Os trobadores e as molheres de vossos cantares
son nojados a ũa, porqu’eu pouco
daria pois mi dos outros fossem
loados, ca eles non sabem que xi van
fazer; queren bon son e bõo de dizere
os cantares fremosos e rimados.
Martim Soares
O verbete “antologia”, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, significa, como primeira acepção, “tratado sobre as flores”, cuja origem é a palavra grega anthos, flor. É à primeira significação que também o Houaiss eletrônico se refere, registrando que a palavra pertence à rubrica da botânica – estudo das flores. Parece, então, que a ligação entre “flor” e coleção de textos em prosa e/ou em versos de um ou vários autores (cujo primeiro uso remonta ao ano de 1858, segundo o mesmo Houaiss) fixa-se num conceito subjetivo de estética. Explicamos. Se por “flor” entendermos que forma e perfume são elementos essenciais ao prazer sensitivo da vista e do olfato, estamos no campo da estética, do belo como elemento essencial da flor. Dessa flor nasceu “florilégio” (-légio, do l. legere, “que colhe, recolhe”, ainda segundo o Aurélio), coleção de textos mais significativos de um autor, época, tema etc., recolhidos a partir de um conceito subjetivo de estética, como dissemos atrás2 . Há, é claro, aquelas coleções cujas recolhas não foram tão excelentes, daí não valer o conceito de estética; mas vale o de “subjetivo” – o resultado seria um amontoado de maus textos. Conformemo-nos, pois há flores que não são nem belas nem olorosas.
Não é o caso da reunião de textos líricos medievais galego-portugueses presentes no livro organizado por Lênia Márcia Mongelli, professora titular de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo, Fremosos cantares. Antologia da lírica medieval galego-portuguesa. Recém-publicado pela WMF Martins Fontes, a obra é composta por uma coleção de 522 páginas, coligindo cantigas de amor, de amigo, e de maldizer e escárnio, além das cantigas de Santa Maria – as que foram reunidas por Afonso X, o rei Sábio (1221-1284). A antologia enquadra-se no que já comentamos: escolha subjetiva de textos esteticamente superiores de um período em que a poesia foi elemento básico da cultura, das relações entre senhores feudais – poesia de palácio, portanto, de toda a Europa ocidental. É um florilégio dos mais requintados e famosos poemas da Península Ibérica medieval que abrange aquele período em que a crítica literária denominou “Trovadorismo”. A recolha tem cunho subjetivo porque, como relata a organizadora do livro, “é obra de divulgação e baseia-se em gosto pessoal”, pois “toda antologia é uma escolha e reflete as preferências do antologiador”3 . E, por serem subjetivos, os critérios são os da beleza e os da excelência estrutural do poema, premissas básicas do poeta medieval4, já que, para construir qualquer peça artística, ele tinha como doutrinas ou princípios o que pregavam o trivium e o quadrivium. De certa forma, essas disciplinas – e o âmago deste termo é justamente “ordem, regulamento, sistema”, conforme registra o dicionarista F. R. dos Santos Saraiva, no Dicionário Latino-Português – sistematizavam o pensamento estético do homem medieval. Tanto é assim que, baseado nas artes poeticae gregas e romanas, estas principalmente, o trovador medieval redigiu várias “leis” que, de certa forma, normatizavam o ato de poetar, sendo as mais difundidas durante o medievo as Leys d’Amors, compilação do século XIV relativas à poesia provençal, e a Arte de Trovar, relativa à poesia trovadoresca galego-portuguesa, para citar apenas duas.
Há tempo, o público brasileiro ressentia-se de uma coletânea desse porte, se nos lembrarmos de que a última antologia de poemas trovadorescos foi reunida e estudada por Segismundo Spina, também catedrático da Universidade de São Paulo. É a antológica, se cabe aqui a meta-metalinguagem, A lírica trovadoresca, cuja última edição – a quarta – data de 1996, pela EDUSP, São Paulo.
Conforme Yara Frateschi Vieira nos diz no Prefácio, a obra foi projetada “para o estudante brasileiro” e
uma das qualidades mais marcantes deste trabalho […] é o alto respeito que lhe merece o aluno. Em nenhum momento se observa que a Autora tenha feito ‘concessões’ a uma suposta incapacidade do leitor de lidar com textos que lhe seriam especialmente difíceis, pela distância que o passar do tempo, com todas as suas consequências acarreta”5 (p. IX).
Temos, então, definido o público-alvo da coletânea. No entanto, ainda conforme Yara Frateschi,
É natural […] que o aluno se veja inicialmente perplexo diante das exigências que a leitura-decifração desses textos envolve, ao se dar conta das opções que cada editor teve de fazer, no momento de transformar uma versão (ou mais de uma), manuscrita há pelo menos cinco séculos, em texto que se possa ler em transcrição atual: o primeiro choque virá, naturalmente, das divergências ortográficas, por ora inevitáveis (uma vez que ainda não dispomos de um acordo para a edição dos textos líricos galego-portugueses)”6 (p. X).
A estudiosa faz, então, uma referência à língua/linguagem, uma das preocupações frequentes que se observam nos estudos de textos antigos.
Quanto ao público-alvo, a própria autora-antologista, em Nota Prévia informa que a coletânea dirige-se preferencialmente ao estudante brasileiro. Cabe uma ressalva: devido ao Novo Acordo Ortográfico recém-assinado por dirigentes dos oito países de língua portuguesa, esse público pode estender-se ao estudante português, pela proximidade dos textos e pela nova ortografia, um dos objetivos da reformulação da escrita da língua. No entanto, há de se ressaltar que muitos dos termos e construções especificamente periodizados tiveram de ser mantidos. Tenha-se como exemplo a primeira estrofe de famoso poema de Pedro Eanes Solaz: “Eu velida non dormia, / lelia doura / e meu amigo venia, edoi lelia doura” (p. 129). Nos Comentários, a autora explica o enigmático refrão e os estudos que vêm sendo realizados para sua decifração; quanto a outros termos, não só dessa cantiga, o leitor poderá vê-los solucionados no Glossário.
Lênia Márcia, também na Nota Prévia, relata os três compromissos que assumiu para a feitura da obra: (1) a criação da ABREM, Associação Brasileira de Estudos Medievais, teria colaborado para a ampliação do interesse pela Idade Média, no entanto, a deficiência de nossas bibliotecas no que diz respeito às fontes primárias do medievo como que impede um estudo mais profundo do período, daí a premência da antologia; (2) não sendo uma edição crítica, reduziu-se o aparato ao essencial, tais como indicação das fontes primárias, classificação quanto ao assunto e métrica7, vocabulário, observações e comentários, essenciais para a aproximação leitor-texto; e (3) “o critério de delimitação do corpus foi, preferencialmente, o da beleza e o da excelência de construção do poema – subjetivo o primeiro qualificativo, mas temperado com objetividade do segundo” (p. XV).
E por que incluir as cantigas de Santa Maria8? Explica a organizadora: aqui comparecem não só por estarem vazadas em galego-português ou por terem feito uma ‘adaptação’ da cortesia à esfera litúrgica, portanto partícipes de uma mesma visão de mundo; mais do que isto, o estudante que as desconhece […] poderá constatar a extraordinária habilidade, principalmente rítmica, do Rei e de seus colaboradores…” (p. XVI).
O rei referido, todos o sabem, é Afonso X, o Sábio. É relevante que se tenha acrescido à antologia essas cantigas, pois oferece oportunidade ao leitor de apreciar não só aquelas de cunho amoroso, de amigo ou de escárnio e maldizer, mas também como o sagrado era cantado em poemas. A maioria das cantigas relata fatos em que a mãe de Deus, pela sua divindade, ajuda ao pobre e pune o mal, o que é característico das divindades; no entanto, o que aflora nesses textos é muito da ligação que o Cristianismo ainda mantinha com histórias e costumes pagãos. Veja-se o poema X, “Como Santa Maria fez que nacesse o fillo do judeu o rostro atras, como llo Merlin rogara” (p. 332-336). Nesse poema, o mago Merlim apresenta-se como advogado da ultrajada – a própria Virgem Maria.
Para a organização da antologia, valeu-se Lênia Márcia de 14 critérios, entre eles a organização das seções: para cada uma delas, os autores são ordenados segundo cronologia provável, introdução, textos comentados, 30 por gênero (mas 31 para as Cantigas de Santa Maria 9), e bibliografia específica, além de tradução das citações de estudos críticos em idioma estrangeiro. A organização didática é um facilitador ao estudante/leitor, pois o aproxima da completude de cada poema. A autora ainda relata sobre o objetivo da coletânea, que seria uma orientação metodológica de leitura e sugestão bibliográfica da lírica galego-portuguesa. Como poderá observar o leitor, o objetivo foi alcançado devido ao rigor e precisão do estudo.
A estrutura da antologia está didaticamente dividida nos quatro tipos de cantigas catalogadas: as de amor, de amigo, de escárnio e maldizer e as de Santa Maria. Na Introdução, que pode ser definida como um denso estudo sobre a poesia trovadoresca, a antologista faz remissões ao Romantismo, Realismo e Simbolismo, além, é claro, àquelas relativas ao passado greco-romano e principalmente às correlativas ao medievo europeu. Isso é importante, pois dirige o leitor para o universo da poesia, fato artístico dos mais identificadores da arte medieval. E é na poesia que o poeta – chamado “trovador”10 – canta em louvor de uma dama inatingível, numa relação “vassálica”, ou ainda se traveste de dama que, em romaria ou nos prados, sai à procura do “amigo”, o namorado; é ainda nessa poesia que, ao aguçar o senso crítico quanto às baixezas do homem ou às suas perdições, o trovador ironiza, satiriza o que lhe parece ridículo11. Para Lênia Márcia, ao cantar – e relembre-se: os poemas eram cantados, porque acompanhados de música – essas três modalidades, a poesia trovadoresca “parece começar e morrer em si mesma”, querendo dizer que, apesar de marcada pelo seu tempo, legou aos futuros movimentos a base de toda sentimentalidade própria do homem, por ser esse tipo de poesia atemporal.
Essa poesia atemporal – se é que todas não o são – difere de todas as outras subsequentes por motivos que são tratados com especificidade pela organizadora; entre outros, o que marca esse tipo de poesia é a centralização na questão do homem medieval enquanto o que diríamos hoje: o homem civil. O “eu” que aflora dos poemas trovadorescos – e de todos da Idade Média – é um “eu” coletivo, que, nas palavras de J. Morsel, não é concebido fora dos parâmetros sociais e ideológicos do grupo em que está inserido (p. XXIV). No entanto, é necessário, para se entender a problemática “coletividade x individualidade”, assim como mostra Lênia Márcia, relativizar a sobreposição do coletivo sobre o individual. Isso se pode perceber nos poemas medievais pelos traços sutis, dissimuladores que revelam, embora dissolvido, o “eu” do trovador, sua individualidade12.
Outra marca reveladora da poesia medieval é o eterno paradoxo entre o bem e o mal exaltado nas antitéticas relações religiosas do profano e do sagrado. Nos poemas amorosos e nos poemas marianos, o tema revela, aqui sim, um dado da coletividade que guiou o homem medieval. Sob influência da Igreja, esse homem convivia com a batalha entre Deus e o Diabo; esta se revela tanto na visão que ele tinha da mulher, como representação do amor, quanto no sentimento de que esse mesmo amor significa sua partição do bem causado pela sedução do mal. Um amor assim concebido, como esclarece Mongelli, veio da tradição clássica – Platão e Ovídio são as fontes filtradas do Cristianismo para a concepção do amor na Idade Média.
Seguido dessas análises, o estudo em Fremosos cantares volta-se para as dificuldades que os especialistas enfrentam/enfrentaram no trabalho de compilar e “ajustar” os textos. Compilados nos três cancioneiros conhecidos por da Ajuda, da Vaticana e da Biblioteca Nacional, o leitor fica sabendo que restaram cerca de 1.664 cantigas de 150 trovadores e jograis. Neles, a grande dificuldade: o trabalho de filologia, de assentar o texto antigo a partir de trechos, evidências, suposições. Tudo devido à deterioração causada pelo tempo. Um trabalho de desvendamento para possibilitar, se não o completo entendimento de uma época, pelo menos seu gosto estético. Outra dificuldade é a da classificação genológica e terminológica relativa à composição das cantigas. Os romanos se valeram de várias artes poeticae que, como legado, nos permitem delinear o modo composicional da poesia clássica. Os provençais nos legaram várias outras artes poéticas – sendo a Leys d’Amors a mais difundida – que revelam o modo composicional do trovador medieval. No entanto, restou-nos da arte de poetar galego-portuguesa somente o muito fragmentado Arte de Trovar já citado anteriormente. Apesar de “precário”, é uma luz que revela as técnicas de composição adotadas pelos trovadores galegos e portugueses do Trezentos – nele, definem-se os gêneros, estruturas, recursos e técnicas empregadas pelos poetas. Vale dizer que uma arte poética, se não ditava uma ordem a ser seguida, provia o poeta de um guia de possibilidades de expressão. Poderá parecer algo que limitasse a sua criação; no entanto, esse guia, várias vezes desobedecido pelos poetas criativos e inventivos, serve aos estudiosos como fonte de entendimento de uma mentalidade não só poética, mas, sobretudo, uma mentalidade cuja visão de mundo trazia a essência da época.
Sem poder deixar de o fazer, ainda recorre-se na obra à questão da língua. E, parafraseando Márcia Mongelli, “que língua é essa, o galego-português?” (p. XXXIV), citando sua origem geográfica – a Gallaecia Magna, passa a autora a desvendar a abrangência do galego, por seu prestígio, até a prevalência do português, aquele que se expandiu desde a época trovadoresca aos nossos dias. Em seguida a esse estudo linguístico, volta-se a análise para uma questão de marca da poesia medieval: sua ligação com a música. Imagem do verso clássico, teoria musical versus normas da gramática, duração relativa da altura dos sons, a poesia trovadoresca se ressente de não terem sido transcritas – pelo menos não todas, pois se conhecem 13 cujas notações musicais acompanham a escrita do poema – o que é um grande desafio aos estudos sobre essa tão característica marca da poesia ocidental do medievo.
A Introdução ainda brinda o leitor com um panorama histórico-cultural. Isso é essencial para se entender não só a mentalidade poética – centro das atenções da antologia, é claro – mas do próprio homem medieval, erroneamente visto, devido a preconceitos historiográficos, como rude, insensível. O Feudalismo está ligado intensamente à temática amorosa; é nos poemas amorosos que ele emerge: a tão conhecida máxima do “amor vassálico”, nada mais é do que a transposição para a estética do poema das relações sociais e econômicas reveladas nas impossibilia de se amar a mulher de seu senhor13. O trovador-vassalo é cindido pela vontade de possuir um amor que não só as normas da religião e da estrutura social proíbem, mas principalmente as do sistema econômico. Mongelli refere-se a essa relação como uma alternativa de estilização da relação amorosa – uma alegação irônica do trovador ou sua passividade ao sistema? A conferir em cada um dos poemas da coletânea. Referindo-se às Cruzadas, às peculiaridades do medievo hispânico, tais como as invasões e fixações muçulmanas na Península, suas relações com os judeus e a insegura relação entre Castela e Portugal, além das características próprias do feudalismo e do medievalismo em relação aos seus congêneres europeus, monta-se um painel que, mais do que uma citação de cunho historicista, é uma base para se entender a poesia trovadoresca galego-portuguesa em seu âmago: a expressão de uma mentalidade única e instigante.
Além da profícua Introdução, Fremosos cantares traz Prefácio de Yara Frateschi Vieira, catedrática da UNICAMP, estudiosa e especialista em poesia trovadoresca, e também profunda conhecedora de Carolina Michaëlis Vasconcelos14. A antologia traz também uma biografia de trovadores e jograis que aparecem na coletânea, escrita por Márcio Ricardo Coelho Muniz, da Universidade Federal da Bahia, outro estudioso da Idade Média. No glossário compilado por Paulo Roberto Sodré, da Universidade Federal do Espírito Santo, o leitor poderá deslindar muitos dos termos que lhe possam parecer estranhos, mas são essenciais para o entendimento da arte literária trovadoresca.
A antologia poderia ser mais rica se, além dos excelentes poemas selecionados, a obra tivesse sido ilustrada com algumas partituras musicais de alguns dos poemas – já que a maioria era composta para o canto – e com iluminuras apropriadas ao ambiente de reprodução oral desse tipo de poesia. Como se sabe, era de gosto medieval ilustrar seus livros – elementos de devoção do homem medieval, como respeito a uma das mais célebres “invenções” do homem. O leitor de hoje poderia, então, conhecer/reconhecer um período que nos parece distante somente por mera conjunção matemática do tempo. Uma nota, ainda, com relação ao título da antologia. Ele faz referência aos poemas de Martim Soares, trovador português, cuja atividade poética pode ter se estendido até meados do século XIII, para quem, como emerge dos versos epigrafados acima, “os bons trovadores e as damas ficam enojados com os maus cantares, pois apreciam cantigas belas e rimadas, de boa música e linguagem agradável”15. Segundo Carolina Michaëlis Vasconcelos, Soares teria produzido “rudes cantigas de escarnho e maldizer, de desmantado cynismo” e “cantares graciosos e variados de amor, alguns sirvanteses e joguetes, palacianamente comedidos de expressão16”. Pelo que se percebe na estrofe em epígrafe – parte de uma cantiga de maldizer, que não participa da coletânea – nada há de rude, mas de uma exigência própria dos trovadores, cuja missão seria fazer poemas que dessem prazer às damas e mesmo aos trovadores, ofício de quem deve bem trovar17.
A antologia não poderia deixar-se encerrar com um dos mais apreciados poemas presentes no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, de 1516, quando Portugal passa por uma reviravolta histórica e social: com as Descobertas, a começar por Ceuta até as Américas, abre-se um novo mundo. Na poesia, com a reunião de poemas efetivada por Resende, descobre-se não só uma antecipação da Renascença, mas também muito dos estilos literários vindouros – no entanto, todos vinculados à tradição provençal e trovadoresca. O poema é “Cantiga sua partindo-se”: “Senhora, partem tão tristes / meus olhos por vós, meu bem, / que nunca tão tristes vistes / outros nenhuns por ninguém”. O amor cantado por João Roiz de Castelo Branco é ainda cortês, tem a mesma essência daquilo que foi exaltado pela poesia galego-portuguesa presente em Fremosos cantares, contudo, esse amor avança e, tendo por base e reverência o culto do amor como cantavam Dante e Petrarca, dá já os primeiros sinais da sensualidade que iria ser mais largamente explorada no Renascimento.
A antologia organizada por Lênia Márcia Mongelli surge em boa hora, quando os estudos sobre o medievo ganham certo reforço no Brasil, quando ainda se ressente de estudos mais aprofundados da lírica trovadoresca elaborados também aqui e, principalmente, quando se ressente de mais textos acessíveis a estudantes e estudiosos dessa tão rica poesia.
Notas
2 De acordo com Alan Deyermond, a origem dos cancioneiros estaria nas antologias da Idade Média, contemporâneas aos trovadores, portanto, e nas antologias latina e grega, mais as egípcias e no Cântico dos Cânticos. Para o autor, “this is as true in Asia as in Europe: much medieval Sanskrit and Japanese poetry comes down to us in anthologies that had already attained classic status in their own times”. Elas não seriam uma invenção medieval, e cita a Anthologia latina que teria sido compilada no Norte da África nos inícios do século VI. DEYERMOND, Alan. Bilingualism in the Cancioneros and its implications. In: Poetry at court in Trastamaran Spain: from the Cancionero de Baena to the Cancionero general. Temple, Arizona: Medieval & Renaissance Texts & Studies, 1998, v. 181, p.141-142.
3 Para além de uma atitude subjetiva quanto a qualquer recolha de textos, relembremos o que escreveram os editores da Antologia de Textos Medievais, de 1961: “Uma criteriosa antologia incita a que seja o próprio leitor a analisar a significação de cada texto no seu aspecto literário, e para que possa depois situá-los nas condições culturais e sociais da respectiva época. Ocasiona ainda uma visão panorâmica que, não substituindo o conhecimento de edições integrais das nossas fontes literárias […] constitui todavia uma iniciação.” ANTOLOGIA DE TEXTOS MEDIEVAIS. Seleção, introdução e notas de José Pereira Tavares. 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1961, p. VI. Qualquer antologista, dessa forma, compromete-se com o leitor quanto aos aspectos literário, cultural e social contidos nos textos por ele compilados.
4 Como expressa Mongelli: “Na análise das cantigas, apontam-se os recursos formais que pareceram mais significativos para que os temas se desenvolvessem com a qualidade estética que, cada vez com maior clareza, se nota como distintiva da produção trovadoresca” (Fremosos…, p. XIV).
5 Quanto à dificuldade de se entender textos antigos, Octavio Paz comenta, especificamente quanto à poesia: “Es muy posible que el lector no comprenda con entera rectitud lo que dice el poema: hace muchos años o siglos fue escrito y la lengua viva ha variado; o fue compuesto en una región alejada, donde se habla de un modo distinto. Nada de esto importa. Si la comunión poética se realiza de veras, quiero decir, si el poema guarda aún intactos sus poderes de revelación y si el lector penetra efectivamente en su ámbito eléctrico, se produce una re-creación. […] el lector recrea el instante y se crea a si mismo.” In: PAZ, Octavio. El arco y la lira. [México]: Fondo de Cultura Económica, 1998, p. 192. E para Pierre-Yves Badel, “rien de plus banal que de constater que les textes du Moyen Age appartiennent à un univers étranger, à ‘un ensemble de formes culturelles assez alloignées de nous dans le temps, pour échapper à notre expérience vécue d’hommes du XXe siècle’ [citando Paul Zumthor em Essai de poétique médievale]. […] Lire un texte autre, passé, n’a quelque chance de nous changer que dans la mesure où nous tentons l’impossible gageure de le retenir le plus longtemps possible à distance, de le considérer dans sa différence et dans son absence, avant de nous l’approprier ”. BADEL, Pierre-Yves. Pourquoi une poétique médievale? (sur l’Essai de Poétique médievale de Paul Zumthor). Poétique. Paris, n. 18, p. 247, 1974.
6 Provavelmente, à época da redação do prefácio, Yara Frateschi desconhecia as Normas de edición para a poesía trobadoresca galego-portuguesa medieval. Ed. Manuel Ferreiro, Carlos Paulo M. Pereiro, Laura T. Fontaíña. A Coruña: Universidade da Coruña. Servizo de Publicacións, 2007. 71. A antologista, por sua vez, faz referência a essas Normas de edición…, em nota. Cf. Fremosos…, p. XXX.
7 Vale-se a organizadora especialmente do mais completo estudo da métrica trovadoresca efetivada por Giuseppe Tavani, o Repertorio metrico della lirica galego-portohese. Roma: Edizioni dell’Ateneo, 1967.
8 Em “Estudos interdisciplinares sobre o trovadorismo galaico-português”, Lênia Márcia comenta que as cantigas trovadorescas eram “chamadas ‘profanas’ em oposição ao cancioneiro ‘mariano’ de Afonso X – cheias de erotismo, de jogos equívocos, de subterfúgios e de ambiguidades” – e teriam sido “compostas por dentro e por uma sociedade religiosa, cristã, que tem a Bíblia como paradigma e a Igreja como diretriz espiritual atuando também como orientadora comportamental pelo menos desde o século V.” E como teria sido aceita essa dicotomia? Uma das explicações da autora: “a voz cheia de autoridade de Santo Agostinho defende, nas Confissões, a ‘palavra criadora’, capaz de ‘inventar a realidade’, porque foi assim que Deus fez o mundo […]. Estava aberta a porta que, ao longo dos séculos, elevaria paulatinamente o estatuto dos poetas até chegar à irrupção dos trovadores com seu erotismo novidadeiro”. In: MASSINI-CAGLIARI, Gladis et alii (Org.). Série Estudos Medievais 1: Metodologias. Rio de Janeiro, 2008, p. 5-6 acesso em 27.01.2010.
9 Devido à cantiga-prólogo, estudam-se 31 em vez de 30 de cada um dos outros subgêneros.
10 Jorge A. Osório comenta que “a terminologia usada ao longo de século e meio concentra-se em trovador, jogral, segrel, por um lado, e em cantar, cantiga, por outro. É que o conceito de poeta como homem de cultura adquirida sobretudo nas leituras dos grandes autores do passado não se podia aplicar ao caso dos senhores e vassalos do séc. XII-XIII, ou seja, ao trovador galego-português e à realidade a que é suposta referir-se a mesma poesia”. In: Trovador e poeta do séc. XIII ao séc. XV. Algumas considerações. Revista da Faculdade de Letras do Porto. Línguas e Literatura. Porto, II série, v. X, p. 99, 1993.
11 Para Jorge A. Osório, a consciência poética dos trovadores deve recorrer não só aos gêneros sérios das cantigas (de amor e de amigo), mas às de maldizer e escárnio. Nestas, “incluem alusões à arte ou ao exercício de trovar”, revelando “não tanto uma reflexão sobre a poesia, mas exclusivamente uma agressividade disputativa orientada para o denegrimento dos invectivados” (ibidem, p. 104). É assim que, através da disputatio, o trovador fazia-se superior ao jogral e segrel, pois fazia poesias de melhor qualidade e marcava o estatuto de nobres ou de fidalgos. O autor dá como exemplo algumas cantigas de maldizer, entre elas “Cavaleiro, com vossos cantares”, de Martim Soares, aqui epigrafada e comentada.
12 Lênia Márcia comenta, em “Estudos disciplinares…” que “se acusamos os trovadores ibéricos de ‘massificados’, de inseridos em um grupo onde mal se distinguem individualidades – quase sempre reconhecidas antes por sua categoria social que por sua ‘inventividade’ poética – pergunta-se até que ponto se pode falar em ‘identidade’ ou em ‘indivíduo na Idade Média, sem ferir um modo de constituição que é essencialmente grupal e homens que se reconhecem plenamente como ‘filhos de Deus’?” (op.cit., p. 5). Uma das respostas estaria na própria arte poética desses trovadores “que é antes de tudo ‘técnica’ [referindo-se a Umberto Eco] conforme a primeira etapa de uma composição retórica: a inventio significa escolher um determinado tema e adequá-lo a determinada linguagem [de acordo com Cícero]. Quanto mais perfeita e mais sem brechas esta ‘adaptação’, tanto melhor o texto” (ibidem, p. 7). É o que, de certa forma, individualizaria o trovador medieval.
13 A organizadora revela ainda que o rito da “investidura” – quando o senhor entregava ao vassalo algum objeto que simbolizava o feudo que aquele concedia a este – tem origem militar e é assim que se desenvolve a cavalaria, outra das muitas instituições reveladoras da mentalidade medieval (Fremosos… p. XL).
14 Relembre-se que Carolina Michaëlis foi a primeira filóloga a estudar sistematicamente o universo da poesia trovadoresca galego-portuguesa.
15 SOUZA, Risonete B. de. Os fremosos cantares do trovador Martim Soares. Tese de Doutorado [Literatura Portuguesa]. 2002. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002, p. 83.
16 CANCIONEIRO DA AJUDA. Ed. Carolina Michaëlis Vasconcelos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 321, volume 2.
17 Quanto a isso, comenta José Carlos Ribeiro Miranda: “É perceptível que Martin Soares censura ferozmente um outro trovador, que faz ‘cantares de amor’, a quem todavia vai qualificando não como ‘trovador’ mas sim como ‘cavaleiro’. Essa censura parece ter duas vertentes: uma, que se destaca sobretudo na ‘fiinda’, e que nos diz que o dito ‘cavaleiro’ fazia os seus cantares ‘desiguados’, ou seja, não obedecendo às regras da isometria, dimensão que pode ser um pouco amplificada se assumirmos que esse cavaleiro infringiria também o bom modelo poético que é esboçado no final da mencionada cobla quarta: não faria ‘bõo son’, nem ‘bon de dizer’, nem ‘fremoso’, nem mesmo “rimado”. Ou seja, as suas melodias seriam más, os textos difíceis de cantar, as ‘cores de retórica’, responsáveis pela beleza do discurso, não seriam devidamente utilizadas e, por último, de acordo com o do conteúdo da ‘fiinda’, também a rima seria deficiente. Globalmente considerados, esses aspectos configuram uma reprovação da dimensão formal dos cantares do cavaleiro em questão. MIRANDA, José Carlos Ribeiro. Martin Soares e o “cantar do cavaleiro”: a recepção do cantar de amigo da fase inicial. Guarecer on-line. Dez 2007. Disponível em: http://www.seminariomedieval.com/Martin%20Soares%20e%20o%20Cantar%20do%20Cavaleiro.pdf.). Acesso em 3 abr., 2010.
Resenhista
Geraldo Augusto Fernandes – Doutorando em Literatura Portuguesa, do programa de pesquisas “Poéticas de Expressão Portuguesa”, da Universidade de São Paulo. E-mail: geraldoaugust@uol.com.br
Referências desta Resenha
MONGELLI, Lênia Márcia (Org.). Fremosos Cantares. Antologia da Lírica Medieval Galego-Portuguesa. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. Resenha de: FERNANDES, Geraldo Augusto. Signum- Revista da ABREM, v. 11, n. 1, p.342-351, 2010. Acessar publicação original [DR]
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