Fruição Patrimonial | Memória em Rede | 2021

O presente dossiê “Fruição Patrimonial” reuniu pesquisadores de distintas regiões do Brasil, de norte a sul, contemplando principalmente uma ampla diversidade de perspectivas teóricas e metodológicas, com destaque para a apresentação dos estudos de casos. Conforme Yin (2010), como método de pesquisa, os estudos de casos corroboram com a apresentação de múltiplas situações dos fenômenos sociais complexos, com ampla riqueza de dados e relatos, desde casos individuais, grupais, organizacionais, sociais e políticos, que podem ser utilizados pelas mais diversos áreas do conhecimento.

Neste sentido, os estudos elencados para este editorial da Revista Memória em Rede tiveram como tema comum, a fruição patrimonial, com destaques para as interações do caminhar por locais históricos e sítios arqueológicos, seja pelo resgate de contranarrativas e de memórias submersas, com relação à preservação do patrimônio material e das memórias locais. Os autores elencados neste editorial apresentaram constantes preocupações quanto à ampliação do uso público dos patrimônios, seja para a adequação das políticas públicas de preservação do patrimônio, seja pela necessidade de ampla participação dos atores sociais e das reflexões sobre o consumo dos espaços turísticos.

Desse modo, os estudos selecionados nesta edição ressaltaram, por meio de seus estudos de casos, a necessidade do envolvimento dos sujeitos como protagonistas das ações de salvaguarda e dos usos turísticos, ressaltando a necessidade da participação ativa das comunidades para atingir a finalidade de conservação do patrimônio natural e cultural, tanto em contextos urbanos como rurais.

Nesse sentido, apresenta-se o artigo “Patrimônio histórico e migrações contemporâneas: reflexões sobre o município de Urussaga/SC” das pesquisadoras Liziane Acordi Rocha e Michele Gonçalves Cardoso. As autoras tiveram como preocupação central a discussão das memórias dos discursos de italianidade materializadas, a partir do estudo de caso da cidade de Urussanga, principalmente, por meio da apresentação de suas principais festividades culturais e edificações, tendo como marco temporal a chegada dos primeiros imigrantes italianos. Desse modo, apresenta-se o conceito de identidade, a partir das leituras de Bauman (2005) e dos signos culturais, que são constituídos como sendo flutuantes e instáveis por meio da relação dicotômica do Nós/Eles, nas quais os atores sociais se identificam e são identificados, num duplo movimento (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011). As autoras apresentam o caso de Urussanga, que possui edificações tombadas em nível estadual e que estão concentradas na área central da cidade, sendo assim, alvos constantes de especulação imobiliária. De fato, o trabalho revelou os conflitos e tensões vivenciadas pela localidade, entre os proprietários das edificações e os processos de tombamento em andamento ou concluídos. Percebe-se, nesse caso, que o tombamento como instrumento de salvaguarda, foi apreendido como sendo negativo aos olhos dos proprietários/as dos imóveis. No entanto, para a comunidade local, essas edificações são representativas da identidade do município e do histórico dos descendentes de italianos. Por fim, as autoras evidenciaram que há a preocupação comunitária sobre o descaso da situação de preservação de algumas edificações, além da falta de incentivo para a estruturação do turismo local que poderia corroborar com o uso do patrimônio, entretanto, a situação de Urussanga não é a única no contexto brasileiro. Assim sendo, as lutas e as tensões em torno da preservação do patrimônio no Brasil são constantes, já que envolve parte de uma memória viva e representativa, que pode ser tanto sinônimo de atraso como de progresso, dependendo da situação.

No trabalho “A velha Sento-Sé e o Patrimônio Material e Imaterial Submersos pelas águas da barragem de Sobradinho”, dos autores Adzamara Rejane Palha Amaral; Juracy Marques dos Santos, as discussões deste trabalho destacaram os dilemas do patrimônio edificado e das memórias, que foram submersas no contexto de construções de hidroelétricas, como no caso da barragem de Sobradinho. De fato, o trabalho apontou importantes reflexões sobre as lembranças de um lugar que ficou submerso pelas águas do rio São Francisco, mas que é constantemente relembrado por meio das memórias das comunidades, que foram realocadas de uma cidade para outra. Nesse estudo, foram apresentados ao longo deste trabalho, parte de relatos coletados com membros das comunidades atingidas. Destacam-se nos materiais coletados, os sentimentos de indignação e dos impactos socioambientais com destaque às mudanças das moradias, interferências nas festividades culturais, na pesca artesanal e na agricultura. Portanto, foram inseridos os relator memorialísticos por meio da coleta das entrevistas, da composição de poemas e de músicas com forte relação às inspirações advindas da relação das comunidades com rio São Francisco e das histórias recontadas, de geração em geração, dos primeiros habitantes da Velha Sento-Sé, que reconstituíram neste trabalho, as memórias ribeirinhas.

Também problematizando a questão da memória coletiva com destaque às interpretações de Halbwachs (1990), os autores Arkley Marques Bandeira, Sávio José Dias Rodrigues, Alipio Felipe Monteiro dos Santos, apresentam como tema: “Memórias, territorialidades e identidades do quilombo Santana dos Pretos, Pinheiro, MA: experienciando memórias pela interdisciplinaridade”. Nesse artigo, os autores discutem a identidade quilombola da comunidade Santana dos Pretos, localizada no município de Pinheiro, no Maranhão. Os autores apresentam o desenvolvimento de um extenso trabalho de campo com a coleta de entrevistas semiestruturadas com os moradores. Destacam-se as discussões sobre as memórias, as identidades e a experiência etnográfica. A noção de experienciar é refletiva a partir da afetação, como interpretou Goldman (2006). A terra é o lugar que se faz a principal ligação com a identidade quilombola, principalmente por ser o espaço das vivências, usos e costumes, tanto materiais e imateriais. Os autores sintetizaram o contexto histórico das comunidades quilombolas do Brasil, no estado do Maranhão e enfatizaram o processo de organização do território da comunidade. Houve o destaque para a história oral, como método, o que reforçou a importância das memórias na formação das identidades comunitárias. Portanto, os autores exploraram um amplo diálogo interdisciplinar no delineamento deste tipo de pesquisa, sobretudo, pelas análises das categorias como: memória identitária, territorialidade identitária, paisagem memorial, identidade étnica contemporânea e o “experienciar” para a compreensão dos signos e dos seus significantes, principalmente na conjuntura das identidades dos quilombolas da baixada ocidental maranhense.

O trabalho intitulado “Uma Investigação Cultural sobre O Natal Luz De Gramado”, de Robinson Henrique Scholz analisou a complexidade das questões culturais, conforme (GEERTZ, 1973), que discute a teia de significados da cultura, principalmente por meio da etnografia de uma dada realidade. De fato, a fruição surge no contexto de análise deste trabalho, no que se refere aos espaços comuns de vivências, entre os turistas e os moradores da cidade de Gramado, no estado do Rio Grande do Sul. Diante do exposto, esse ensaio analítico teve como recorte a análise da realidade social dos espetáculos, como o evento anual intitulado como “Natal Luz de Gramado”. As explicações teóricas e metodológicas tiveram como base as descrições situacionais vivenciadas durante o acontecimento do evento na cidade, além de apresentar pesquisa bibliográfica e documental. O autor deu ênfase, assim como no primeiro artigo deste editorial, aos processos de descobertas e das percepções sobre o caminhar pela cidade, contemplando assim, a intensa mescla cultural para a concepção do evento natalino, com o foco no entretenimento dos turistas. Desse modo, o evento promovido com ênfase no turismo, tende a modificar os aspectos culturais de origem colonial e gaúcha da cidade para enfatizar um evento ao clima natalino de contexto global. Portanto, o presente estudo colaborou com as discussões advindas do consumo do espaço pelo turismo, além da ênfase nas trocas simbólicas e na intensificação do hibridismo cultural presentes nas sociedades contemporâneas.

Já a pesquisa com o tema “A memória como valor e como política institucional na Fundação Oswaldo Cruz/Fiocruz: reflexões sobre engajamento e significação social para a legitimidade de instituições públicas”, dos autores Erica de Castro Loureiro e Diana de Souza Pinto abordou a discussão sobre as políticas de memória social de instituições públicas, a partir dos discursos e narrativas do estudo de caso da Fundação Oswaldo Cruz. As autoras contribuíram com uma relevante perspectiva sobre o valor coletivo das memórias sociais, a partir da apresentação das narrativas e dos discursos, como importantes instrumentos de reprodução social dos grupos sociais e de suas identidades com a instituição pesquisada. De fato, como enfatizaram as autoras, a pandemia demonstrou a necessidade de valorização de ações com enfoques nas políticas de memória institucional para ressaltar o importante papel que a instituição protagoniza diante dos contextos históricos de crises sanitárias, aproximando mais a instituição da população em geral.

Já a pesquisa “Arqueologia da Diáspora Africana e Contranarrativas sobre o Patrimônio Cultural do Museu da Baronesa (Pelotas, RS)” da autora Estefania Jaekel da Rosa, abordou as questões sobre os estudos arqueológicos relacionados com a discussão da diáspora africana, que evidencia processos de invisibilidade negra sobre as memórias do Museu Parque Baronesa, em Pelotas, no Rio Grande do Sul. O estudo foi alicerçado por uma análise crítica com base na Arqueologia da Diáspora Africana, relacionando as relações de poder, as dinâmicas cotidianas, os mecanismos de interação social e de reprodução cultural. A autora refletiu sobre as construções e as reconstruções das identidades afro-diaspóricas em constante diálogo com a fé e a religiosidade, por meio da perspectiva de ancestralidade e ontologia. Por fim, o artigo apresenta propostas para a visibilidade negra do Museu, a partir da preservação do sítio arqueológico enquanto espaço de memória social e coletiva das populações negras.

O trabalho intitulado “A Longa Duração e a Estratificação do Tempo Vista a Partir da Paisagem de Diamantina, Minas Gerais – Brasil”, de autoria de Átila Perillo Filho, retrata a estratificação do tempo e dos bens arqueológicos, partindo da perspectiva dos elos comunitários com o patrimônio, entre as concepções do que é o antigo e o moderno, retratados no estudo por de três eventos, que marcam o cotidiano dos moradores com o patrimônio de Diamantina, Minas Gerais, sendo eles: a Vesperata, as Noites de Seresta e o Café no Beco. No texto, o autor articula as relações entre arqueologia e história, a partir dos eventos culturais e de suas relações com o patrimônio em fruição com o tempo e espaço, principalmente, a partir da dicotomia entre o colonial e o contemporâneo, na mescla de suas vivências e pesquisas com os moradores de Diamantina.

Por fim, contempla-se neste editorial, apresenta-se aqui o trabalho intitulado “A importância do turismo responsável e sustentável para a conservação do patrimônio cultural e natural”, das autoras Thais Felipe Rosa e Mayara Roberta Martins. O presente artigo abordou a perspectiva do envolvimento comunitário e de ações voltadas ao uso social de dois parques nacionais. O primeiro é o Parque Nacional Serra da Capivara (Brasil) e o segundo é o Parque Nacional del Montseny (Espanha). Como contribuições, as autoras apresentaram a noção de uso social do patrimônio para repensar as consequências da visitação turística e o envolvimento comunitário em ambos os casos apresentados. A partir deste estudo foram listados os principais equipamentos e atividades culturais de uso social e turístico, fazendo um comparativo dos parques, entre os períodos de 2009 e 2010 (período relacionado com o trabalho de campo de 2011) e a atualização mais recente dos dados institucionais e de visitação, entre 2020 e 2021. Como contribuição final deste trabalho, as autoras enfatizaram a necessidade de mais estímulos participativos da gestão dos parques para ativar o envolvimento comunitário e o senso de pertencimento com os patrimônios, principalmente, por meio de proposições educativas, de lazer e do turismo.

Desejamos a todos uma ótima leitura.

Referências

BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi, tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro, Zahar, 2005.

GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures: selected essays. New York: Basic Books, 1973. 476 p.

GOLDMAN, Marcio. Alteridade e experiência: Antropologia e teoria etnográfica. Etnográfica, Lisboa, v. 10, n. 1, p. 161-173, 2006.

HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

MURTA, S. M.; ALBANO, C. Interpretar o Patrimônio: um exercício do olhar. Belo Horizonte: Ed. UFMG: Território Brasislis, 2002.

POUTIGNAT, P.; FENART, J S. Teorias da etnicidade: Seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 2011.

SPECK, J. Cidade caminhável. 1. São Paulo: Perspectiva, 2016.

Yin, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos (4a ed.). Porto Alegre: Bookman, 2010.


Organizadora

Mayara Roberta Martins – Professora Adjunta do Instituto de Ciências Humanas e da Informação (ICHI), Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Turismo (LATUR/FURG), Campus de Santa Vitória do Palmar. Doutora em Ambiente e Sociedade (UNICAMP), Mestra em Desenvolvimento Rural (UFRGS), Bacharela em Turismo (UFSCar). E-mail: mayara.martinsfurg@gmail.com


Referências desta apresentação

MARTINS Mayara Roberta. Editorial. Memória em Rede. Pelotas, v.13, n.25, p.1-7, Jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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