A fronteira é um conceito clássico para a Geografia Política, estudada e discutida por muitos teóricos devido sua importância por representar a área marginal de domínio territorial e limítrofe para o exercício de poder do Estado. As fronteiras podem variar de extensão conforme a disposição do espaço geográfico, e podem ser demarcadas quando países vizinhos conseguem estabelecer os limites políticos internacionais. Muitos conflitos no mundo tiveram como motivação a conquista de territórios e a expansão das fronteiras dos países.
A fonte de poder material de cada Estado está em seu território, porção do espaço terrestre e marítimo onde ocorrem as relações de poder, a convivência entre os grupos humanos, a extração dos recursos naturais que possibilitam o desenvolvimento social e o crescimento econômico, mas, sobretudo, é a base física que justifica a existência deste ator no sistema internacional. Nesse sentido, a discussão sobre fronteiras é fundamental para as relações internacionais porque são as áreas geográficas onde encontram-se o início e o fim da soberania de cada Estado.
Para Raffestin (1993), as fronteiras são zonas importantes devido ao seu valor histórico, a possibilidade de intenso intercâmbio de pessoas e produtos, o limite da integridade territorial e da soberania de um Estado, além de outras funções. O limite possui uma conotação política porque é traçado para marcar os territórios, serve para manifestar modos de produção e relações de poder cristalizadas no território, porém pode ser modificado ou ultrapassado. Já as fronteiras podem ser manipuladas e passam por fases de funcionalização e disfuncionalização decorrentes de mudanças socioeconômicas e sociopolíticas. Ambos, limite e fronteira, afetam o território e são produtos do espaço e do tempo.
Na contemporaneidade, o fenômeno da globalização possibilitou avanços nas ciências, nas técnicas e tecnologias, nos transportes e circulação, nos sistemas produtivos e financeiros, dentre outras transformações que provocaram mudanças na relação tempo-espaço e nas condições das fronteiras. Há abordagens teóricas das ciências sociais que analisam as consequências negativas e positivas do fenômeno da globalização e apontam a porosidade e vulnerabilidade das fronteiras devido aos intensos fluxos de pessoas, mercadorias e serviços, e a diminuição da presença dos Estados nessas áreas. Em contrapartida, há outras abordagens que defendem o aumento das fronteiras em quantidade, graças à formação de novos Estados, e bem como o recrudescimento com a militarização nessas áreas para controlar os fluxos legais e ilegais.
Nesse contexto, Foucher (2009) descreve que as fronteiras atravessam movimentos antagônicos de obsolescência e resistências de suas funções (política, legal, fiscal, policial, militar), de ampliação e erosão de suas extensões, de abertura e securitização frente aos problemas decorrentes do aumento das migrações, da circulação de pessoas e mercadorias lícitas e ilícitas, da necessidade de infraestrutura física para conexão entre países, das memórias coletivas e os desafios dos grupos sociais que coexistem na mesma área transfronteiriça.
As fronteiras também são revalorizadas a partir dos processos de regionalismo porque essas áreas são reconhecidas como espaços de conexão entre as partes envolvidas na cooperação regional, tanto para a integração estrutural entre os envolvidos, mas também pelas possibilidades de gestão compartilhada para diminuição de assimetrias e promover o desenvolvimento local-regional.
Apesar da importância dada as fronteiras pela Geografia Política e Geopolítica, o fato é que para outras ciências, como a História e a Ciência Política, este objeto não é estudado com profundidade e, sim, utilizado como suporte para expressar os limites das relações de poder, do Estado, do território e da soberania. Por isso, pode-se inferir que há uma lacuna nos estudos de Ciências Humanas, especialmente nos temas estudados nas Relações Internacionais a respeito do papel dos atores políticos, econômicos e sociais nas fronteiras.
No que tange as Teorias clássicas de Relações Internacionais, podemos afirmar que pouca atenção foi atribuída às fronteiras, notadamente, as abordagens que partem da perspectiva estadocêntrica, pois não discutem o papel das fronteiras no limite de exercício da soberania do Estado e de como suas variações interferem na organização social e política do país. Outras abordagens teóricas de viés pós-positivistas, ao discutirem identidade e as relações socioeconômicas, esqueceram de analisar apropriadamente a relação da identidade com o território, compreendido como territorialidade, dado que as pessoas convivem em um espaço terrestre e estabelecem relações de amizade, comerciais e pertencimento. As zonas de fronteiras são espaços singulares de identidade das populações que habitam esses territórios e também estabelecem relações com os grupos sociais de países vizinhos. Outro ponto importante a levantar refere-se à inexistência de abordagens teóricas de Relações Internacionais que tratem da capacidade dos atores estatais centrais, subnacionais e não estatais e suas respectivas capacidades de atuação e transformação dos territórios e as relações humanas nas faixas de fronteiras.
No entanto, dentre os poucos teóricos estudados pelas Relações Internacionais no Brasil citamos Jean Baptiste Duroselle, em seu livro “Todo império perecerá”, que destina um capítulo para tratar, a partir da perspectiva histórica, a evolução das fronteiras entre os países (impérios), e assinala que estas desempenham vida passiva quando cumprem o papel para o qual são criadas; e vida ativa quando aumentam as diferenças entre os territórios separados por elas.
Consideramos que o livro Fronteiras e relações internacionais é pioneiro para os estudos de relações internacionais no Brasil e na América do Sul, por tratar a partir de uma abordagem multidisciplinar, a importância das fronteiras nas discussões teóricas, para a integração regional, a cooperação descentralizada, a saúde e o meio ambiente nas faixas de fronteira, a segurança pública e as relações bilaterais.
O livro é composto por treze capítulos escrito nos idiomas português, inglês e espanhol de autoria de pesquisadores brasileiros e sul-americanos; sendo que consideramos o primeiro capítulo, de Márcio Augusto Scherma, o mais inovador para a disciplina porque analisa as fronteiras segundo as abordagens realista e liberal das teorias de relações internacionais, com o objetivo de explicar porque o conceito foi pouco difundido nessas teorias, apesar de estar atrelado a outros conceitos-chaves, como Estado, território e soberania. O autor defende que as teorias mainstream têm concepções estáticas e não conseguem explicar alguns fenômenos sociais que acontecem nas fronteiras.
O segundo capítulo, de Bruno Sadeck e Paula Ravanelli Losada, discorre a respeito do papel das fronteiras nos processos de integração regional e as várias formas de cooperação. Apresentam diversos projetos empreendidos pelo governo federal brasileiro, com foco no Consórcio Intermunicipal da Fronteira que abrange os municípios de Barracão e Bom Jesus do Sul, no estado do Paraná, Dionísio Cerqueira, em Santa Catarina, e Bernardo de Irigoyen na província de Missiones, na Argentina. Os autores defendem que a integração e a cooperação fomentam o desenvolvimento econômico e social das regiões fronteiriças.
O terceiro capítulo, de Henrique S. de Almeida Prado, analisa a importância da atuação dos atores subnacionais nas relações internacionais, através da paradiplomacia e cooperação descentralizada, com o objetivo de promoção da integração fronteiriça dos municípios de países membros do Mercosul. Sua hipótese é de que o envolvimento dos atores subnacionais em zona de fronteira fortalece o processo de integração quando agem de forma estratégica no pleito de suas demandas e na formulação de temas específicos de políticas públicas para a zonas de fronteiras.
O quarto capítulo, de Nahuel Oddone e Horacio Rodríguez Vásquez, discorre sobre as razões e as assimetrias entre os países da América do Norte, Sul e Central. Com foco na América na Latina, os autores afirmam que a região tem encorajado a cooperação transfronteiriça para diversos temas; porém as questões de planejamento territorial, política econômica regional e melhoria na infraestrutura são fundamentais para o desenvolvimento regional, com destaque para a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e o Projeto Mesoamericano de Integração e Desenvolvimento (MIDP). Por fim, os autores apresentam um modelo institucional para as microrregiões de fronteira, o que implica em um esquema de governança envolvendo vários níveis institucionais.
O capítulo cinco, de Fábio Régio Bento, descreve as fronteiras como espaços de afirmação de identidades, de integração entre sujeitos de identidades distintas e de proteção de identidades coletivas. A integração não se refere somente aos sujeitos próximos ao governo central, mas também às populações que habitam as cidades de fronteira, importantes atores subnacionais na construção de uma maior integração regional na América do Sul. Para concluir, o autor descreve sobre as cidades da faixa de fronteira, as cidades gêmeas e as cidades conturbadas.
No capítulo seis, Márcio A. Scherma e Sara Solange Alves Ferraz, analisam as teorias funcionalista e neofuncionalista para a cooperação na área da saúde, o papel dos entes subnacionais e o desenvolvimento do Sistema Integrado de Saúde das Fronteiras (SIS-Fronteira), criado em 2005 pelo Brasil e países vizinhos.
O capítulo sete, de Lídia Maria Ribas e Soraya Saab, objetivam debater sobre as políticas públicas para a educação em zonas de fronteira, tomando como base a região de Ponta Porã, no estado de Mato Grosso do Sul, e a inclusão de crianças de Pedro Juan Caballero, do Paraguai. As autoras apontam a importância da administração pública na educação básica e defendem que políticas públicas de integração educacionais poderão trazer benefícios mútuos para ambos lados da fronteira brasileira e paraguaia.
O capítulo oito, de Gustavo Rojas de Cerqueira César, apresenta a integração produtiva Paraguai-Brasil desde os antecedentes econômicos e institucionais, as mudanças políticas e as redefinições que influenciaram as relações bilaterais. Por fim, destaca os investimentos brasileiros fortes no setor primário no Paraguai.
O capítulo nove, de Rebeca Steiman, dedicado as Iniciativas de Conservação Transfronteiriça na Amazônia brasileira, inicialmente apresenta um panorama das áreas protegidas transfronteiriças pelo mundo e a importância do apoio técnico e financeiro de Estados, Organizações Internacionais e Organizações não Governamentais. Ao final, a autora aponta as limitações científicas, políticas, financeiras e cooperativas na implantação de áreas protegidas transfronteiriças.
O capítulo dez, de Carlos Eduardo Riberi Lobo, discorre a respeito das Forças Armadas, Geopolítica e Fronteira nas relações entre o Paraguai e o Brasil no período de Stroessner, entre 1954 a 1989. O autor apresenta um breve retrato histórico entre os dois países a partir da Guerra do Paraguai (1865-1870), depois o Conflito do Chaco (1932-1935) e a aproximação nos governos de Getúlio Vargas (1930-1945). De acordo com Lobo, a “flexibilização” das fronteiras foi possível graças à construção da usina de Itaipu e a migração de brasileiros para o Paraguai. O autor conclui que as relações entre Brasil e Paraguai desenharam um novo panorama no Cone Sul, consolidando a liderança do primeiro na região.
O capítulo onze, de Lisandra Pereira Lamoso, disserta a respeito da segurança pública nas fronteiras de Mato Grosso do Sul, com base em uma pesquisa qualitativa e quantitativa, para avaliar os investimentos e as condições de trabalho nas fronteiras brasileiras. A autora apresentou os resultados dos questionários aplicados com os representantes das Polícias Civil, Militar, Federal e Rodoviária, do Ministério Público, das Forças Armadas e da sociedade civil. Para tanto, descreveu a atual situação das instituições que atuam nas zonas de fronteira, como o número de servidores, as condições de trabalho, o risco da atuação, e relatos de criminalidade e ilegalidades que comprometem a vida dos profissionais e da população local.
O capítulo doze, de Tomaz Espósito Neto, trata da evolução dos limites entre Brasil e Paraguai de 1822 a 1864, período entre a independência das ex-colônias até a Guerra contra o Paraguai. A autor emprega o método histórico-descritivo, e considera que esses períodos foram os mais importantes para a divisão das fronteiras entre Brasil e Paraguai. O autor apresenta três missões que foram importantes para o estabelecimento de relações entre os dois países, dado que suas convivências nem sempre foram pacíficas, e o Brasil concentrou esforços para consolidar seus interesses na Bacia do Prata.
O capítulo treze, de Cristian Ovando Santana e Sergio González Miranda, aborda os projetos e as demandas de integração física entre Tarapacá, no Chile, Oruro, na Bolívia, por ferrovias, estradas e corredor bioceânico, resultantes da histórica interdependência entre os dois países; portanto, um ideário que se arrasta desde o século XIX, obrigando chilenos e bolivianos a realizarem travessias em diversos tipos de caravanas diariamente. Os autores apresentam abordagens para respaldar o entendimento de imaginário na fronteira e memória coletiva, para que possamos entender as atitudes dos habitantes e atores na região transfronteiriça.
De modo geral, a obra supre parte da lacuna dos estudos de fronteiras nas relações internacionais, por apresentar várias possibilidades de compreensão e aplicação do papel das fronteiras, complementadas por linhas de estudos próprias das Relações Internacionais, como integração regional, cooperação bilateral, segurança, bem como pela necessidade de mostrar a atuação dos múltiplos atores, como os Estados, os atores públicos subnacionais, a sociedade civil, dentre outros, nas zonas de fronteira. É evidente que a multidisciplinariedade de autores e visões presentes na coletânea demonstram a complexidade do objeto de estudo e a importância de serem alimentados por outras disciplinas. O único ponto que consideramos falho para a primeira edição deste livro refere-se aos escassos produtos cartográficos, que seriam interessantes para ilustrar os estudos de casos apresentados em alguns capítulos. Tal circunstância não desabona a indicação desta referência a ser recomendada para leitura.
Referências
DUROSELLE, Jean-Baptiste. Todo império perecerá: teoria das relações internacionais. Tradução de Ane Lize Spaltemberg de S. Magalhães. Brasília: Ed. Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
FOUCHER, Michel. Obsessão por fronteiras. Tradução de Cecília Lopes. São Paulo: Radical Livros, 2009.
Resenhistas
Tatiana de Souza Leite Garcia – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana (USP); Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); Membro do Laboratório de Geografia Política (USP); Mestre em Geografia (UFU); Graduada em Relações Internacionais e Geografia; Professora na graduação em Relações Internacionais na Universidade Anhembi Morumbi.
Bianca de Oliveira Jesus – Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Anhembi Morumbi.
Referências desta Resenha
PRADO, Henrique Sartori de Almeida; ESPÓSITO NETO, Tomaz (Orgs.). Fronteiras e relações internacionais. Curitiba: Íthala, 2015. Resenha de: GARCIA, Tatiana de Souza Leite; JESUS, Bianca de Oliveira. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.7 n.13, p.421-428, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]
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