Categories: Todas as categorias

Futebol, sentimento e política / História – Questões & Debates / 2012

A discussão entre historiadores e cientistas sociais e políticos sobre a temática dos sentimentos na política é, sem dúvida, um fenômeno recente. Mais inquietante ainda quando esse recorte crítico é trazido para o campo do estudo político do futebol.

O Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade, da UFPR, foi o proponente do dossiê “Futebol, Sentimento e Política” ao Conselho Editorial da revista História: Questões & Debates. A proposição surgiu das discussões desenvolvidas na Linha de Pesquisa “Intersubjetividade e pluralidade: reflexão e sentimento na história” (PGHIS / UFPR) sobre o papel das emoções na construção das atividades políticas e sociais. Como a maior parte dos membros do núcleo (professores e alunos dos cursos de Mestrado e Doutorado) encontra-se alocada na referida linha de pesquisa, a sugestão da interseção entre futebol e sentimentos na política tornou-se um envolvimento crítico do grupo à proposta. Uma relação dialógica entre linha de pesquisa e grupo de estudo, forçada pelas regras institucionais da pós-graduação, da qual procuramos extrair o melhor.

A partir dessa trajetória interna do núcleo Futebol e Sociedade, a consequência óbvia foi estender a proposta de ampliação do repertório de estudo do futebol a outros pesquisadores do tema.

Sem abrir mão da interdisciplinaridade – característica saudável dos estudos sobre futebol –, a proposta do núcleo é romper as resistências dissimuladas existentes na História em relação aos estudos do futebol. Nessa trajetória, nos últimos dez anos, várias dissertações e teses sobre futebol foram concluídas ou encontram-se em andamento. Desde 2003 compartilhamos com pesquisadores de outras instituições a coordenação do GT de esportes nos encontros nacionais da Associação Nacional de História – ANPUH, assim como nos regionais, no Paraná, além de diversas inserções em eventos nacionais e internacionais. É exemplar, nesse sentido, nossa participação no GT “História del fútbol en America del Sur”, no congresso da Asociación de Historiadores Latinoamericanistas Europeos – AHILA (Espanha, 2011). Assim como é oportuno lembrar a organização, nesta mesma revista, em 2003 (volume 39), do dossiê “Esporte e Sociedade”, quando contamos com a participação do britânico Eric Dunning, do escocês Richard Giulianotti, do argentino Julio Frydenberg, além de autores brasileiros.

Podemos considerar, portanto, que o Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade tem uma trajetória relevante na consolidação dos estudos sobre futebol do campo da História.

Logo, a formatação da proposta desse dossiê sobre futebol, sentimento e política não teria existido sem a contribuição dos colegas da Intersub, como carinhosamente nomeamos a nossa linha de pesquisa. É na pluralidade dos debates sobre religião, imigração, gênero, alimentação, processos culturais e poéticas artísticas que a temática do futebol tem se inscrito. São tantos outsiders que nos sentimos em casa.

Portanto, forjamos a proposta desse dossiê como produto de um debate mais amplo sobre os sentimentos na história que acontece na linha, onde têm se desenvolvido

estudos sobre os percursos históricos e historiográficos que fundamentam a construção teórica dos sentimentos, das identidades, das relações intersubjetivas, das sensibilidades, das relações de poder e da pluralidade social e cultural, nas suas diferentes modalidades discursivas, delimitações temporais e interfaces temáticas.[1]

A organização desse dossiê sobre futebol é, portanto, um risco assumido. A diversidade disciplinar dos autores que aceitaram o desafio dá, em grande medida, o “estado da arte” em que se encontram os estudos sobre o futebol. São sociólogos e antropólogos, um crítico literário e, claro, um historiador. Tivemos a preocupação em buscar análises de pesquisadores estrangeiros e, nesse sentido, foram ricas as contribuições de dois “nativos” sobre a Argentina e a França, além de um pesquisador brasileiro sobre o futebol alemão. Façamos sobre os artigos uma breve apresentação.

Ao propor uma discussão sobre os signos afetivos no futebol, Luiz Carlos Ribeiro recorre à expressão “paixão nacional” como referência à sua análise. O artigo se estrutura em dois momentos: como intelectualmente ao longo do século XX produziu-se esse imaginário em torno do futebol, abordando na sequência algumas estratégias de como tratar histórica e politicamente esse sentimento nacional, ao que definiu como uma proposta de construção de uma agenda de estudos que se abra às possibilidades de uma história política da nossa paixão pelo futebol.

Tomando como referência seus estudos etnográficos anteriores, Arlei Damo propõe um refinamento da noção, por ele elaborada, de pertencimento clubístico, a partir da qual busca uma relação dialógica entre política e as emoções. Para tanto, explora várias manifestações desse pertencimento, fenômeno que denomina de “trama simbólica das emoções clubísticas”. A partir da narrativa do próprio torcedor, procura compreender como os indivíduos se envolvem com um clube, constituindo a paixão clubística.

Elcio Loureiro Cornelsen nomeou a experiência das Copas do Mundo de Futebol de 1990 (Itália) e de 2006 (Alemanha) para nos falar do sentimento nacionalista da população germânica. Tomando como referência a “funesta” experiência do “Terceiro Reich” e a situação contemporânea da reunificação, o autor analisa os embaraços e ressentimentos da reconstrução identitária alemã. Afirma o papel do futebol, em especial da seleção alemã, no reavivamento do trauma identitário pós-holocausto, numa conjuntura muito especial de reunificação nacional.

Futebol e sentimentos políticos na França contemporânea é o tema abordado por Michel Raspaud. Desde a famosa indisciplina do principal astro da seleção francesa (a “cabeçada” de Zidane), na Copa de 2006, até a greve dos jogadores na Copa de 2010, desenvolveu-se entre torcedores, políticos e a imprensa especializada um forte sentimento de indignação em relação ao comportamento dos atletas franceses. Os adjetivos atribuídos pela sociedade ao comportamento dos atletas na África do Sul são emblemáticos do sentimento de desonra nacional em relação às atitudes e ao péssimo futebol apresentado. Os termos mais comuns utilizados na mídia para expressar esse sentimento foram escárnio, honra humilhada, nação ridicularizada.

A perspectiva escolhida por María Verónica Moreira para nos falar da relação entre futebol e política foi a pesquisa etnográfica das eleições em um clube de futebol na Argentina. A proposta da autora é descrever e analisar como dirigentes esportivos, torcedores, sindicalistas e políticos de outros espaços sociais estabelecem alianças e práticas de clientelismo nos momentos eleitorais dos clubes de futebol. Ou seja, como os sentimentos de afinidades futebolísticas ajudam na construção de pontes e na circulação de bens entre o sistema esportivo e a política comum.

O artigo de João Manuel Santos, Maurício Drumond e Victor Melo, ao analisar o Campeonato Sul-Americano de Futebol de 1922, revisita um tema caro na literatura esportiva e política brasileira, o da celebração da nação. A partir da análise das imprensas carioca e paulista, buscam compreender como dirigentes do futebol e o público construíram e se apropriaram da seleção de futebol como um bem simbólico da nação brasileira.

Encerrando o dossiê, Lana Pereira e Alexandre Vaz tomam o filme de Joaquim Pedro de Andrade, Garrincha, alegria do povo, de 1963, como referência para a análise de dois fenômenos da cultura política e futebolística nacional: o ídolo esportivo, representado por Garrincha, e o povo brasileiro, representado na película pela torcida nos estádios. Com uma leitura fílmica refinada, várias sequências e recursos são apresentados como expressão de um discurso romântico do ídolo indomável (dentro e fora do campo), ao mesmo tempo em que dialoga com a estética do cinema-verdade, que circula entre as dores sociais e o júbilo dos dribles do ídolo nos estádios lotados.

Por fim, à parte do dossiê, três artigos e duas resenhas completam esse volume. Simone Dupla aborda elementos circunscritos acerca do sagrado feminino mesopotâmico, relacionando-o à sobrevivência do culto às deusas mães, na figura da deusa sumério / babilônica Inanna / Ishtar, considerando que as características desse culto foram perpetuadas na cultura material e nos ritos praticados durante milênios na região do Antigo Oriente Próximo.

A partir da análise das representações da Idade Média, presentes no filme Cruzada (Kingdom of Heaven), dirigido por Ridley Scott, em 2005, Edlene Oliveira Silva questiona sobre as potencialidades do cinema como recurso didático para o ensino de História. Estabelece para isso um diálogo entre imagens da película e narrativas históricas dos manuais escolares.

Utilizando como documento principal o relato escrito pelo capuchinho Claude d’Abbeville, Amilcar Torrão Filho e Daniel Rincon Caires analisam as mudanças que ocorreram nas relações entre indivíduos e o meio ambiente na região da Ilha do Maranhão, a partir do estabelecimento da França Equinocial, no início do século XVII.

Johnni Langer resenha o livro Hibridismo cultural, de Peter Burke, em que o autor debate a globalização da cultura a partir de uma perspectiva histórica, na qual, afirma Langer, os fios norteadores são a noção de articulação e a dinâmica entre as culturas, pois não existem fronteiras, mas contiguidades culturais.

O trabalho de Frank McCann D., Soldados da Pátria – História do Exército Brasileiro (1889-1937), é resenhado por Bruno Torquato Silva Ferreira. O livro analisa um período no qual o exército se consolidou como instituição nacional, permitindo a compreensão não apenas da formação histórica da instituição, como também o debate intelectual e político do período. Ao mesmo tempo, traz leituras originais sobre o papel da força militar em convulsões políticas, como as campanhas de Canudos, na Bahia (1897), e do Contestado, em Santa Catarina / Paraná (1912-15), as rebeliões tenentistas da década de 1920, a Coluna Prestes, a Revolução de 1930 e o levante paulista de 1932.

Nota

1. Linha de Pesquisa “Intersubjetividade e pluralidade: reflexão e sentimento na história”. Programa de Pós-Graduação em História da UFPR. Disponível em: .

Coordenação do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade. Universidade Federal do Paraná novembro de 2012

 


Coordenação do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.57, n.2, jul./dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

Recent Posts

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.9, n.1, 2020.

Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…

2 meses ago

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.9, n.2, 2020.

Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…

2 meses ago

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.12, n.03, 2023.

Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…

2 meses ago

História da Historiografia. Ouro Preto, v.16, n. 42, 2023.

Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…

2 meses ago

Sínteses e identidades da UFS

Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…

2 meses ago

História & Ensino. Londrina, v.29, n.1, 2023.

Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…

2 meses ago

This website uses cookies.