Fronteiras, integração e paradiplomacia | Monções – Revista de Relações Internacionais | 2017
As relações internacionais são permeáveis a mudanças. Consequentemente, a análise do comportamento dos atores internacionais não pode ficar resumida a uma única visão de mundo ou de um único modelo proposto.
Acompanhando as mudanças globais ocorridas nas últimas décadas, novos atores se beneficiam das ações cooperativas internacionais, dos novos ambientes decisórios e de políticas públicas nacionais que buscam a inserção e a indução nestes novos espaços. Desta maneira, as entidades subnacionais têm-se qualificado cada vez mais para participar das oportunidades ofertadas neste cenário, a descentralização das ações e a ampliação o rol de atores desta relação.
Ao passo que os Estados, sem colocar as suas soberanias em xeque, promovem ações de cooperação que vão além de suas fronteiras, aplicam critérios compatíveis, criam conexões internacionais. Apesar de uma conjuntura política e econômica atual que, no caso do Brasil, tem-se apresentado menos aberta a considerar a solidariedade com o “outro lado” da fronteira.
Mundo afora, a fronteira-cooperação parece estar sendo substituída pela noção de fronteira-segurança. O momento atual parece revelar um fechamento seletivo das fronteiras: aos refugiados, aos migrantes, aos direitos, colocando grandes desafios para a cooperação descentralizada transfronteiriça. A crise dos refugiados no Oriente Médio, com repercussões em várias regiões do mundo desenvolvido e em desenvolvimento, ilustra esse dilema posto em torno de como conceber a fronteira. As fronteiras facilitam o processo de aproximação e cooperação, todavia estas regiões, em certos casos, apresentam graves atrasos econômicos, sociais, em termos de segurança das populações e apresentam uma frágil infraestrutura devido a sua condição de periferia na organização de poder e em sua posição geográfica dentro do Estado. As guerras fazem da fronteira uma porta de saída obrigatória para refugiados e todos aqueles que se sentem ameaçados. Entretanto, a fronteira também é um ambiente propício para o desenvolvimento de ações de cooperação e de verificação de resultados práticos e concretos de políticas públicas no que chamamos de região de fronteira.
Não menos importante, os estudos sobre as fronteiras têm sido mais numerosos e têm tratado de novas dimensões, não mais se restringindo somente à ideia de fronteira-limite e/ou fronteira-separação, mas igualmente envolvendo as dinâmicas econômicas, migratórias, problemas de segurança e defesa em um viés cooperativo, políticas públicas, relações sociais, culturais e de identidade. Neste intuito, advogamos a ideia da fronteira como um espaço de cooperação, construção de proximidade de estados e entidades subnacionais e que sejam um ambiente de convivência e contato entre as nações. Na tentativa de compreender a interação promovida pelas entidades subnacionais em área de fronteira, ao longo deste dossiê notamos a presença de um conceito proposto principalmente em estudos e pesquisas focados na América Latina e na Europa, mas também apresentamos perspectivas africanas, o que torna o número desta revista, ainda mais interessante.
A política internacional atualmente reitera a ideia de que as fronteiras dos Estados nacionais se encontram diluídas, embora não apagadas. É neste ambiente que podemos dizer que os Estados começam ou terminam, que as relações se fortalecem ou se distanciam. A constatação das assimetrias econômicas e das desigualdades políticas e sociais se tornam mais evidentes nos ambientes fronteiriços, fortalecendo e justificando a hipótese de que essas regiões, além de representarem uma área de transição, possuem elementos ricos para a aplicação prática de projetos de cooperação e fortalecimento de laços entre os Estados e as sociedades – e não simplesmente servindo de território de controle e afirmação da soberania.
Tendo em vista a relação complexa e o aumento do nível de interação na zona de fronteira face ao relacionamento interestatal e o constante aprimoramento dos processos de integração regional pelo mundo, as cidades presentes em zona de fronteira ganham cada vez mais atenção da academia e de políticas públicas. Isso porque é interesse dos Estados que a zona de fronteira seja estável, pacífica, exemplar de um certo estado de bem-estar social, para que o restante do território se desenvolva e também promova suas políticas. No entanto, não podemos esquecer que as comunidades locais fronteiriças também agem pela proteção e pela promoção dos seus interesses junto à centralidade estatal, movendo assim a política e os conceitos que, por vezes, podem ser verticalmente aplicados (de maneira pouco democrática) sobre a zona de fronteira e sobre o limite internacional dos Estados.
Surgem as cidades-gêmeas, conceito da geografia política, incorporado pelos estudos fronteiriços, para classificar as cidades onde a verdadeira integração transfronteiriça acontece, principalmente na promoção de respostas locais em torno da necessidade de convivência pacífica, dentro de um ambiente cooperativo. Tais localidades experimentam um relacionamento imperativo com o outro lado da fronteira. É inegável a relação ou a aproximação de uma cidade situada em linha de fronteira com a localidade congênere. Este relacionamento é o cenário ideal para o nascimento de iniciativas e práticas de cooperação entre a população e os organismos públicos presentes e o fortalecimento de ofício da integração regional.
A busca por uma coesão territorial, importante para o desenvolvimento estratégico de suas regiões, faz com que as cidades-gêmeas situadas em ambiente de fronteira construam um código de atuação que implica pragmatismo na ação e tentativa de construção de uma ação simbólica de aproximação e de construção de “pontes”.
No plano do Mercosul, a paradiplomacia, ou seja, cooperação promovida entre entidades subnacionais situadas na linha de fronteira, ganha força e passou a ser patrocinada, mas ainda carecendo de maior atenção. A concepção de que a fronteira não é mais vista como limite ou separação, mas sim como espaço de interação no qual a cooperação entre os atores presentes dá o tom dos processos políticos, econômicos e culturais do Mercosul. O ambiente histórico hostil da Guerra da Tríplice Aliança ou do passado travado da era da diplomacia da contenção, cede espaço para um ambiente de cooperação e trocas políticas, que visa a eliminar os aspectos negativos e potencializa os positivos. Assim, as relações fronteiriças tendem a construir sua própria vida, onde as cidades, estados federados, províncias e departamentos, muitas vezes deslocados da atenção central dos Estados Partes do Mercosul, constroem laços de proximidade e reciprocidade, promovendo um maior nível de interdependência, produzindo ações coletivas transfronteiriças e implementando políticas públicas em associação.
Desta forma, mesmo ainda não havendo um dispositivo constitucional explícito para a atuação internacional das entidades subnacionais brasileiras, a existência de apoio oficial por parte do governo federal e de alguns tratados e acordos internacionais têm possibilitado tal ação. A institucionalidade promovida pelo Mercosul e a presença dos Estados federados e municípios nos acordos de cooperação internacional vêm conferindo à paradiplomacia e à cooperação internacional descentralizada destaque e possibilidade concreta de ação no plano político brasileiro. Mesmo assim, ressaltamos que o fenômeno ainda carece de respaldo jurídico mais profundo, preciso e específico.
Uma ação mais propositiva do governo federal brasileiro é necessária neste contexto, pois a fronteira é um espaço fértil e um lócus propício para a integração e cooperação das entidades subnacionais, mesmo que a constatação as políticas públicas mostrem o pouco incentivo das entidades subnacionais em potencializar a governança de suas estruturas para o trato internacional. Neste sentido os estudos estatísticos promovidos por vários institutos de pesquisa não verificam que a própria condição fronteiriça é um fator de internacionalização e acabam por afastar essa informação das estatísticas oficiais e puramente burocráticas.
A evolução das fronteiras terrestres brasileiras foi importante para caracterizar o Brasil de hoje. O período colonial que atravessou o Brasil ficou caracterizado pela expansão territorial pós-Tordesilhas, fortemente marcado pelas delimitações (regularização ou legalização) das fronteiras e que, com o início do período republicano (sobretudo na primeira república), os trabalhos de demarcação e vivificação, estabelecidos em grande parte pela arbitragem ou por acordos bilaterais, foram fundamentais. No entanto, o ideal de segurança predominou fortemente durante esse longo período, principalmente relacionado às tensões na região de fronteira com o Paraguai, fator que veio a ser rompido pela construção de relações bilaterais mais cooperativas a partir dos anos 1960, tendo culminado na celebração do acordo bilateral energético em torno de Itaipu.
Ao passar das décadas, passou-se de uma noção de fronteira estrita de segurança nacional a outra de fronteira como segurança e cooperação. Com a nova configuração do Estado brasileiro foi possível vivenciar uma série de inflexões com a criação de políticas públicas voltadas à faixa de fronteira e a criação de estruturas estatais destinadas aos assuntos fronteiriços, como por exemplo, a criação do Ministério da Integração Nacional, que possui como um dos seus pilares a política de desenvolvimento para a faixa de fronteira.
A partir de então, a fronteira se apresenta como um ambiente propício para a integração regional e uma área de oportunidade de desenvolvimento e crescimento para o Brasil, mas ainda faltam ser aplicados os recursos necessários e adequados para o desenvolvimento social e econômico dessas regiões. Mesmo em comparação com outras regiões do país, os orçamentos para as regiões de fronteira indicam resultados ainda modestos, muito aquém da necessária materialidade de ações concretas de infraestrutura ou de aplicação de políticas públicas com resultados efetivos e mensuráveis.
A busca permanente de espaço na agenda nacional é essencial para tirar as políticas fronteiriças de uma agenda institucional de segundo plano, pois os programas de cooperação fortalecem o processo de integração regional e minimizam os problemas sociais e de segurança no âmbito local. Essa realidade cooperativa é reforçada pelo fato de que as políticas governamentais do Brasil para a fronteira, recentemente, tenderam a construir uma noção de fronteira-cooperação e não mais enfocar o sentido de uma fronteira-separação.
As entidades subnacionais, em especial as cidades-gêmeas de cidades estrangeiras situadas em linha de fronteira do Brasil, devem agir de forma estratégica no pleito de suas demandas e na formulação de agendas específicas de políticas públicas para a região. As cidades-gêmeas participam ativamente na identificação de um regime simbólico da paradiplomacia e de cooperação descentralizada no ambiente fronteiriço, através de identidades e interesses compartilhados, traduzindo-se em uma cooperação horizontalizada onde a reciprocidade se faz presente. É na fronteira que os interesses e as necessidades dos Estados atingem um nível maior de interdependência, muito embora a visão da cooperação descentralizada e da relação fronteiriça variem contextualmente, de acordo com as dimensões e as escalas econômica, demográfica e de circulação de cada fronteira.
Referência
PRADO, Henrique Sartori de Almeida; ESPÓSITO NETO, Tomaz. Fronteiras e relações internacionais. Curitiba: Íthala, 2015.
Organizadores
Tomaz Espósito Neto – Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados e Coordenador da Cátedra Jean Monnet (UFGD).
Henrique Sartori de Almeida Prado – Doutor em Ciência Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados e Coordenador Adjunto da Cátedra Jean Monnet (UFGD).
Referências desta apresentação
ESPÓSITO NETO, Tomaz; PRADO, Henrique Sartori de Almeida. Apresentação. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.6 n.12, p.1-6, jul./dez. 2017. Acessar publicação original [DR]