Vinte e seis anos depois da publicação de um artigo no dossiê na Revista USP intitulado “A greve negra de 1857 na Bahia”, o historiador baiano João José Reis lançou resultados mais amplos desta ambiciosa pesquisa em “Ganhadores”, livro de subtítulo homônimo ao texto do dossiê. No próprio artigo da década de 1990 foi pontuado que aquele era só parte de “um estudo mais amplo” (REIS, 1993, p.8) que ele estava realizando. Portanto, o livro é o produto deste esforço quase trintenário do historiador, que revela o aprimoramento da análise das fontes ao longo deste intervalo, além do enriquecimento da perspectiva acerca do seu objeto, seja pelas outras contribuições historiográficas que acompanharam o processo desta pesquisa até a conclusão da obra, seja pela adição de novas fontes ao trabalho iniciado anteriormente.
O exercício do ganho entre os escravizados e libertos era comum desde o século XVIII e em outras áreas além da Bahia. Ele consistia na prática de venda, por parte do proprietário ou do próprio liberto ou livre, do seu serviço para variadas atividades na cidade, como carregamentos, transportes de palanquins, venda de alimentos, entre outras atividades. Nesta lógica, mesmo o escravizado receberia uma remuneração pela função de ganho desempenhada. João José Reis outras especificidades desta dinâmica laboral fronteiriça entre a escravidão e a liberdade no espaço de Salvador oitocentista, onde há a particularidade dos “cantos de trabalho”. Eles consistiam em agrupamentos de trabalhadores, além de constituir também mais um espaço associativo negro. Inicialmente, se compunham exclusivamente de africanos que se reuniam em locais definidos onde ofereceriam seus serviços. Tal organização seguia critérios de gênero, etnicidade, normas internas e públicas, definidas por posturas.
O trabalho de ganho foi regulamentado inicialmente por postura no século XVIII, se referindo apenas às ganhadeiras, evidenciando o protagonismo longevo das mulheres negras nestas funções. Em se tratando de uma cidade negra, após a Revolta dos Malês (1835) e os temores de possíveis efeitos radicais da Revolução Haitiana em Salvador, a circulação de africanos na cidade passou a ser cada vez mais controlada e as intervenções recaíram também sobre o regime de trabalho de ganho. De modo que tais medidas restritivas levaram os trabalhadores a cruzarem os braços por cerca de dez dias em junho de 1857. Reis defende que aquelas imposições se davam muito mais no sentido de tentar dificultar a vida destes trabalhadores na cidade e “desafricanizar” este espaço, forçando-os a retornar à África ou a buscar trabalho no campo, onde a mão de obra se escasseava. Com efeito, foi colocado um debate público que envolvia interesses distintos entre os afetados pelos projetos de lei sobre os ganhadores: elites, empresários, consumidores, brasileiros desempregados e os próprios africanos.
A partir da leitura do livro é possível perceber uma divisão entre uma primeira parte mais voltada para a apresentação do contexto laboral, as imposições do Estado sobre ele que levaram à greve de 1857, a sua deflagração e seus efeitos imediatos. Reis salienta nas linhas iniciais como esta mobilização envolveu interesses distintos entre o empresariado, as elites e trabalhadores locais. Além disso, ele revela as diferentes implicações das determinações impostas ao trabalho de ganho. A insatisfação dos trabalhadores, por exemplo, se dava tanto em relação aos valores a serem pagos pelas novas normas, à dependência de um “fiador de comportamento” para os ganhadores livres, quanto ao constrangimento relativo à exigência de utilização de uma placa de metal em seu corpo para identificá-lo como ganhador. Por outro lado, o autor reforça como todos estes entraves e a consequente insurgência colocavam em risco o abastecimento de Salvador, dependente do serviço prestado por esta mão de obra.
Em seguida, a partir do capítulo intitulado “Rescaldo”, o historiador se concentrou mais em analisar casos específicos e os reflexos identitários e culturais paralelos da vida destes trabalhadores que se apresentam a partir das fontes. Ele se dedicou a apresentar a reconfiguração do trabalho de rua posterior ao furor da greve, em um cenário em que a escravidão e a presença africana iam se tornando cada vez mais escassos. De 1870 em diante, o trabalho livre também era protagonizado por corpos negros, mas agora ele é mais racializado do que “etnicizado”. Além disso, nesta outra parte ele buscou analisar outros aspectos a respeito desta relação por meio da observação de casos específicos, como em “Os ganhadores de Porcina”, onde Reis destrinchou as fontes que tratavam da escravaria desta proprietária baiana, que lançou mão de várias estratégias para burlar o fisco do trabalho de ganho, registrando os seus ganhadores apenas como músicos. Aqui também foram esmiuçados os registros de matrícula dos ganhadores. Por meio destas fontes o historiador conseguiu acessar dados a respeito das origens dos ganhadores, seus cantos de trabalho, seus conflitos, seus ofícios e demais papéis desempenhados na sociedade, como a participação na Guerra do Paraguai, maior conflito bélico já deflagrado na América do Sul e que definiria os rumos políticos do país.
A narrativa acerca de uma sublevação de trabalhadores negros em meados do século XIX restitui-lhes seu papel de agentes políticos, algo que foi tirado destes sujeitos por muito tempo pela historiografia e vem sendo debatido por vários historiadores e historiadoras nas últimas décadas. Já em 1959, o historiador piauiense Clóvis Moura em seu Rebeliões da Senzala rompera com o estigma do escravizado coisificado e sem agência, legando-lhe protagonismos a partir de diversas insurgências ao longo de todo o período escravista. Naquele momento, Moura confrontou visões essencialmente culturalistas e psicanalistas eurocêntricas a respeito do negro no Brasil, em alta no início do século XX. Ainda assim, a hipótese da passividade do escravizado e liberto perdurou nas narrativas hegemônicas, alavancadas pela análise sociológica paulista de meados do século XX. A guinada historiográfica nos grandes centros de pesquisa brasileiros acontece a partir da década de 1980, levada à cabo pelo engajamento dos movimentos negros nestes espaços e a disputa por essas narrativas por um lado, e por influências da obra de E. P. Thompson – bem como de outros representantes da História Social – por outro. Por exemplo, as análises do historiador inglês acerca da formação da classe operária em seu país acabaram chamando atenção para a urgência de se analisar a interação entre senhores e escravizados tendo em vista a sua imersão em uma “vasta rede de relações pessoais de dominação e exploração” (LARA, 1995, p.46).
Com efeito, observou-se o “redimensionamento dos estudos sobre a resistência escrava e o significado da liberdade para os cativos” (Ibidem. p. 53) a partir de obras de Robert Slenes, Sidney Chalhoub, João José Reis, Célia Maria Marinho de Azevedo, Flávio Gomes e Hebe Mattos, entre outros. Esta produção segue se acentuando a partir da diversificação de grupos de pesquisa que se debruçam sobre temas relativos à escravidão, liberdade e pós-abolição. Ademais, a intensificação da presença negra nos centros de pesquisa, que trouxe consigo epistemologias até então silenciadas, favoreceu o aprimoramento das análises acerca da experiência diaspórica forçada pela escravidão.
Em Ganhadores, Reis aproxima o leitor das fontes por meio de citações diretas e de uma análise aguçada. Apresentam-se as diferentes experiências de trabalho naquele período, se distanciando de dicotomias simplificadoras, apesar da imposição da escravidão, do racismo e patriarcalismo neste cenário. Esta sua abordagem não reduz o peso dessa condição estrutural da sociedade escravocrata, mas possibilita ao leitor acessar os meandros do cotidiano e as complexidades deste tipo muito específico de regime de trabalho. A riqueza do corpus documental analisado, composto por periódicos, legislações, anais de sessões legislativas, relatos de viajantes, relatórios de polícia, listas de matrícula dos cantos de trabalhadores, entre outros, aliada ao seu olhar de especialista em Bahia oitocentista, lhe permitiu dar mergulhos mais profundos para investigar outras questões simbólicas destes grupos, como o corpo, a religião, as canções de trabalho e a diplomacia paternalista entre escravizados e proprietários e entre ganhadores e seus fiadores. De forma que todos estes elementos foram colocados em órbita na interpretação da ação cotidiana destes trabalhadores, sem posiciona-los como dimensões separadas ao dar significado para o agenciamento destes sujeitos.
O registro historiográfico da greve de 1857 assinalado somente a partir da década de 1990 evidencia o apagamento anterior acerca deste evento, apesar da variedade de fontes a seu respeito. Reis relata que este silenciamento foi estimulado à época do evento, possivelmente para não insuflar o medo das elites e a rebelião dos negros. Na historiografia, o pioneirismo do movimento grevista de 1857 também foi invisibilizado. O autor analisou as diferentes definições dadas à greve no momento de sua deflagração, demonstrando a variedade das interpretações dadas pelos jornalistas, bem como a ausência de legislação específica para esse tipo de insurgência até então. No entanto, as narrativas hegemônicas situam a primeira greve do Brasil em São Paulo, em 1917. João José Reis, por sua vez, insere 1857 como o nascimento da autoconsciência dos ganhadores enquanto classe trabalhadora a partir da greve, entendendo também o fator racial como uma forma de viver esta posição social. Nesse sentido, seu trabalho corrobora a problematização estimulada por historiadores como Sidney Chalhoub e Álvaro Pereira do Nascimento, que defendem que
a luta dos escravos pela liberdade na segunda metade do século XIX foi o primeiro capítulo da história do movimento operário no Brasil. Os escravos organizaram-se coletivamente para obter a liberdade, negociaram condições de trabalho, fizeram greves, […]. Enfim, articularam uma cultura política complexa que ajudou a enterrar a sociedade senhorial-escravista (Chalhoub. Apud, NASCIMENTO, 2016, p.611).
Em um contexto em que a condição de ganhador ou ganhadeira, mesmo que liberta, não garantia a total emancipação e autonomia, lutar pela liberdade era também lutar e/ou negociar as interferências abusivas das autoridades sobre o exercício do ganho, inclusive resistir por sua manutenção na cidade. A experiência de disputa em torno de direitos, portanto, se iniciou no mundo do trabalho escravo e não com o operariado imigrante no início do século XX, como se ressalta em relação às greves do início do século XX.
Para finalizar, vale a reflexão a respeito do contexto atual, em que vivemos o desgaste das garantias trabalhistas ampliado por medidas de teor neoliberal. O mercado de trabalho no Brasil ainda é marcado pela informalidade e os serviços de entrega e de transporte por aplicativos de celular, como o iFood e Uber, têm correspondido a uma nova faceta desta dinâmica, se travestindo de alternativa para a crise econômica. Embora não seja equivalente ao contexto do século XIX, o trabalho dos entregadores pela via “uberizada” se aproxima da ideia do “ganho” do oitocentos, na medida em que se remunera pelo serviço prestado e não há vinculações empregatícias formais. A fisionomia da classe de entregadores também se aproxima daquela: 71% de seus agentes ciclistas são negros (AGÊNCIA BIKE, 2019, p.9). Aparentemente, a “liberdade de montar o seu horário” faria deste um “empreendedor” e não um funcionário, e esta pretensa autonomia compensaria a falta de outras garantias. Mas o que se vê é a precarização das vidas destes sujeitos que se veem presos a ter que cumprir um volume de trabalho exaustivo que renda o necessário para arcar com as suas despesas.
Nos tempos de pandemia, este tipo de serviço tem se mostrado essencial, bem como era o ganho em Salvador nos oitocentos. Diante de movimentos crescentes em defesa das vidas negras e dos vários sinais da precariedade do serviço de entrega por aplicativo, também acentuado pela dispersão do novo coronavírus, os entregadores buscam chamar atenção para as suas demandas por melhorias de condições de trabalho. Assim como acontece com as trabalhadoras do serviço de limpeza na França analisadas pela historiadora Fraçoise Vergès, entendemos que na função do transporte de encomendas a “economia do desgaste dos corpos racializados” (VERGÈS, 2020, p.125) leva os trabalhadores a se exporem aos riscos de contaminação, de forma que suas necessidades são invisibilizadas e superexploradas “para criar um mundo adequado ao consumo e à vida institucional” (VERGÈS, 2020, p.127), sobretudo em tempos de pandemia. Com efeito, o Movimento de Entregadores Antifascistas tem organizado greves e sensibilizado os consumidores por meio das redes sociais, para que na sua relação com as empresas os usuários considerem as suas demandas por meio do apoio ao “breque dos apps” e dando-lhes gorjeta, quando possível. Suas reivindicações se concentram na busca por melhores condições de segurança no trabalho e por mais garantias diante dos interesses dessas empresas bilionárias. Portanto, não há uma escravização e uma lógica senhorial propriamente dita, mas as liberdades passam a ser restringidas por algumas novas-velhas vias e surge a partir daí um outro modelo de relações de trabalho que implicam em reconfigurações sociais, culturais e políticas da parte de empresários e de trabalhadores, tal como o processo observado na segunda metade do século XIX por João José Reis.
Referências
ALIANÇA BIKE – Associação Brasileira Do Setor De Bicicletas. Pesquisa de Perfil dos Entregadores Ciclistas de Aplicativo. Disponível em http://aliancabike.org.br/wpcontent/uploads/2020/04/Apresentac%CC%A7a%CC%83o-entregadores.pdf – 2019.
LARA, Sílvia. “Blowin’ in the wind: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil”. Projeto História, vol. 12, outubro de 1995. Pp. 43-56.
MOURA, Clóvis. Rebeliões na Senzala. 4ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
NASCIMENTO, Álvaro Pereira. Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à História Social do Trabalho no Brasil. In.: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 29, nº 59, set./dez. 2016. Pp. 607- 626.
REIS, João José. A greve negra de 1857 na Bahia. Revista USP, (18), 1993. 6-29.
VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
Resenhista
Mariana de Mesquita Santos – Doutoranda em História Universidade de Brasília. E-mail: marianademesquitas@gmail.com
Referências desta resenha
REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: SANTOS, Mariana de Mesquita. Temporalidades. Belo Horizonte, v.12, n.2, p.560-565, maio/ago. 2020. Acessar publicação original [DR]
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