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Fumo e cachimbos de barro: objetos, práticas e pessoas/Vestígios – Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica/2022

Os cachimbos são peças arqueológicas ao mesmo tempo privilegiadas e negligenciadas. São privilegiadas porque são praticamente ubíquas em sítios históricos. São atraentes, mesmo quando não apresentam motivos estéticos elaborados ou chamativos. São emblemas de um passado recente e de uma prática ainda familiar, porém vivida hoje a partir de outros tipos de objetos. Quando eles aparecem nas escavações, muito frequentemente ilustram os relatórios e artigos gerais sobre os sítios de onde provieram. Não raro compõem exposições museológicas, seja de sítios escavados quanto de coleções angariadas por doações ou outros meios. Eles sempre figuram e são dignos de nota enquanto ilustrações do passado e do trabalho arqueológico realizado.

Quando iniciei os convites para participação nesse dossiê, um grande número de pesquisadores se entusiasmou com o tema, motivados a recuperar suas coleções de cachimbos e escrever sobre elas. Arrisco dizer que todos os arqueólogos que estudam o período histórico tiveram algum contato ao longo de suas carreiras com um belo conjunto de cachimbos e que gostariam, em algum momento, de retomar esse conjunto e estuda-lo ativamente.

No entanto, a realidade dos cachimbos — e é aqui que, embora privilegiada, essa categoria de artefatos é também negligenciada — é que não são normalmente vistos como uma especialização legítima na arqueologia brasileira, como o é a cerâmica dita utilitária ou o lítico. Isso acontece com vários outros tipos de materiais históricos, que não recebem atenção devotada no Brasil como ocorre em outros países, onde as análises de materiais atingem alto grau de estudo particularizado, merecedores de publicações dedicadas somente a eles (além das publicações gerais, abrangentes e conectoras). Possivelmente, isso se deva (ao menos em parte) ao fato de que, embora os cachimbos sejam praticamente ubíquos nos sítios históricos, eles normalmente aparecem em pequeno número por sítio; apenas um punhado deles. Raros são os sítios que apresentam dezenas de cachimbos de barro, permitindo assim uma análise quantitativa intrasítio. Caso contrário, é necessário estuda-los de forma regional, angariando dados sobre vários sítios, escavados por diferentes pesquisadores. Desse modo, apesar dessa visibilidade e estima inicial que suscitam, resulta que, não raro, os cachimbos são vistos apenas como suplementos decorativos ou curiosidades charmosas, poucas vezes atraindo estudiosos que se dedicam profundamente ao tema. Mas essa situação parece estar mudando.

Nos EUA, quatro importantes obras foram publicadas nos últimos anos sobre o tabaco e cachimbos: The Archaeology of Smoking and Tobacco (Fox, 2015); Smoking & Culture: Archaeology Tobacco Pipes Eastern North America (Rafferty & Mann. 2015); Tobacco, Pipes, and Race in Colonial Virginia: Little Tubes of Mighty Power (Agbe-Davies, 2016); Perspectives on the archaeology of pipes, tobacco and other smoke plants in the ancient Americas (Bollwerk & Tushingham, 2016). No Brasil, parece estar aumentando a quantidade de artigos, monografias e dissertações sobre cachimbos, o que é encorajador. Nesse sentido, esse volume, cuja publicação infelizmente foi adiada em mais de ano em função da pandemia de Covid-19, é oportuno e poderá servir de combustível adicional para estimular esse aumento, ao atuar como uma pequena amostra do que se está fazendo com esses objetos e como estamos pensando-os não somente no nosso país.

O dossiê está então dividido em duas partes: uma com artigos originais, trazendo pesquisas e estudos de caso em língua portuguesa; e a segunda para apresentar algo da arqueologia estadunidense sobre cachimbos e tabaco.

Abrimos então a edição com os artigos originais. A primeira parte é iniciada pelo texto “Olhando, desejando, in-corporando: cachimbos de barro na construção de comunidades diaspóricas”, de Marcos André Torres de Souza e Tania Andrade Lima (ambos do Museu Nacional / UFRJ). O trabalho discute cachimbos de vários contextos do Rio de Janeiro, à luz das noções de tecnologia do encantamento de Alfred Gell (1992) e de conceitos de Martin Heidegger (2012), pensando a decoração e a visibilidade dessas peças como parte fundamental do seu uso social. Não por acaso, em vista do encantamento do que é visível e sedutor, trata-se de um texto extremamente bem ilustrado. Além disso, trazem vários referenciais materiais (formais e estéticos) africanos e europeus para compreensão do processo de criação de comunidades diaspóricas no novo território.

O texto de Fábio Guaraldo Almeida (Museu de Arqueologia e Etnologia – MAE/USP), “Cachimbos de barro na comunidade quilombola de Galeão: achados arqueológicos para pensar a diáspora africana”, discute cachimbos identificados na condição de achados fortuitos, na propriedade do Sr. Silvio Campos, que é conselheiro tutelar, agente ambiental e historiador amador. A coleção, proveniente do sítio Malhada na ilha de Tinharé na Bahia, é composta por 32 cachimbos do tipo globular (ou abaulado) e um exemplar moldado barroco. As peças foram entendidas, a partir da sua manufatura e decorações, como novas referências de grupo e símbolos “gramáticais” compartilhados entre africanos e afrodescendentes, bem como parte de estratégias de resistência política à posição que esses ocupavam na sociedade.

O meu artigo, intitulado “A estetização do cotidiano e o teatro onipresente: revisitando os cachimbos barrocos”, retoma a ampla categoria de cachimbos referida como barrocos desde Frederico Barata (1944, 1951) e Eldino Brancante (1981). Os cachimbos barrocos são entendidos aqui a partir de quatro principais subsídios: na sua materialidade decorativa a partir de elementos formais e ontológicos estabelecidos como fundamentais do barroco na história e na antropologia da arte; numa comparação de elementos estilísticos com os cachimbos barrocos dos Países Baixos; de aspectos da sua produção, tais como a mão de obra artífice que os teria produzido; e a partir de um levantamento e distribuição preliminares no território brasileiro, que poderá indicar algo sobre a distribuição de produtos ou circulação de modos de fazer no território.

O artigo seguinte, “Tabaco nas frentes de lavra no centro-oeste colonial: fragmentos de um hábito cotidiano”, é de Lucas de Paula Souza Troncoso (Museu de Arqueologia e Etnologia – MAE/USP) e Paulo Zanettini (Zanettini Arqueologia). O trabalho enfatiza cachimbos de barro provenientes de quatro sítios arqueológicos associados a atividades de extração minerária em Goiás e Mato Grosso. O trabalho aventa possibilidades interpretativas sobre o contexto da fatura desses objetos, bem como sobre o seu uso e sobre sua função tanto identitária, quanto recreativa.

Por fim, Rodrigo da Banha e André Teixeira (ambos da Universidade Nova de Lisboa – FCSH/NOVA) fecha a seção dos artigos originais com o texto “Cachimbos de gesso, de barro vermelho e chibuques em Lisboa: o consumo de tabaco numa capital europeia (século XVII a meados do século XVIII)”. O texto é uma síntese das ocorrências de cachimbos na cidade de Lisboa, Portugal, região que tanto importou produtos holandeses, ingleses, franceses, italianos e otomanos, bem como abrigou produções regionais. Lisboa é entendida como porta de entrada do tabaco na Europa e como polo da cultura do tabaco à época do grande terremoto de Primeiro de Novembro de 1755.

Os artigos, especialmente tidos em conjunto, equilibram diferentes contextos e aportes teóricos compartilhados com a sociologia, a antropologia e a história da arte, bem como trazem objetos distintos, com conexões várias com diferentes pontos do mundo. É importante notar que todos os textos sobre contextos brasileiros discutem, em algum grau, a relação identitária ou cultural de cachimbos e segmentos socioculturais afrodescendentes, convergindo para a importância do tema da etnogênese e identidades étnicas para a arqueologia histórica brasileira (Souza, 2008). Esses trabalhos contribuem para mostrar como os cachimbos continuam sendo suportes particularmente ricos para reflexões com ênfases distintas, mesmo depois de passadas mais de sete décadas dos primeiros estudos sobre cachimbos na arqueologia histórica (Barata, 1944, 1951; Harrington, 1951).

Na segunda parte do dossiê, são apresentadas duas traduções de textos já publicados anteriormente em língua inglesa; o primeiro é autorado por Georgia Fox (California State University) e o segundo, por Anna Agbe-Davies (Universidade da Carolina do Norte). Ambos trabalhos apresentam reflexões teóricas empregadas no estudo de cachimbos.

O texto de Georgia Fox (2015) é um capítulo de livro de autoria dela própria, The Archaeology of Smoking and Tobacco, uma das quatro obras já mencionadas aqui. Nesse trecho da publicação maior, “Theoretical Approaches to Studying Tobacco and Smoking in Historical Archaeology”, Fox explicita dois modelos interpretativos que a proporcionaram apoio em suas análises. O primeiro deles é a teoria do sistema-mundo de Immanuel Wallerstein e André Gunder Frank e o segundo, teorias do consumo e do consumidor, com base principalmente em Thorstein Veblen, Jacques Maquet e Pierre Bourdieu. Ao passo que a teoria do sistema-mundo posiciona as colônias e metrópoles na rede integrada e hierárquica de produção e consumo global de tabaco, as teorias do consumo dão relevo à escolha pessoal e às agências individuais na construção de identidades e justificando o próprio apelo massificado do produto. Ao lado do próprio tabaco, a materialidade do fumo é composta também por cachimbos de argila branca escavados em Port Royal, na Jamaica, referentes principalmente ao século XVII, cuja escavação promovida pela autora na década de 1980 recuperou o enorme montante de mais de 20 mil (Fox, 2002). Esse texto é, então, uma parcela de um trabalho de pesquisa já sólido e amadurecido.

Já o trabalho de Anna Agbe-Davies, publicado originalmente em 2018 na revista Historical Archaeology, referenda a abordagem filosófica do pragmatismo como caminho para escapar da cilada na qual os atuais estudos arqueológicos sobre períodos históricos se encontram. A autora, ao tratar de cachimbos da região de Chesapeake (estado da Virgínia, EUA), advoga também por uma abordagem temática menos voltada para questões identitárias e mais focada em questões técnicas da produção das peças, nas relações de trabalho e em questões comerciais, acerca da circulação desses produtos. Sua conclusão é original e relevante também para os nossos contextos brasileiros, no que se refere à forma pela qual as elites coloniais ignoraram a produção e o consumo locais de cachimbos de barro por parte de setores subalternos.

Para fechar essa incursão no que se está produzido nos EUA sobre o tema, temos duas resenhas, que abordam duas outras das quatro obras estadunidenses já mencionadas em parágrafo antecedente, ainda na primeira página dessa apresentação. A primeira delas, redigida por Anaeli Queren Xavier de Almeida (Museu de História Natural e Jardim Botânico / UFMG), detalha o livro Smoking & Culture: Archaeology Tobacco Pipes Eastern North America, organizado pelos pesquisadores Sean M. Rafferty (University at Albany) e Rob Mann (St. Cloud State University) e publicado no ano de 2015. A segunda resenha, elaborada por Ana Rosa Lima (Programa de Pós-graduação em Arqueologia e Patrimônio – PPGAP / UFRB), analisa o livro Perspectives on the archaeology of pipes, tobacco and other smoke plants in the ancient Americas, organizado por Elizabeth A. Bollwerk (DAACS / Thomas Jefferson Foundation) e Shannon Tushingham (Washington State University) e publicado em 2016. Como já dito, esses dois livros, juntamente à publicação de Fox (2015) e obra Tobacco, Pipes, and Race in Colonial Virginia: Little Tubes of Mighty Power, também de Anna Agbe-Davies (2016), indicam a retomada e revitalização recente do debate sobre cachimbos.

Finalizando essa breve apresentação, agradeço à Vestígios, nas pessoas do Andrés Zarankin, Fernanda Codevilla e Jimena Cruz, por abraçar esse dossiê e pelo trabalho que implicou editorar o volume, bem como a todos os pareceristas anônimos que adicionaram esforços a essa publicação, certamente aperfeiçoando os textos a partir de suas leituras. Por fim, agradeço aos onze autores que colaboraram com esse projeto com seus belos trabalhos.


Referências

Agbe-Davis, A. (2016). Tobacco, Pipes, and Race in Colonial Virginia: Little Tubes of Mighty Power. Nova Iorque: Routledge.

Agbe-Davis, A. (2018). Laboring under an illusion: aligning method and theory in the archaeology of plantation slavery. Historical Archaeology, 52(1): 125-139.

Barata, F. (1944). Arte indígena Amazônica: os maravilhosos cachimbos de Santarém. Revista Estudos Brasileiros, Rio de Janeiro, 7(13). 270-293.

Barata, F. (1951). A arte oleira dos Tapajó: os cachimbos de Santarém. Revista do Museu Paulista, São Paulo, ano 5. 183-98.

Brancante, E. da F. (1981). O Brasil e a Cerâmica Antiga. Cia Lithographica, Ypiranga. São Paulo.

Bollwerk, E. & Tushingham, S. (2016). Perspectives on th Archaeology of Pipes, Tobacco and othe Smoke Plants in the Ancient Americas. USA: Springer International Publishing Switzerland.

Fox, G. (2002). Interpreting socioeconomic changes in 17th-Century England and Port Royal, Jamaica through analysis of the Port Royal kaolin clay pipes. International Journal of Historical Archaeology, v. 6, n. 1, p. 61- 78.

Fox, G. (2015). The Archaeology of Smoking and Tobacco. Gainesville: University Press of Florida.

Gell, A. (1992). The technology of enchantment and the enchantment of Technology. In: Coote e Shelton. Antropology, Art and Aesthetics. Oxford University Press, Oxford.

Harrington, J. C. (1951). Tobacco Pipes from Jamestown. Quarterly Bulletin of the Archaeological Society of Virginia 5(4):n.p.

Heidegger, M. (2012). Ser e tempo. Campinas: UNICAMP.

Rafferty, S.& Mann, R. (2016). Smoking and Culture: The Archaeology of Tobacco Pipes in Eastern North America. Knoxville: The University of Tennessee Press.

Souza, M. A. T. (2008). Esencializando las cerámicas: culturas nacionales y práticas arqueológicas en América. In: Félix A. Acuto; Andrés Zarankin. (Org.). Sed non Satiata II: acercamientos sociales en la arqueología Latinoamericana. 1ed.Córdoba: Encuentro Grupo Editor, p. 143-157.


Organizadora

Sarah de Barros Viana Hissa – Pós-doutoranda no Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG (Bolsa CNPq/PDJ Processo nº 163525/2020-0). Doutora pelo Museu Nacional da UFRJ, bolsa FAPERJ. Pós-doutorado concluído (UFMG; Bolsa CNPq/PDJ Processo nº 157943/2018-6). http://orcid.org/0000-0003-1623-8737; https://ufrj.academia.edu/SarahHissa; http://lattes.cnpq.br/1877519135549670; https://www.instagram.com/cachimbos_arqueologicos_brasil


Referências desta apresentação

HISSA, Sarah de Barros Viana. Apresentação. Vestígios – Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica, v. 16, n.2, p. 3-7, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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