerar os objetos e seus valores determinados, apresenta perspectivas variantes sobre a própria atribuição de valores como um processo contínuo de apropriação de saberes abrindo uma via interdisciplinar para a descolonização dos regimes dominantes.
Notas
1 Especialmente no Brasil, entre outras, temos as reflexões de (Huchet, 2004); (Kern, 2013); (Pugliese; Correa, 2017); (Marques et. all, 2013).
2 Sobre o conceito de “regimes de valor”, ver (Appadurai, 2007).
Referências
APPADURAI, Arjun. Introduction: commodities and the politics of value. p. 3-63. In: _______. (ed.) The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
CHARTIER, Roger. Introdução. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: _____. História Cultural. Entre práticas e representações. Algés: DIFEL, 2002, pp.13-28.
DUFRÊNE, Thierry & TAYLOR, Anne-Christine. Cannibalismes disciplinaires. Quand l’histoire de l’art et l’anthropologie se rencontrent. Paris : Musée du Quai Branly / INHA, 2010.
HUCHET, S. Questões sobre o lugar e a função da História da Arte. Anais do XXIII Colóquio Brasileiro de História da Arte, Rio de Janeiro: CBHA: 2004, p. 425-428.
KERN, M. L. A História da Arte: revisão e novas perspectivas. In: COUTO, M.; FUREGATTI, S. (org.). Espaços da Arte Contemporânea. São Paulo: Alameda Editorial, 2013, p. 85-99.
MARQUES, L.; MATTOS, C.; ZIELINSKY, M.; CONDURU, R. Existe uma arte brasileira?, Perspective, 2, 2013.
PUGLIESE, V.; CORREA. P. Historiografia da Arte no Brasil: memórias e invenções. In: PARAGUAI, L.; SOBAGE, M. (org.). Memórias e inventações. São Paulo: Anpap, 2017, p.64-75.
Organizadores
Bruno Brulon – Professor de Museologia no Departamento de Estudos e Processos Museológicos – DEPM da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO e do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS (UNIRIO/MAST). E-mail: brunobrulon@gmail.com ORCID: ˂ https://orcid.org/0000-0002-1037-8598 ˃
Emerson Dionisio G. Oliveira – Docente e pesquisador do Departamento de Artes Visuais, no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais e no Programa de Ciência da Informação da Universidade de Brasília. E-mail: dionisio@unb.br ORCID: ˂https://orcid.org/0000-0002-3705-1667 ˃
Referências desta apresentação
BRULON, Bruno; OLIVEIRA, Emerson Dionisio G. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 3, n.3, p.61-66, set./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]
Intersecções do exílio: redes artísticas transnacionais, associações e colaborações | MODOS. Revista de História da Arte | 2020
Intersecções do exílio: redes artísticas transnacionais, associações e colaborações | MODOS. Revista de História da Arte | 2020, OLIVEIRA Leonor de (Org d), COUTO Maria de Fátima Morethy (Org d), Exílio (d), Redes Artísticas (d), Associações Artísticas (d), Colaborações Artísticas (d), Modos (Mdd)
O dossiê Intersecções do exílio: redes artísticas transnacionais, associações e colaborações surgiu de nosso interesse mútuo pelo tema, que desenvolvemos em pesquisas e artigos recentes.
Considerando que processos de migração, no campo das artes, desempenham papel crucial na criação e difusão de ideias, conceitos e novas formas de expressão artística, rompendo barreiras entre “centro” e “periferia” e estilhaçando cânones e modelos, buscamos, com nosso dossiê, estimular o debate e a reflexão sobre a constituição de redes criativas e de coletivos artísticos ao redor do globo. Não se trata, evidentemente, de menosprezar os efeitos nefastos de migrações forçadas na vida de indivíduos, grupos sociais e comunidades, mas de discutir o potencial transformativo de intercâmbios diversos no campo das artes. Interessava-nos, em particular, discutir a formação de grupos formais ou informais que desafiaram narrativas historiográficas, sobretudo as produzidas no universo europeu e norte-americano, diversificaram formas de intervenção e exposição e definiram novas geografias de intercâmbio.
Os textos aqui reunidos abordam diferentes geografias, reenquadram temas e personagens europeus e norte-americanos no contexto da América Latina ao mesmo tempo em que discutem os efeitos da passagem de artistas latino-americanos pelos centros hegemônicos de poder. A partir de diferentes perspectivas, propõem-se a novas leituras sobre a circulação e mobilidade de artistas e agentes culturais e sobre suas experiências criativas e comerciais no exílio.
Torna-se claro que as próprias práticas artísticas locais bem como o contexto político e de imigração intervêm no acolhimento de obras de arte, movimentos e mesmo leituras historiográficas sobre o passado. Desses cruzamentos ou confrontos podem, então, resultar tensões e divergências que longe de serem prejudiciais propiciam a possibilidade de se escreverem diversas histórias e não apenas uma versão única, nacional ou hegemônica das práticas artísticas a nível global.
As tensões entre um centro que dita normas estéticas e de atuação plástica/política e as suas ramificações heterodoxas podem levar à criação de uma categoria específica de “exilados artísticos”, como aconteceu no caso do Situacionismo, aqui tratado. Este dossiê aponta também para as diferentes experiências de exílio que promovem o reforço de ligações artísticas e culturais anteriormente estabelecidas e, inclusivamente, a constituição uma “segunda vida” para a obra ou seu autor. Deste modo, rotas artísticas alternativas se estabelecem, do Chile para a Bulgária, de França para Portugal, de Itália para a Argentina ou para o Brasil, da Europa germanófila para o Uruguai, dependendo da trajetória pessoal de artistas, historiadores de arte ou curadores.
A ideia de uma circulação mais fluída que permite estabelecer laços com os meios artísticos e culturais de destino é reforçada se atentarmos precisamente nas histórias individuais, que indicam contactos pré-estabelecidos e redes de sociabilidade. Por outro lado, delimitações narrativas sobre a “Escola de Londres” ou o “Nouveau Réalisme” ou da arte comprometida da Europa a leste da cortina de ferro, tornam-se mais frágeis quando confrontadas com o trabalho de artistas vindos das chamadas “periferias” da Europa ou do continente americano, que introduzem novas questões estéticas e políticas e novas coordenadas culturais e, consequentemente, produzem olhares críticos sobre os cânones estéticos estabelecidos ou oficializados.
Outro elemento importante que o estudo do percurso pessoal revela é a transferência dessa mesma fluidez para o trabalho em contexto de exílio, que aproxima as diferentes geografias e conjuga processos culturais e artísticos e metodologias historiográficas. Termos como “biculturalismo”, “contaminação”, “hibridismo”, “cruzamento”, “troca” podem explicitar os efeitos do encontro entre o contexto de partida e de chegada e definir um circuito de transferência com duplo sentido.
O dossiê abre com a contribuição de Joana Baião e Leonor de Oliveira sobre a migração dos artistas portugueses Paula Rego, João Cutileiro, Bartolomeu Cid dos Santos, Lourdes Castro e RenéBertholo para Londres e Paris no imediato pós Segunda Guerra. O artigo analisa a participação desses artistas na formulação de uma nova corrente estética, a nova-figuração, debruçando-se sobre o caráter contemporâneo de seus trabalhos, quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista da nova cultura de massas e de consumo. Aborda, em especial, a recepção pela crítica portuguesa da obra desse conjunto de artistas e aponta sua tentativa de “nacionalização” da nova-figuração.
Na sequência, a análise se volta para o período de exílio de um artista brasileiro em Portugal, nos anos finais da Segunda Guerra (1942-1945). Angela Grando analisa as transformações que se operaram na obra do pernambucano Cícero Dias, tendo como fio condutor as exposições em que participou e as mostras individuais que organizou em Lisboa e Porto, e a recepção de seu trabalho pela crítica portuguesa, no período em que residiu no país, após ter sido obrigado a deixar a França por ter se tornado prisioneiro dos alemães. A seu ver, trata-se de um período fértil em emoções e descobertas, já que o artista brasileiro tem um convívio amigável com um crescente grupo de artistas e escritores atuantes em Portugal e sua pintura ganha novas configurações formais que o conduzirão, quando de seu regresso a Paris, em 1945, a afirmar sua vocação para a pintura abstrata.
Os artigos de Katarzyna Cytlak e David A. J. Murrieta Flores também nos levam a refletir sobre a relação entre arte e política e sobre o compromisso social de artistas e grupos artísticos, modelados na tentativa vanguardista de transformar o mundo, abordando exemplos concretos dos anos 1960/70. A partir do estudo de caso do artista chileno Guilhermo Deisler, que se radica na Bulgária após o golpe de Estado de Pinochet, em 1973, mas que se mostra igualmente descontente com as ditaduras de esquerda, Cytlak discute o papel da arte conceitual como ato de rebeldia e resistência. Flores, por sua vez, compara as propostas da Internacional Situacionista, com o discurso mais radical do grupo de dissidentes organizado em torno da revista The Situationist Times, por Jacqueline de Jong. Para tanto, toma como ponto de partida a diferença entre “movimento” e “organização”, que configura, a seu ver, as maneiras pelas quais artistas e escritores de diferentes países participaram de cada um.
Já Maria Frick oferece ao leitor um panorama da assimilação do ideário expressionista europeu no Uruguai da primeira metade do século XX a partir da entrada e circulação no país de artistas imigrantes e refugiados. Em sua opinião, a assimilação não se deu em uma única direção, já que à medida que os artistas migrantes procuravam se adaptar à realidade local, seu trabalho também se transformava em contato com a produção ali realizada. Assim, no lugar de entender o processo de assimilação como um fenômeno de empobrecimento cultural, ela o percebe como um fator único e novo.
Os quatro artigos seguintes debatem as atuações de determinados agentes culturais fora de seus locais de origem e/ou analisam os efeitos de suas correspondências nas ideias sobre arte. Os nomes de Bernard Berenson e de Margherita Sarfatti aparecem em três dos quatro textos. Enquanto Fernanda Marinho sublinha a importância das conexões teóricas entre Berenson e Lionello Venturi, em especial seu interesse em rever a forma renascentista a partir das lentes da arte moderna, Ana Gonçalves Magalhães analisa a relação entre Berenson e a crítica de arte italiana Margherita Sarfatti e as ações desta última junto ao meio artístico portenho empenhado na promoção da arte moderna e da história da arte como disciplina acadêmica na região. Em ambos os casos, as autoras tomam as cartas trocadas entre os personagens estudados como fontes documentais de suma importância para entender o desenvolvimento de suas ideias no campo da arte, inserindo este debate no contexto política fascista e das dificuldades impostas pelo pós-guerra. Em estreito diálogo com o artigo de Ana Magalhães, Laura Cecchini nos apresenta uma fina análise da exposição Novecento em 1930 em Buenos Aires, organizada por Sarfatti, discutindo as intenções curatoriais que presidiram sua realização e destacando o impacto de projetos transnacionais na redefinição de geografias artísticas, bem como os interesses políticos em jogo neste projeto.
O dossiê finaliza com uma contribuição de Paolo Rusconi sobre o legado de Pietro Maria Bardi para o Brasil e para a Itália, focando-se, em especial na criativa colônia de artistas e arquitetos italianos que gravitaram em torno de Bardi e que, assim como ele, interagiram com a riqueza criativa e cultural de um país continental como o Brasil.
Este dossiê descentraliza, por isso, as histórias de migração artística e exílio, multiplicando destinos, rotas e atores, e projetando, assim, uma imagem complexa e global dos diálogos artísticos e práticas criativas. Novas relações e informações são estabelecidas e desenvolvidas, as quais, acreditamos, auxiliarão no aprofundamento do entendimento das relações criativas no continente europeu e americano e entre a Europa e a América Latina. Já não se trata de identificar territórios de criação e territórios de recepção, mas de afirmar a existência de um espaço dinâmico em que práticas e movimentos artísticos são discutidos criticamente e transformados em paralelo com interesses políticos e resistências locais contra a imposição de projetos político-culturais hegemônicos.
Organizadores
Leonor de Oliveira – Investigadora integrada do Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa. A sua investigação de pós-doutoramento centra-se no contexto de migração de artistas portugueses para Londres no pós-guerra e está a ser também desenvolvida no Courtauld Institute of Art, Londres. Publicou recentemente a monografia Portuguese Artists in London: Shaping Identities in Post- War Europe, editada pela Routledge. E-mail: leonor.oliveira@fcsh.unl.pt. ORCID: https: //orcid.org/0000-0001-7125-8875
Maria de Fátima Morethy Couto – Professora Livre-Docente do Instituto de Artes da Unicamp. Em seu estágio de pós-doutorado, realizado no Centro de Pesquisa TrAIN da University of the Arts (Londres), com bolsa da FAPESP, e no INHA (Paris) analisou a passagem de artistas ligados à arte construtiva/cinética oriundos da América do Sul, em Londres e Paris, durante as décadas de 1950/70. Já publicou diversos artigos referentes a este tema. E-mail: mfmcouto@unicamp.br . ORCID: ˂ https://orcid.org/0000-0003- 0561-6616
Referências desta apresentação
OLIVEIRA, Leonor de; COUTO, Maria de Fátima Morethy. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 4, n.1, p.86-90, jan./abr. 2020. Acessar publicação original [DR]
A arte antiga no tempo presente | MODOS. Revista de História da Arte | 2020
A arte antiga no tempo presente | MODOS. Revista de História da Arte | 2020, FREIRE Luiz Alberto Ribeiro (Org d), ROSADA Mateus (Org d), Arte Antiga (d), Modos (Mdd)
Conhecer o Brasil significou para o projeto modernista visitar e reconhecer a antiguidade artística nacional, registrar suas manifestações e estudá-las para maior compreensão da nossa constituição histórico-cultural. Foi também uma oportunidade de lançar um olhar menos colonizado e europeizado sobre a arte brasileira, mestiça, nascida dos tantos encontros de culturas e tradições que se realizaram em solo nacional. Essas ações tiveram momentos de maior e menor dinâmica no decorrer da segunda década do século XX. A partir de um olhar retrospectivo, por diversas ocasiões a produção de arte no Brasil se valeu de releituras e reinterpretações de manifestações do passado nacional, buscando ressignificar essa herança e mesmo dar significado às obras contemporâneas. Nos últimos anos, ainda, o avanço dos cursos de pós-graduação fomentou uma retomada das pesquisas que revisaram o conhecimento existente e inovaram com abordagens de bens culturais ainda por identificar e olhares inéditos sobre as manifestações artísticas, incluindo e abrangendo representações marginalizadas pelos binômios centro-periferia, capital-interior pelas discriminações de gênero, de classe social, de raça, cor e etnia. Nesse contexto surgiram expressões da arte contemporânea que se apropriam da arte antiga e lhe conferem outros significados sob a égide do pensamento descolonizador.
Por todo lado a arte do passado instiga o nosso presente, apresenta-se como uma esfinge a suscitar decifrações e reações as mais diversas possíveis, que vão do desprezo às explicações científicas e fantasiosas. Há um desejo irresistível em compreendê-la, mas também ações que promovem o seu apagamento, afinal, decifrar os seus enigmas implica em acordar os monstros do (in)consciente coletivo. O diálogo artístico entre tempos diversos auxilia a consciência e a crítica do presente. Nesse dossiê a discussão se desenvolve a partir de realidades artísticas diversas.
Com Libri Principis e as Ilustrações de Flora e de Fauna do Brasil Holandês, Cláudia Philippi Scharf nos leva a um agradabilíssimo passeio, com riqueza dos detalhes e das técnicas, pelas obras de ilustração científica realizadas no período nassoviano. Aborda não apenas os dois volumes dos Libri Principis, que dão título ao artigo, mas também outras duas obras do tempo de Nassau: os quatro volumes do Theatrum rerum naturalium Brasiliae e a Miscellanea Cleyeri, defendendo a indissociabilidade que havia entre arte e ciência e defendendo que ambas jamais deveriam ser entendidas de forma separada.
Do século XVII, chegamos ao século XIX através de uma linha semelhante, de revisita à arte de tempos pregressos, com a reflexão de Artur de Vargas Giorgi, em seu ensaio sobre Abstratos e realistas: a América Latina e o vazio fundacional. O discurso de Giorgi se calca na dicotomia entre a realidade e a abstração no modo de representar os heróis dos processos de independência de países hispanoamericanos e do Brasil, demonstrando como as nações de fala castelhana tinham a tendência a representações mais idealísticas, ao passo que as telas brasileiras apresentaram um aspecto de representação muito mais real da paisagem nacional, fatores muito ligados ao processo de colonização e à visão de mundo de suas antigas metrópoles.
Raquel Quinet Pifano, ao tratar de Aleijadinho por Murilo Mendes, nos fala de como a abordagem de Mendes bebe em outras fontes nacionais e fortalece a percepção de que a obra do artista mineiro acaba sendo uma síntese entre o temporal e o transitório e, com isso, ao mesmo tempo nacional e universal.
E o contraponto entre a tradição artística europeia e a recepção brasileira perpassa, de maneiras distintas, nos ensaios De olhos abertos, de olhos fechados: passado e presente da iconografia do Cristo crucificado, de Alexandre Ragazzi, e “Mas que temos nós com isso”? Roteiros antropofágicos na coluna “Feira das quintas”, de Thiago Gil. O primeiro tem enfoque maior na forma como a representação do Cristo Crucificado foi se alterando ao longo dos períodos e das inflexões da doutrina cristã e as variações que teve até o século XVIII, quando é feita a escultura do Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas (MG); o entalhador realiza a imagem com o olhar divergente, opção com profundo significado teológico. No segundo texto, a arte do Velho Continente é também abordada, mas sob uma postura de refutação, quase iconoclasta, do modernista Oswald de Andrade, em discussões que anteciparam o que viria a ser proclamado pelo Manifesto Antropófago de 1928, buscando lapidar e consolidar uma postura de defesa e valorização da arte brasileira, mestiça e de múltiplas influências. Visão semelhante a essa é colocada pelo artigo “Tradição Clássica e Historiografia da Arte na obra “Padre Jesuíno do Monte Carmelo” de Mário de Andrade”, no qual Myrian Salomão nos apresenta a leitura que outro membro da semana de Arte Moderna de 1922 faz de um artista colonial.
Em certa medida antropofágica, a releitura da tradição e da artesania brasileiras pela artista contemporânea Ana Maria Tavares são os motes para a análise levada a cabo por Marilia Solfa e Vanessa Rosa Machado, com o texto Atlântica Moderna: a natureza feita de crochê e vidro – Produção artística e saber artesanal em Ana Maria Tavares e Lina Bo Bardi, que traça um consistente prospecto da obra de Tavares e demonstra como o olhar de Lina Bo Bardi acabou por influenciá-la.
Daniella Amaral Tavares em “O minotauro tranquilo: Rubens e o diálogo com a antiguidade e outras tradições” analisa a humanização do Minotauro na obra de Rubens e o diálogo que o pintor estabelece com a tradição literária e iconográfica do mito do monstro de Creta. Por fim, a arte contemporânea se coloca novamente presente com o Anticlassicismo da apropriação de imagem no tempo presente, de Dilson Rodrigues Midlej, autor que nos brinda com um percurso por obras dos artistas brasileiros Caetano de Almeida, Renato Medeiros, Alex Flemming, Odires Mlászho, Camila Soato e Calasans Neto, comparando as realizações desses autores aos modelos clássicos ou neoclássicos que lhes serviram de base, e expondo os questionamentos contemporâneos que essas releituras fazem.
É, portanto, oferecido ao leitor um repertório temático que permite a reflexão acerca do mundo das significações e ressignificações e projeções da arte do passado no tempo presente.
Organizadores
Luiz Alberto Ribeiro Freire – Pesquisador CNPQ 2, Doutor em História da Arte pela Universidade do Porto, Portugal. Professor de História da Arte da Universidade Federal da Bahia. Pesquisa a talha na Bahia, arte conventual feminina e outros temas da arte baiana dos séculos XVIII e XIX. E-mail: luizfreire1962@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7125-8875
Mateus Rosada – Doutor em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo USP/São Carlos. Docente no Departamento de Análise Crítica e História da Arquitetura e do Urbanismo da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: mateusrosada@arq.ufmg.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2099-5290
Referências desta apresentação
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro; ROSADA, Mateus. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 4, n.2, p. 118-121, maio/ago. 2020. Acessar publicação original [DR]
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