Poucos momentos na história do Ocidente foram tão profundos quanto as reformas agrárias dos séculos XVIII e XIX. Surgidas no contexto europeu pré-revolucionário e parte dos processos de modernização da sociedade e quebra dos estamentos tradicionais, as reformas agrárias ultrapassaram fronteiras e se tornaram elementos de construção dos estados nacionais e de novas configurações sociais em diferentes partes do globo. Mesmo sociedades como a brasileira, que se estruturava em torno do escravismo e latifúndio exportador, ou seja, detentora de realidades agrárias e sociais muito distintas daquelas da Europa central, não escaparam de tal desenvolvimento (Carvalho, 2003, p. 350-351) iii. O distante Japão, a “Prússia da Ásia”, a partir do fim do Xogunato e ascensão Meiji Tenno igualmente elaborou suas reformas agrárias a partir do modelo do reino dos Hohenzollern (Chung, 2018, p. 78) iv. No século XX, reformas no campo recebem o impulso das revoluções socialistas; alterações no status quo das estruturas do mundo agrícola foram, geralmente, prioridade para governos revolucionários no sentido de mudanças sociais profundas (Filippi, 2005, p. 27) v. De fato, o fenômeno descrito pelo historiador britânico Sean Eddie, embora confinado em sua análise na via prussiana das reformas agrárias, insere-se numa perspectiva temática de possibilidades globais, que extrapolam o século por ele descrito.
O ponto fulcral da obra de Eddie é determinar o alcance das reformas agrárias na Prússia e, sobretudo, reavaliar o seu significado social e o peso das interpretações da história agrária alemã – sobretudo a partir da obra do “pai da história agrária germânica”, Georg Knapp (1887) vi e seu Die Bauerbefreiung und der Ursprung der Landarbeiter in den älteren Theilen Preußens – e das perspectivas marxistas sobre o processo de modernização social e agrícola capitaneada pelas elites ilustradas prussianas após o desfecho trágico da Paz de Tilsit (1807). Em primeiro lugar, Eddie, fazendo largo uso das correspondências privadas dos ministros de Estado prussiano, de estatísticas de imposto territorial e da administração de propriedades senhoriaisvii e embasado nas perspectivas microhistóricas de William Hagen (2002) viii em Ordinary Prussians, fundamenta a hipótese de que as reformas agrárias ou liberação camponesa (Bauernbefreiung) não resultaram numa vitória decisiva ou clara para os estamentos aristocráticos da Prússia. Eddie contraria, assim, uma larga historiografia e um fait accompli histórico largamente assim considerado; isto reforça o mérito de seu trabalho e o situa como uma leitura obrigatória no vasto conjunto bibliográfico do tema.
Sob outro aspecto, Eddie busca conscienciosamente a partir do título provocativo do livro, “desmoralizar” o tópico da liberdade moderna. Pois se o processo recebeu a alcunha de “liberação” dos camponeses – como se as políticas agrárias da época fossem essencialmente um instrumento de emancipação humana -, o mesmo, segundo o autor, deve ser analisado sobretudo sob seu aspecto econômico e fundiário. A liberdade, aqui entendida sob o ponto de vista liberal, ou seja, liberdade de movimento, de iniciativa, de associação etc., não pode ser pensada como parâmetro para a compreensão das relações de servidão na Prússia. Ao historicizar a liberdade – noção paulatinamente inegociável para as sociedades europeias pós-1800 e uma fórmula de apelo global -, Eddie perscruta os motivos, estratégias e interesses dos grupos sociais que fundaram a servidão prussiana. Em geral, Eddie nega a malignidade do processo em relação ao campesinato e relativiza a tese de que as reformas agrárias tivessem sido conduzidas sob o interesso unilateral dos grandes latifundiários da região ao leste do Elba e industrialistas da Prússia do oeste (renana e westfaliana). Observa que a reforma foi bastante heterogênea, na medida em que uma determinada classe média rural – bastante próspera para os padrões europeus do século XIX – se originou a partir da queda dos laços feudais entre os Gutsherren (nobres) e os antigos servos.
Resulta paradoxal de que para alguns grupos em servidão, principalmente para aqueles que tinham posse de terra mais segura no período pré-reforma, a liberação camponesa lhes foi menos favorável. Isto se deve ao fato de que a liberdade pessoal estava condicionada ao vínculo de servidão e de que este era na conjuntura pós-guerra dos 30 Anos – para o espanto dos contemporâneos – geralmente favorável às partes envolvidas. Isto é explicado a partir da formação do sistema agrário que vigorou ao leste da risca formada pelo rio Elba (Ostelbischegebiet), o Gutsherrschaft, caracterizado pelo latifúndio cerealífero, servidão, manejo senhorial e descentralização das funções clássicas do Estado – sob perspectiva weberiana (1927, p. 24) ix – nas mãos nobiliárquicas. A “manorial economy”, cujo fundamento era o Gutsherrschaft, perfaz a primeira parte do trabalho. Ali, Eddie apresenta um quadro desolador oriundo da Guerra dos 30 Anos e descreve como a rarefação demográfica, estatidade limitada – à la Fukuyama (2004, p. 48) x –, cidades comerciais hanseáticas em crise e uma nobreza devastada produziram uma sociedade baseada em assimétricos interesses. Não obstante, nobres e servos criaram acordos que viabilizaram a retomada da produção econômica, que tanto garantiu a subsistência das classes camponesas quanto afirmou a primazia da classe senhorial no mercado europeu de cereais. O nó górdio do sistema de servidão passava pelas características individuais acordadas entre o nobre em particular e as famílias em situação de servidão. Diferentes status podiam resultar de posses hereditárias ou não-hereditárias, fornecimento de infraestrutura rural ao servo, regimes mais ou menos intensivos na propriedade senhorial, justiça privada, controle e administração de casamentos, negociações em aluguéis ou comutação de serviços, etc. Estas variáveis ajudaram a configurar diferentes gradações de servidão, minuciosamente descritas por Eddie.
Um fator inovador da pesquisa é o peso que o autor empresta ao instituto da Konservation. Para atrair trabalhadores para seus domínios, os nobres do leste do Elba, na conjuntura pós-1648, tiveram de negociar inúmeros institutos de bem-estar aos seus servos. Em troca, a liberdade – repito, a nossa liberdade – servil (ela variava entre a Leibeigenschaft e a Untertänigkeit, a primeira correspondia ao direito do nobre sobre o corpo físico do servo e a segunda, respectivamente à aceitação pelo servo de uma fazenda bem municiada e respectivos deveres de manutenção e fixidez residencial) era contraposta de forma a preservar o capital nobiliárquico ou mesmo garanti-lo. Residência, benfeitorias rurais e a obrigação de apoiar o campônio em tempos de crise e penúria faziam parte dessa instituição, que, a partir de 1807, no contexto de reforma, foi tão dificilmente quantificada e arregimentada.
Na Parte II, designada “Reforma”, Eddie termina por esclarecer as hesitações e os atores que perfizeram a reforma agrária prussiana. Destacaram-se, nesse sentido, os ministros Vom Stein e Hardeberg, que, através de sucessivos decretos de regulação da matéria (Oktoberedikt de 1807, Regulierungsedikt vom 14. September 1811 e Deklaration zum Regulierungsedikt de 1816), além da Ordinance vom 7. Juni 1821, perfizeram a reforma agrária da Prússia “de cima” – ao contrário do modelo revolucionário francês e da proletarização econômica britânica. Ao lado do rei Frederico Guilherme III, Vom Stein e Hardenberg, iluministas e tradutores do liberalismo nas altas rodas de poder nos estados alemães, colocaram em marcha a reforma agrária do país sob as rédeas estritas do Estado interventor-mediador. A necessidade da criação de uma burocracia extensiva para impor o domínio do Estado sobre o mundo rural prussiano é largamente dependente da modernização agrária.
O trabalho de Eddie, embora central tematicamente, peca pelo desprezo do autor em estender a análise para além das fronteiras da Prússia. As reformas no império AustroHúngaro, por exemplo, vizinho e crescentemente um rival da Prússia, são pouco mencionadas, ainda que os métodos reformadores fossem bastante similares. A situação das comunidades polonesas e lituanas no interior da Prússia são pouco lembradas e Freedom’s Price se transfigura numa história essencialmente alemã. As relações entre terra abundante e trabalho rarefeito em contextos de reduzida capitalização não se atrevem a sequer discutir outros regimes de trabalho onde tal dinâmica também ocorreu – como é o caso da escravidão, mita e encomienda colonial das Américas. A própria repercussão do modelo prussiano pelo mundo, ou seja, a globalização da fórmula autoritarismo político-burocracia estendida e mediadora-manutenção da ordem social restam inexploradas. Poucos parágrafos são dirigidos ao processo de Pauperismus – que se torna uma questão candente por volta de 1850 – e das migrações transatlânticas, rotineiramente apontadas como consequência da liberação camponesa. Por fim, cabe ressaltar que as relações de assimetria entre camponeses e nobres permaneceram mesmo após as reformas, ainda que determinados grupos da elite camponesa tenham se beneficiado, bastante evidentes. Embora Eddie tenha consciência desse fator, ele não o explora com mais profundidade.
De toda a maneira, o livro é de um fôlego surpreendente. Para o leitor do Brasil, ele é essencialmente importante para o analista da lei de terras do Império Brasileiro (1850/1854) e, especialmente, para o pesquisador das comunidades alemãs. Sua reduzida globalidade é compensada pelo rigor das relações internas da sociedade prussiana. Além disso, as reformas foram as propulsoras daquilo que Reinhart Koselleck (1989, p. 153) xi chamou de Verwaltungsstaat, ou seja, o “estado administrador”, noção cara à ciência política, sociologia e à própria filosofia
Notas
iii Carvalho, José Murilo de. A construção da ordem: A elite política imperial; Teatro de sombras: a política imperial. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
iv Chun, Jin-Sung. The Lex Adickes in its East Asian contexts: The introduction of land readjustment and its spatio political effects. In: Cho, J. M. (Org.). Transnational Encounters between Germany and East Asia since 1900, Abingdon, Oxon: Taylor & Francis, 2018, p. 77-91.
v Filippi, Eduardo Ernesto. Reforma agraria: Experiências internacionais de reordenamento agrário e a evolução da questão da terra no Brasil. Porto Alegre: UFRGS editora, 2005.
vi Knapp, Georg Friedrich. Die Bauernbefreiung und der Ursprung der Landarbeiter in den älteren Theilen Preußens. Leipzig: Duncker und Humblot, 1887.
vii Boa parte da pesquisa de Eddie foi realizada no Geheimes-Staatsarchiv de Berlim-Dahlem.
viii Hagen, William W. Ordinary Prussians: Brandenburg Junkers and villagers, 1500-1840. New York: Cambridge University Press, 2002.
ix Weber, Max. General Economic History. Glencoe: The Free Press, 1927.
x Fukuyama, Francis. Construção de Estados: governo e organização no século XXI. Trad. Nivaldo Montigelli Júnior. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
xi Koselleck, Reinhart. Preußen zwischen Reform und Revolution: Allgemeines Landrecht, Verwaltung und soziale Bewegung von 1791 bis 1848. München: Klett-Cotta im Dt. Taschenbuch-Verl, 1989
Resenhista
Eduardo Relly – Pesquisador PNPD CAPES pela Unisinos e doutor (2019) em História pela Universidade Livre de Berlim.
Referências desta Resenha
EDDIE, Sean. Freedom’s Price: Serfdom, subjection and reform in Prussia, 1648-1848. Oxford: University Press, 2013. Resenha de: RELLY, Eduardo. História Debates e Tendências. Passo Fundo, v. 20, n. 2, p. 174 – 180, maio/jul. 2020. Acessar publicação original [DR]
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