O livro é resultado da tese de doutorado de John Charles Chasteen, publicada em 1995 pela University of New Mexico com o título “Heroes on Horseback: a Life and Times of the Last Gaucho Caudillos” 3. O texto é prefaciado pela professora Helga Iracema Landgraf Piccolo, que ressalta a importância da pesquisa realizada pelo historiador norte-americano relativa à fronteira do Rio Grande o Sul e do Uruguai enquanto um espaço privilegiado para a ação dos caudilhos, no caso os irmãos Gumercindo e Aparício Saraiva/Saravia.
Como ressalta o autor no capítulo introdutório “Caudilhos”, o livro está organizado em dois conjuntos de capítulos intercalados. Nos capítulos narrativos, intitulados por datas, são descritas as trajetórias pessoais dos irmãos Saraiva/Saravia, com os principais episódios políticos e militares em que estiveram envolvidos; de “Janeiro de 1893” até “Janeiro a Agosto de 1894” o teatro da narrativa é a Revolução Federalista de 1893, e o grande protagonista é chefe maragato Gumercindo, o mais velho, tendo Aparício um papel secundário; de “Outubro de 1895” até “Março de 1897 a Setembro de 1904” as atenções voltam-se para as últimas ações armadas promovidas pelos blancos uruguaios comandados por Aparício.
O segundo grupo de capítulos, que têm títulos temáticos, procura dar as explicações para a narrativa, tratando dos aspectos principais das sociedades fronteiriças, o impacto das transformações que sofriam nos últimos anos dos século XIX e, fundamentalmente, as bases culturais que sustentavam os caudilhos. Neste sentido, Chasteen já adianta em seu capítulo introdutório que se baseia em Durkheim para conceituar carisma caudilhesco, ou seja, aquele em que “o líder ganha a lealdade do grupo por personificá-lo”; desta forma, “Os seguidores dos Saraivas eram uma grande e difusa ‘comunidade imaginada’ de pessoas que se reconheciam mutuamente por meio de símbolos de uma herança e de um destino comuns.” Estes capítulos constituem o âmago da tese de Chasteen, e neles se centrará a presente resenha.
Em “Fronteiriços”, o autor aborda a ocupação do espaço que viria a se constituir na fronteira Brasil-Uruguai, alternando aspectos gerais deste processo histórico com exemplos dos antepassados dos Saraiva/Saravia. A formação das estâncias de criação – numa paisagem aberta onde os limites entre espanhóis e portugueses não estavam definidos – foi o resultado da apropriação de terra e gado por rio-grandenses e orientais. Nesta sociedade rural – e Chasteen aqui recorre muito às descrições de Saint-Hilaire – os hábitos e vestimentas eram rústicos, aparecendo menos evidentes as diferenças sociais entre patrões e empregados, e mesmo entre trabalhadores livres e escravos, estes menos presentes nas estâncias uruguaias. Aqui são importantes a guerra no cotidiano da fronteira e a capacidade que os fronteiriços tinham para mobilizar os homens das estâncias, constituindo as milícias irregulares conhecidas como montoneras; salienta que esta adesão era mais eficiente entre os agregados das grandes propriedades que entre os peões, que muitas vezes teriam contratos apenas temporários. Esta realidade pouco havia mudado quando Gumercindo reuniu a montonera que em fevereiro de 1893 ingressou no Rio Grande do Sul.
Em “Estado e Nação”, Chasteen historia o complicado processo de formação dos Estados nacionais e suas implicações para a fronteira. A militarização da região – que existia desde os tempos coloniais – não se dava apenas pelas disputas entre rio-grandenses e orientais, mas para reprimir indígenas hostis (charruas e minuanos, desaparecidos antes da metade do século XIX) e especialmente os “gaúchos errantes, aqueles ‘sem rei, sem lei, e sem Deus’, segundo a expressão da época”. Apesar desta concentração de forças militares, regulares ou não, a fronteira era uma área estratégica para refúgio e reunião de inimigos de ambos os governos, sendo freqüentes os casos de fronteiriços que passavam por brasileiros e uruguaios, dependendo das circunstâncias. Fundamentais para o entendimento dos problemas da fronteira, foram as tentativas expansionistas dos rio-grandenses: além das duas invasões da Banda Oriental em 1811 e 1816, para combater Artigas, seguidas da incorporação do território como Província Cisplatina, ocorreram as intervenções nas décadas de 1850 e 1860 contra os governos blancos; como corolário disso, grande parte das terras uruguaias ao norte do Rio Negro pertenciam a rio-grandenses. Esta situação atraiu a atenção do Estado uruguaio na década de 1890, desenvolvendo um importante programa de educação pública voltado para a sedimentação de uma identidade nacional, que se consolidava com a modernização trazida pelas estradas de ferro e pelo telégrafo. O advento da República no Brasil, no entanto, traria a contestação dos homens da fronteira, tendo à testa os federalistas Gumercindo Saraiva e Joca Tavares.
O capítulo “Tempos Difíceis” trata dos problemas econômicos e sociais da região fronteiriça na década de 1890, procurando articulá-los à violência da insurreição de 1893 e à popularidade alcançada por Gumercindo Saraiva. Neste sentido – e Chasteen chega a usar o adjetivo “malthusiana” – aumentara muito a população da fronteira, diminuindo o tamanho médio das estâncias, cada vez menos lucrativas. A plebe rural, além da diminuição da oferta de trabalho pela redução das propriedades, enfrentava a introdução dos cercamentos; reduzia o número de peões necessários para as atividades cotidianas, assim como dos agregados. O fim da escravidão no Brasil e nos países do Caribe mudou o mercado consumidor de carne, e o gado de raça franqueira, introduzido ainda nos primórdios da colonização e que era satisfatório para a fabricação de charque, precisou ser mudado para raças européias de qualidade, onerando ainda mais o custo da pecuária de corte. A fome passava a ser uma realidade para a gente do campo, e os abigeatos tornaram-se uma constante. Por outro lado, os governos brasileiro e uruguaio cerceavam as autonomias fronteiriças, procurando atacar uma “válvula de escape” tradicional, o contrabando. Isto, especialmente em relação aos estancieiros do Rio Grande do Sul, que ficaram fora do governo provincial após a proclamação da República, faziam de homens como Gumercindo potenciais combatentes do novo estado das coisas.
Em “Homens-Fortes” o autor procura explicar a ascendência de Gumercindo pelas qualidades desenvolvidas como caudilho uruguaio e coronel rio-grandense, salientando a antonomasia entre “coronéis” e “bacharéis” no Brasil, equivalente àquela entre “caudillos” e “doctores” no Uruguai 4 , durante o século XIX. O cotidiano das estâncias e das guerras crônicas da fronteira tornaram corriqueira a violência, e as mesmas habilidades exigidas no trato com o gado faziam dos campeiros bons soldados para as montoneras. Aqui ele chama a atenção para o facão, instrumento indispensável para o trabalho, que se tornava a arma por excelência para as brigas individuais e coletivas 5 . Neste sentido, a biografia dos Saraiva/Saravia, entre eles Gumercindo, é recheada de incidentes, tanto de autoridades incumbidas de reprimir estas violências, como de envolvidos em vários conflitos. Nesta sociedade, “Admirado e temido por seus vizinhos, Gumercindo se firmara como caudilho e homem-forte. Como grande proprietário de terras, ele tinha a facilidade para recrutar rapidamente e manter seguidores.”
“A Vontade de Acreditar” inicia com o desencontro de notícias sobre a morte de Gumercindo, e as versões propaladas sobre o caudilho: invariavelmente sobre a violência de um criminoso sangüinário, se dadas pelos adversários, ou de um “paladino libertador, um cavaleiro sem mácula, um protótipo de virtudes cívicas e patriarcais”, se veiculadas pelos federalistas. Dentre as louvações a Gumercindo, Chasteen destaca o do médico Dourado, “Voluntários do Martírio” 6, onde a “vontade de acreditar” projetava nos caudilhos os valores de homens portadores de uma outra cultura, essencialmente urbana. Por outro lado, os moradores da campanha se entusiasmavam pelas habilidades do chefe como cavaleiro ou usando o laço, enxergando nele a figura de um “gaúcho”, que nesta época recuperava uma imagem positiva para os habitantes dos campos argentinos, uruguaios e também rio-grandenses. Somavam-se a estes aspectos, as inegáveis qualidades de Gumercindo Saraiva como comandante militar.
“O Mito da Patriada” se refere ao Saraiva/Saravia sobrevivente de 1893, Aparício, que viria a ser “um herói diferente do seu irmão Gumercindo: menos temido, mas mais amado; não tão bom como comandante militar, mas mais atraente como símbolo”. A expressão patriada –que não é uruguaia, como escreve o autor, mas abrange todo âmbito platino – esteve quase sempre associada às montoneras do século XIX, usada para legitimar as insurreições contra os governos estabelecidos; para os blancos de Aparício, se revestia de um caráter de regeneração moral, recuperando os valores das gerações anteriores. O autor aborda a importância que tinham, em tempos de guerra e de paz, os lenços com as cores dos partidos blanco e colorado, pelo grau de identidade coletiva que conferiam aos orientais 7. A retórica federalista dos blancos se acirrara durante a Guerra Grande, nos anos quarentas, e as referências mitológicas aos chefes do passado, Lavalleja e Oribe, procurava recriar o clima daqueles tempos. Adquirem importância na virada do século as produções culturais de jornalistas, poetas, teatrólogos, tais como Javier de Viana e Acevedo Díaz Por outro lado, o cosmopolitismo, o discurso científico e a modernidade apregoados pelo governo colorado, fizeram de Aparício um símbolo dos antigos valores da sociedade oriental, associados ao mundo de estância tradicional que entrava em crise.
“Um Gaúcho em Rebelião” procura explicar a adesão da gente do campo com o chefe blanco: “Aparício Saraiva representava uma identidade e uma cultura de cunho rural. Ao chamá-lo de ‘gaucho’, aqueles que o veneravam concordavam com aqueles que o desprezavam, para alegria de Aparício.” Este capítulo é o mais interessante, porque trata de uma questão central no fenômeno do caudilhismo: o caudilho se assemelha – de maneira intencional ou não – aos seus comandados, nas roupas, nas lides campeiras, nos hábitos alimentares, na linguagem, e esta aparente “igualdade” é fundamental no ocultamento do antagonismo de classe, reforçando as diferenças com as autoridades constituídas, portadoras da cultura urbana 8 . Mesmo para pessoas instruídas e portadoras de valores culturais que chegavam à Montevidéu, Aparício representava os valores ancestrais que poderiam recuperar a “decadência” do presente: a dicotomia cidade versus campo adquiria o sentido de “passado glorioso” versus “presente ruinoso”. Assim, as montoneras iniciadas em 1897 tiveram para seus seguidores dois significados: de liderança “natural”, para a plebe rural, os paisanos; de paradigma do passado, para os intelectuais da cidade, os puebleros. Aparício Saraiva tornou-se, como “último caudilho ‘gaucho’ uma fonte de inspiração tanto para os encarquilhados veteranos de uma centena de escaramuças fronteiriças como para a juventude de Montevidéu”.
No capítulo conclusivo, “Apoteose e Esquecimento”, Chasteen tece considerações sobre o significado dos irmãos Saraiva/Saravia no presente. Enquanto Gumercindo foi “esquecido”, muito em função da cultura oficial que se desenvolveu no Rio Grande do Sul justamente pelos seus adversários do Partido Republicano, Aparício teve seu nome associado à lenda, e tornou-se o portador dos valores tradicionais do Uruguai moderno. Ressalta que a identidade regional do Rio Grande do Sul, associada à figura do gaúcho, se contrapõe a uma identidade nacional brasileira, ao passo que o gaucho oriental se associa ainda fortemente ao passado rural e caudilhesco do país.
A importância do livro é ímpar para quem deseja se aprofundar nos intrincados meandros da sociedade de fronteira. Apesar de alguns problemas, apontados ao longo do texto, resulta de uma pesquisa empírica de fôlego, além do uso de fontes pouco usuais – e, decerto, bastante importantes – como literatura, jornais e relatos da época. A bibliografia, como alerta Helga Piccolo no seu prefácio, poderia ser mais atualizada com produções feitas por ocasião do centenário da Revolução de 1893; eu acrescentaria umas tantas obras sobre caudilhos e caudilhismo publicadas na Argentina, que poderiam consubstanciar mais o texto. De toda sorte, é um trabalho muito importante, da categoria de outros norte-americanos que pesquisaram temas nossos, tais como Spencer Leitman e Joseph Love, por exemplo.
Notas
3 A edição uruguaia intitula-se Héroes a caballo. Los hermanos Saravia y su frontera insurgente. Montevideo: Ediciones Santillana, 2001.
4 Este é, talvez, o principal problema do livro. A expressão “coronel”, derivada dos postos assumidos pelos grandes proprietários na Guarda Nacional, se generalizou como sinônimo de mando pessoal a partir dos sistemas eleitorais viciados da República Velha. Parece-me mais adequado nomear os chefes rio-grandenses de caudilhos, aqueles capazas de arrastar “caudas” de seguidores, por conta de relações sociais específicas derivadas da economia pecuária.
5 Num outro, ao meu ver, equívoco, compara o facão ao revólver do cawboy do oeste dos Estados Unidos. Também lá as armas brancas foram preferenciais ao menos até a Guerra da Secessão, quando se popularizaram as armas de fogo eficientes. Os duelos de faca fizeram a fama do Coronel Bowie, um dos “heróis” do Álamo, dando seu nome ao modelo de faca militar e de caça de uso ainda contemporâneo.
6 DOURADO, Ângelo. Voluntários do martírio: fatos e episódios da guerra civil. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1979.
7 Também esta não era uma especificidade uruguaia. O uso ostensivo das cores partidárias foi sacramentado por Rosas, e estendeu-se pela Confederação Argentina, pela Banda Oriental e estabeleceu-se no Rio Grande do Sul durante a Guerra dos Farrapos. GUAZZELLI, Cesar A. B. Lenços Brancos e Colorados: Luta Política no Espaço Platino. Porto Alegre: Anais Eletrônicos do II Seminário de Pesquisas do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, 2003.
8 Discuti esta questão em minha dissertação de mestrado. GUAZZELLI, Cesar A. B. Caudilhos e Montoneros de La Rioja: Sociedade e Discurso (1862-1867). Porto Alegre: UFRGS (mimeo), 1990.
Resenhista
Cesar Augusto Barcellos Guazzelli – Professor Adjunto do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. E-mail: cguazza@terra.com.br
Referências desta Resenha
CHASTEEN, John Charles. Fronteira Rebelde: A Vida e a Época dos Últimos Caudilhos Gaúchos. Porto Alegre: Editora Movimento, 2003. Resenha de: GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. História em Revista. Pelotas, v.9, 2003. Acessar publicação original [DR]
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