Resultado de dissertação de mestrado defendida em 2013 por Luiza Saad, no programa de pós-graduação em História Social da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o livro “Fumo de Negro”: a criminalização da maconha no pós-abolição, publicado em 2019, investigou como se estabeleceu o discurso de criminalização da maconha que fundamentou a primeira lei de proibição dessa planta, em 1932, mas, que passou a inundar o imaginário social e constituir um discurso contra a maconha.
Para responder seu questionamento, a autora se propôs a analisar documentos resultantes de conferências nacionais e internacionais, teses de médicos e autoridades sanitaristas e jornais entre 1890 e 1932, escolhas que vejo como acertadas na obra, pois permite o leitor observar com clareza onde e como o discurso de criminalização sobre a maconha se desenvolvia, em que círculos sociais transitava e que estratégias envolviam sua reprodução.
A obra se estrutura a partir de três capítulos: “Rodrigues Dória: a chama da proibição da maconha no Brasil”; “A danação da “erva maravilhosa” e “A maconha nos cultos afro-brasileiros.” Os capítulos são antecedidos por um breve histórico em que a autora demonstra a íntima relação da maconha com a história da colonização do Brasil, chegando a se configurar, em determinado momento, como uma atividade econômica desempenhada pela coroa[1], tornando-se ilegal apenas no século XIX, momento em que surgem as primeiras legislações incriminatórias desses atos, deixando claro como esses se associavam contra a cultura negra, ignorando, inclusive, estudos científicos que não endossavam essas ideias. Em outras palavras, tratava-se de um aparelhamento da ciência para atingir fins pré-dispostos, marcados pelo racismo.
No primeiro capítulo, intitulado “Rodrigues Dória: a chama da proibição da maconha no Brasil”, a autora mapeou a vida desse agente social, principal figura por trás dos estudos/discursos que fundamentaram a constituição da ilegalidade. Ela o faz como forma de situar o lugar social de onde emerge o discurso, a saber, de um intelectual branco abastado, médico e político. Esse incorporaria saberes disciplinares em vias de institucionalização (médico e farmacêutico) e concepções racistas, fundamentais para o desenvolvimento de políticas eugênicas que defendiam intervenções na população como forma de atingir um ideal de civilização, evocando elementos biológicos como forma de explicar problemas sociais.
Foi a partir dessa chave que Dória se posicionou sobre questões relacionadas ao lugar dos vícios, das mulheres, e do trabalho como ferramentas ou atravanco à constituição de um projeto de nação excludente em sua essência. Tomando como ponto de partida essa mesma estrutura discursiva, os sucessores de Dória operaram, demonstrando a importância desse intelectual para o campo correlato.
O segundo capítulo, denominado de “A danação da erva maravilhosa”, a autora discorre a respeito de como as teses de Dória passaram a ser incorporadas ao discurso de criminalização da maconha. O uso dessa planta, como parte da cultura negra, e outras práticas associadas a esse grupo passavam a ser vistos como degenerantes uma vez que resultavam de uma classe perigosa, podendo ser estendidos por todas as demais classes sociais, estando assim na contramão do progresso. Os vícios passavam por esse filtro, sendo considerados doenças sociais que se relacionavam a predisposições biológicas, entretanto, quando associados às classes populares, eram apresentados de maneira mais enfática, podendo levar a quadros de dependência e, por sua vez, à violência.
Nesse capítulo, a autora demonstra os lugares onde os saberes especializados a respeito da maconha eram produzidos e circulavam. Tal processo se dava a partir da constituição de um saber médico que visava o monopólio sobre as patologias, substâncias e, também, sobre a cura. Configurava-se, assim, a constituição de uma autoridade social capaz de hierarquizar os vícios e de apresentar os que mais eram um risco ao modelo de sociedade e civilização que recortava as classes brancas desse país, a saber, os vinculados aos pobres e negros.
A institucionalização desse discurso se deu mediante a constituição de instituições locais e eventos internacionais, demonstrando que não era uma questão apenas do Brasil, mas que havia toda uma interlocução internacional que buscava estabelecer o controle e a moralização dessas substâncias e dos que dela faziam uso. No caso da maconha, os discursos estabelecidos se sustentavam em argumentos contraditórios e sem respaldo, ignorando qualquer estudo que não endossasse suas teorias racialistas.
O outro espaço de trânsito desse discurso analisado pela autora são os jornais os quais só passaram a apresentar notícias a respeito da maconha pouco antes da criminalização, na medida em que foram paulatinamente ocupados por detentores do saber médico, apresentando informações sobre a origem – sempre ligada aos africanos – dados de uso e a aproximação da maconha a outras drogas, como a cocaína e o ópio, que funcionavam como elementos moralizantes dessas práticas. Tais informações careciam de comprovações científicas, mas ganhavam foro de verdade a partir de seus interlocutores e dessa mídia, constituindo-se como ferramenta de intervenção social que prepararia o terreno para a proibição que se desenrolaria por meio das transformações que se instituíram com a revolução de 1930, mudando as perspectivas do Estado de liberais para autoritárias, caminhando para controles sociais mais intensos.
O terceiro capítulo, “A maconha nos cultos afro-brasileiros”, demonstra como a proibição contribuiu para um processo de dessacralização do uso da maconha, envolvendo forças políticas, religiosas, econômicas e morais, atribuindo-lhe um uso secular que passava a ser justificado em si mesmo. Esse processo colocava na mira dos racistas os cultos africanos e afro-brasileiros que se associavam a essa substância, culminando com a desconfiguração do uso religioso dessa planta pelos seus próprios praticantes, que passaram a rejeitá-la. Tal processo teria se constituído, para a autora, a partir de dois conceitos centrais que circularam nos jornais diários e os textos legais, fetichismo e feitiço, elaborados pelas elites brancas para desqualificar a cultura africana e afro-brasileira a partir de um processo de homogeneização de diferentes práticas de cura e religiosidade, entendidas como oposição ao processo civilizatório.
Saddi conclui afirmando que, no Brasil, institucionalizou-se uma forma de perseguição das manifestações culturais associadas aos negros pós-abolição, tendo como argumento o combate a tais práticas como forma de cura social, estando a maconha entre elas. Esse combate tinha a sua frente os médicos, seus saberes e o Estado e, como pano de fundo, a tentativa de impedir a implementação de uma cidadania a essas populações, como reflexo do passado escravagista.
Essa obra pode ser vista como desenrolar das reflexões da autora desenvolvidas ainda durante a graduação, que já problematizavam o racismo científico. Esse livro proporciona ao leitor questionar os critérios de objetividade da própria ciência assim como compreender o processo de constituição de outros tipos de racismo, dentre eles, os institucionais, os quais se desenrolam a partir dos próprios aparatos estatais. Foi a ciência aparelhada em favor do racismo que levou à criminalização da maconha, sua desconfiguração como objeto do sagrado e à perseguição a práticas próprias dos negros no pós-abolição, mas que atingem nossa sociedade até hoje.
O que se vê nessa produção é a apresentação de um saber histórico que atua para a desmistificação da temática da maconha, a partir do desvelamento das estruturas que a constrangeram e as práticas a ela associadas. Tratar desse tema por meio dessa ciência também autoriza refletir a respeito de sua função social diante dos problemas do tempo presente, oferecendo um significado que ultrapassa a ideia de história como narração do passado: a de orientadora das ações frente ao presente.
A obra corrobora também para a ruptura de uma perspectiva interpretativa que exclui os negros e indígenas brasileiros dos diversos usos e resistências que foram estabelecidos a partir da maconha. Essa perspectiva a que a narrativa de Saad se opõe, aponta o uso de maconha, no Brasil, como resultado da importação de uma prática estadunidense por uma classe média brasileira branca que se identificava com os movimentos de contracultura e contestação durante a Ditadura Civil Militar brasileira. Essa narrativa não apenas nega o papel tradicional dessas comunidades em sua relação com os diversos usos da maconha, como traz para os grupos brancos o protagonismo relativo a essas práticas, desvelando apenas o uso recreativo que demarcaria a subversão.
A presente obra também autoriza refletir a respeito da constituição histórica de uma estrutura argumentativa que tem sido utilizada até nossos dias, originária de discursos médicos pouco objetivos, como forma de recriminar os mesmos grupos subalternos, tendo a maconha como indutora de suas práticas que culminam com a violência e criminalidade. Tal fato pode ser facilmente constatado nos telejornais sensacionalistas que formam a grade de programação da televisão aberta no Brasil. Longe de ser objetiva, a criminalização da maconha obedece a interesses que se desenrolam a partir de uma perspectiva racista.
Pensar a constituição histórica dessas elaborações mentais autoriza a desmistificação da ideia de objetividade jurídica e médica, elencando, assim, os seus graus de subjetividade e as relações que guardam devidamente com aqueles que ocupam seus espaços. O livro tem, portanto, esse mérito de se constituir como objeto de autorreflexão da própria ciência a que está vinculado, revelando bastidores do aparelhamento da ciência. Nesse sentido, penso que a obra mobiliza o método científico como forma de identificar as próprias contradições que se desenrolam na produção do conhecimento, assim como ferramenta de desmistificação de temas tidos como non gratos por nossa sociedade. A maconha aparece como uma ínfima parte de um emaranhado de relações que se desenvolveram por meio dela e que até hoje a estruturam, mas que estão em movimento, graças a trabalhos como este. Ler o livro é uma forma de se (re)encontrar com a maconha, dessa vez, como objeto de cognição.
Nota
[1] A atividade em questão citada pela autora é a Real Feitoria do Linho Cânhamo, instalada pela Coroa Portuguesa em 1791, no Rio Grande do Sul
Sumário de “Fumo de Negro”: a criminalização da maconha no pós-abolição
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Resenhista
Jandson Bernardo Soares – Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou, entre outros trabalhos, A institucionalização do livro didático no Brasil (2021) “História e Espaços do Ensino: historiografia”, PNLD e a busca por um livro didático ideal, A institucionalização do livro didático no Brasil e “Produzindo livros didáticos de História: prescrições e práticas – notas de uma pesquisa em andamento”. E-mail: jandson_ze@hotmail.com.
Referências desta resenha
SAAD, Luísa. “Fumo de Negro”: a criminalização da maconha no pós-abolição. Bahia: CETAD/EDUFBA. 2019. 160p. Resenha de: SOARES, Jandson Bernardo. À margem da lei. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.3, jan./fev. 2022. Disponível em: https://www.criticahistoriografica.com.br/1838/
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